Num espreguiçar sem fim, entreabriu os olhos e percebeu que ainda era noite. No morno da cama e perdido no aconchego acetinado dos lençóis, avistou apenas uma réstia prateada que entrava pela janela aberta, dando aquela sensação prazerosa do despertar antes da hora marcada. Poderia desfrutar do prazer de virar para o outro lado e dormir mais um bocadinho.
E, naquela pasmaceira, tentou esboçar as etapas do dia. Domingo, compromisso com a visita, com o espetáculo. Desde o dia anterior, a maleta, com a fantasia nova e a peruca, estava acondicionada no porta-malas. Os sacos com os brinquedos, também. Restava apenas ajeitar, na mochila, a maquiagem e os apetrechos de banho.
Nem bem clareou o dia, o carro deixou a garagem. O percurso seria mais longo; o destino, daquele dia, era na Baixada. Ligou o rádio e não conseguiu conter o riso. Isso era recorrente: ria sempre, quando se lembrava das caras espantadas dos vendedores. Durante anos, em todas as concessionárias que visitou para comprar um carro, defrontou-se com o espanto, ao solicitar que todo o sistema de som do veículo fosse desativado, deixando apenas o rádio em funcionamento. Os vendedores o olhavam como se fosse um alucinado, ou como um rico cheio de esquisitices, caprichos de endinheirado. Nunca tentou explicar, seria complicado. Eles não conheciam a Berenice.
De início, Berenice vendia bolo numa barraquinha improvisada no entorno do Ibirapuera, parada obrigatória nos passeios de domingo. Certo dia, ela colocou um aviso na parte de cima do avental, declarando que estava à procura de emprego em casa de família.
Estando de mudança para o sobrado em condomínio próximo, ele precisaria de ajudante. Entregou a ela um cartão para que, no dia seguinte, o procurasse. Falariam sobre o trabalho.
Berenice chegou bem cedo, olhava tudo com muita surpresa. Uma papelaria enorme, vários vendedores e clientes se amontoavam pelos corredores, dirigiu-se a um dos caixas e mostrou o cartão, explicando que deveria procurar aquela pessoa. Imediatamente foi levada ao escritório.
Genuinamente despachada, logo após os cumprimentos, danou a falar:
− Com todo o respeito que tenho pelo senhor, quero deixar claro que lhe chamarei de patrão. É o que é. Patrão é patrão e pronto. Não adianta querer mudar as coisas. O senhor não é o dono da casa em que vou trabalhar? Imagine só se, a cada vez que for preciso falar com o senhor, eu tiver de dizer: Senhor Bonifácio! Fica complicado.
− Combinado, Berenice, assim será.
− Outra coisa, é assim mesmo que quero ser chamada: BE-RE-NI-CE. Vou explicar. O povo da minha terra tem mania de cortar os nomes. Na hora de registrar a criança, escolhe aqueles nomes mais compridos, coloca um monte de letra que não conhece, junta um pedaço de nome estrangeiro, deixa tudo tão complicado que nem mesmo o homem do cartório é capaz de anotar no livro. Leva tempo pra entender. Depois, vem o apelido com o nome cortado. Não é por preguiça, não! O povo encurta o nome pra sobrar mais tempo pra falar de outras coisas, cearense adora uma conversa. Repara, presta atenção: lá em casa, Bartolomeu virou Bartolo, Marinete é Nete, Salustiana é Salú, Silvandira é Dira, Sandrilene é Dri. Nem vou falar no que deu o meu nome. Gosto dele inteirinho, ele tem melodia: Be-re-ni-ce. O senhor não acha?
Falou isso num fôlego só. Bonifácio, atordoado, apenas assentiu com a cabeça.
− E quando é que eu posso conversar com a sua esposa? Preciso saber como é o serviço, o que ela quer que eu faça, essas coisas que só mulher entende…
− Não tenho esposa.
− Não? Ela morreu? Tem filho?
− Não, Berenice. Não tenho esposa, nem tenho filho.
− Ah!
− Questão de opção. Não nasci pra casar e nem pra ter filhos. E você, é casada?
− Deus me livre! Não vou casar, nunquinha! E não quero filho. Já chega a confusão lá de casa; um monte de gente separada, carregada de moleque pra criar. Filho é encrenca pra vida toda. Mas não precisa me estranhar! Sou chegada numa saliência, não fico sem os amassos, mas só ali, naquela horinha. Depois, é cada um pro seu canto. Nada de cadeira cativa, o senhor me entende?
Naquele momento, Bonifácio sentiu que a vida passaria a ser tumultuada. A convivência com Berenice mudaria a rotina. Monotonia nunca mais.
No primeiro dia de trabalho, ele ficou em casa. Seria prudente que ajudasse Berenice na ambientação, afinal, ela precisaria de um norte. E, durante todo o dia, notou que ela carregava, de lá pra cá, um pequeno rádio portátil, ligado em som quase inaudível.
Antes que terminasse o dia de trabalho, perguntou a ela sobre isso.
− Berenice, você gosta muito de música, não é?
− Gosto. Ah! O patrão tá falando do rádio?
− Sim. Percebi que você não se separa dele.
− Senta aqui, patrão, vou explicar pro senhor. Eu sempre fui muito avoada, meu pensamento é desmandado. Sabe aquela pessoa que pensa o dia inteiro? Sou eu. E pensar muito faz a gente esquecer a obrigação, a hora, o compromisso. O rádio é, pra mim, a linha da pipa. Ele me prende no mundo; se o juízo voa muito alto, o rádio me traz de volta. Ele é vivo, patrão, tem música, conta o que tá acontecendo em todo lugar, fala a hora, e até me faz rezar. Tendo um rádio, a solidão acaba, a gente sonha com o pé no chão. É meu parceiro, só desligo o bichinho quando vou comer. Na hora da comida, quero silêncio pra repensar e agradecer.
Naquela noite, Bonifácio custou a dormir. A conversa de Berenice aprontou um rebuliço nos seus sentimentos. Generoso, cuidou de providenciar uma surpresa para a ajudante. No final daquela mesma semana, conseguiu um rádio potente e o colocou num suporte na parede da cozinha.
Quando Berenice chegou, na segunda-feira, o rádio estava ligado e o patrão a olhava para ganhar um sorriso. Ela, presepeira e toda emocionada, falou:
− Patrão, que coisa mais linda, nem sei o que dizer! Só não te dou um abraço e um beijo porque nós dois somos travados, e, se eu fizer isso, não vai dar certo. Mas vou te dar um presente: trouxe um pedaço de bolo pro senhor.
− Berenice, por favor, não me faça agrado, não gosto disso.
− Não é agrado, não, patrão! O senhor sabe: aniversário de família é um derrame, e o meu povo é destemperado. Lá, fartura é exagero, o bolo é do tamanho da mesa! Quando acaba a festa, cada um leva um pedaço, e ainda sobra um monte. O bolo nem cabia na geladeira, então, como ia estragar, trouxe um pedaço pro senhor. Eu também não sou de agradar ninguém.
E, assim, a vida de Bonifácio nunca mais foi a mesma. Não houve segunda-feira, por décadas, que não tivesse “sobra” de bolo de aniversário, de torta de frango, de pamonha, de cocada, de queijadinha…
Com o avançar dos dias, Berenice, cansada das conjunturas que se formavam no pensamento, e, querendo um esclarecimento, perguntou:
− Patrão, e seu pai? E sua mãe? Sua família?
− Não tenho, Berenice, sou só.
E ficou nisso. Não esclareceu totalmente, mas esse assunto jamais foi retomado.
Mas, nem por isso, ela se isentou de arrumar uma companhia para Bonifácio.
− Patrão, o senhor poderia arrumar um cachorro. É uma companhia tão boa, só vendo! Ou um gato! O bichinho é carinhoso.
− Nem pensar, Berenice. Eu sou mortal e eles também, isso traria sofrimento para qualquer dos lados. E eu poderia me esquecer de dar comida, de dar água. De jeito nenhum!
− E um peixinho no aquário? Um peixinho só!
− Berenice!
− Tá certo, patrão! Não se fala mais nisso…
A casa era do patrão, mas ela se sentia tão integrada naquele ambiente, compreendia que aquilo ali era parte da sua vida, e atinava que Bonifácio precisava ser cuidado. Acreditava que a vida não era feita de acasos; não foi só o patrão quem leu aquele seu pedido de emprego, carregou aquela propaganda, escancarada no peito, por dias e dias. E apenas Bonifácio se interessou. Ninguém mais.
− Berenice, que negócio é esse de plantas em casa? Lá fora, há vasos dependurados pra todo lado! Eu não quero ter flores para cuidar, se não colocar água elas podem morrer. Não quero ter esse compromisso.
− Que nada, patrão! É tudo planta resistente. Samambaia é planta forte! Vou contar pro senhor, lá em casa tem tanta planta, mas tanta planta, que não cabe mais nenhuma. O povo vai socando muda na minha varanda, e, pra não colocar no lixo, trago pra cá. É só por isso.
− E aquelas duas mudas plantadas no quintal? O que é aquilo?
− Pé de pitomba! O patrão, daqui um bom tempo, vai ter sombra, fruta e lugar pra amarrar a rede. Depois o senhor me conta!
Berenice era tão boa de lábia, que dobrava todas as certezas do patrão. E ele imaginava que ela não notava as plantas regadas aos finais de semana! A mulher era ardilosa, engabelava direitinho. No pergolado do jardim de inverno, havia tanta planta que mais parecia uma floresta. E Berenice, tinhosa feito uma gata e sem medo de tomar outro pega, emendou:
− Patrão, olhe que canto bom pra criar uma calopsita! A bichinha canta tão bonito!
− Berenice!
− Tá certo, nada de calopsita! Não tá mais aqui quem falou! Entendi…
Reservadamente, ele explodia em gargalhada sempre que ela tentava prendê-lo a qualquer coisa. No íntimo, esse propósito de Berenice o agradava, e muito! Gostava de sentir que alguém se preocupava com ele. Desde o primeiro momento, a afeição brotou. E, a cada ano, ela se multiplicava. Sem que ela notasse, passava tempo observando a figura de Berenice. Sempre mais encorpada, se bem que lutava veementemente para caber em manequins menores, vivia com roupas sempre a ranger nas costuras. Mas, depois, cedeu, reconheceu que essa batalha seria em vão. Estava mais madura, também mais lenta. Mas, cabelos grisalhos nunca! Dava a impressão de ser cobaia de produtores de colorantes para os fios. Era sempre a surpresa da segunda-feira, uma paleta de cores ambulante! Ia do dourado ao pink, do azul ao laranja, do lilás ao amarelo, do vermelho ao roxo. Numa certa passagem, pintou metade do cabelo de verde e a outra metade de amarelo!
Desde que começara a trabalhar, ainda adolescente, Bonifácio gostava de observar os artistas de rua. Era a distração no horário do almoço, lá, no centro da cidade. Havia certo fascínio. Malabaristas, músicos, estátua viva. Admirava a coragem de exposição que eles mostravam, a arte exigia isso.
Bem mais tarde, muitos anos depois, contratou um palhaço para animar a loja no dia das crianças. A alegria foi tão grande, que isso se repetiu em muitas outras datas. E tornou-se próximo do artista. Um dia foi convidado a acompanhá-lo, em finais de semana, nas visitas a asilos, orfanatos, hospitais. Trabalho voluntário.
Bonifácio começou visitando asilos, e declinou dos orfanatos. Mas apaixonou-se verdadeiramente pelas visitas a hospitais, e, em particular, pelas alas de crianças. Em pouco tempo, assumiu a missão: vestiu-se de palhaço. Abraçou a causa com enorme prazer, a maquiagem o liberava. Bastava pintar o rosto, enfiar a roupa, firmar a peruca no cucuruto e pronto, transmudava-se.
E, com Berenice, aprendeu a exercitar o desapego. Mais que isso, compreendeu o sentido mais amplo do desprendimento. Tudo começou quando ela, preparando os presentes de Natal, pediu ao patrão para guardá-los num quarto, lá no sobrado.
− Patrão, o senhor sabe que a minha casa é um disparate de movimento, um entra-e-sai de gente o dia inteiro, é a verdadeira casa da mãe Joana, então, eu não teria como esconder os presentes de Natal das crianças. Vou comprar os brinquedos aos poucos, e se não incomodar o senhor, gostaria de guardar no quarto desocupado.
Bonifácio não só permitiu como também, no ano seguinte, encantado com a iniciativa de Berenice, entrou na brincadeira e ajudou na compra. A partir daí, a lista encompridava a cada novo ano, criança brotava feito repolho.
− Patrão, o senhor sabe que no meu quarteirão, das quatro bandas, é tudo casa de parente. A gente tem costume de fazer puxadinho de três pisos, então, o senhor imagina a quantidade de gente, se em cada casa cabem três famílias! Ali, aquele que não for do mesmo sangue, é enroscado com um que é. Vou explicar pro patrão entender: todas as casas dão num único terreiro. No fundo dos terrenos, não tem muro, é um quintal só. Uma misturada! Até as roupas no varal causam confusão. No dia de pagar as contas de água e de luz, é um quebra-pau! Eles vão puxando luz de uma casa pra outra, puxam cano de água de uma construção pra outra, e o relógio das três famílias é um só! Na hora de rachar a conta, valha-me, Deus! Se uma pessoa, de fora, presenciar uma dessas brigas, vai achar que aquilo só vai ser resolvido na peixeira! Mas não é, patrão. Tudo se ajeita. Eu já falei, é tudo gente que gosta de barulho, que adora um falatório.
− Por isso, eu achei certo o senhor nunca aceitar se juntar a nós nas festas de fim de ano, o senhor tem outro jeito. Lá, em dia de festa, a manguaça começa cedo. Quando vai anoitecendo, o povo já está falando bobiça, tudo muito diferente daquilo que o senhor conhece, mas vou te dizer uma coisa: quando o relógio dá meia-noite, a primeira pessoa que vem no meu pensamento é o senhor. Eu fecho os olhos e peço: “que Deus te proteja, patrão!”. E eu peço com tanto amor, que chego a arrepiar, o senhor acredita? Naquele dia em que o senhor me entregou o seu cartão, eu senti que era o meu dia de Cinderela, foi mágica da fada-madrinha. Com uma única diferença: a mágica não se desfez. Desde aquele dia, patrão, eu nunca mais tive insegurança. E não falo isso pelo dinheiro do salário que o senhor me paga! Não! Falo isso pelo valor que o senhor me dá, pelo respeito que recebo. Mas vamos mudar de assunto. Eu já falei o que queria falar, só peço pro senhor acreditar, patrão, só isso.
E como não iria acreditar? Com ele aconteceu o mesmo.
Em meio a tantas lembranças, Bonifácio notou que já estava na Baixada. A vista do mar era encantadora. Chegando ao hospital, ocupou a ala da enfermagem para se paramentar. Naquele dia, estava animado com a nova fantasia. Berenice era especialista em comprar novos modelos. Combinava, como ninguém, as cores dos tecidos com as perucas, conhecia todas as lojas da 25 de Março e do Brás! Ela sempre falava que, um dia, iria acompanhar o patrão em uma dessas visitas, queria assistir ao espetáculo. Ambos sabiam que ela jamais iria.
Arrastando os sacos com brinquedos, como se estivessem pesadíssimos, entrou na enfermaria. Quando soltou a voz: “como vai, como vai, como vai, vai ,vai?”, a sala virou uma risada só.
Bonifácio, na primeira passada pelo corredor, além das palhaçadas, fazia o papel de olheiro. Observava os semblantes dos pequenos pacientes; os mais participativos não o preocupavam na mesma intensidade que aqueles de feição mais acabrunhada. Crianças prostradas e solitárias o afligiam. E, antes de terminar o espetáculo e de modo especial, fazia tudo para provocar um sorriso. Quanto aos brinquedos, todos de pano, separados em sacos diferentes, eram do gosto da criança. Ao lado de cada cama, perguntava: “boneca ou bicho?”. De acordo com a escolha, o pequeno paciente pegava o brinquedo.
Havia um menino de olhos vendados por ataduras, que não se animou nem mesmo com as piadas de Bonifácio. Aquela inércia incomodava, e, ao fim do trajeto pela enfermaria, o palhaço puxou uma cadeira e colocou-se ao lado da criança. Retirou as luvas e pegou a mão livre do menino. A outra estava ligada ao soro. Ele não se assustou e apertou a mão de Bonifácio. Diante dessa receptividade, o palhaço começou uma conversa:
− Está com dor?
− Não, eles não me deixam sentir dor. A enfermeira disse que acabou de colocar um remedinho e que vai dar sono! E o médico disse que logo vou pra casa; sinto saudade dos meninos.
− Você tem muitos irmãos?
− Muitos! Mais de trinta!
− Nossa!
− Irmãos de coração, moramos na Casa da Criança.
Bonifácio engoliu seco. Calou-se. Ficou lá, segurando a mão do menino, sentindo uma vontade imensa de chorar e, mesmo tentando disfarçar, chorou mansinho. Quando percebeu que o menino relaxou a mão, havia adormecido, ajeitou o brinquedo bem perto do travesseiro, jogou um beijo no ar e foi para o alojamento dos enfermeiros.
Enquanto retirava a fantasia, chorou. Durante o banho, soluçou. Não queria reviver aquilo, evitava raspar as feridas. As dores pareciam distantes, pareciam pertencer a uma outra vida, mas agora latejavam. E as cenas brotavam, involuntariamente. Aquele mesmo horror dos dias de visita no orfanato. Aquela sensação de carne exposta na vitrine, esperando a escolha de uma família caridosa. A frustração após a visita, a insônia das noites intermináveis. Lembrava-se da tristeza de quando Guto, o melhor amigo, foi adotado. Da dor de ambos, na despedida. De Guto, porque deixava a irmã Tininha para trás, e, dele, por ficar ainda mais só. Tininha havia completado cinco anos, apenas cinco anos, e Bonifácio prometeu ao amigo que cuidaria dela. E a última dor insuportável foi quando a família adotiva de Guto, meses depois, voltou para buscar Tininha. Naquele tempo, Bonifácio chorou a noite toda, a semana, o mês, anos e anos a fio. Nunca visitaria orfanato, não cutucaria a ferida daqueles abandonados. Se as pessoas soubessem a ebulição que causam na alma de cada criança que lá vive, repensariam as visitas. Elas são feito alpistes jogados aos pássaros. Atenuam a fome momentaneamente.
Desligou o chuveiro, refez-se. Planejara almoçar num restaurante, lá mesmo na Baixada. Parou na orla, na Ponta da Praia. Ficou tempo observando o movimento dos navios, o azul das águas, a alegria das famílias de turistas, as gargalhadas, as conversas cheias de gritaria. Só observava, não pensava.
E, de repente, sentiu uma vontade enorme de pegar a estrada de volta, de chegar em casa, de descongelar a lasanha carinhosamente preparada por Berenice, de aguar as plantas, e, depois, de deitar na rede amarrada nos pés de pitomba.
Entrou no carro, ligou o rádio, riu…
Ainda bem que o dia seguinte seria segunda-feira! E, com certeza, haveria a matrona Berenice. Haveria uma “sobra” de bolo de aniversário…
A diferença entre um conto e um romance completo, reside, no desenvolvimento textual, na estrutura e no enredo. São conceções muito diferentes, de que todos temos noção, mesmo que tal não cheguemos a aperceber-nos.
Este conto da Regina só não é perfeito por este motivo: ele tem a totalidade de tramas e histórias de uma grande novela, mas vem “ensanduichado” na estrutura de um conto. Imagino que alguns leitores fiquem assoberbados por tanta informação subjacente e apenas imaginável, outros desinteressar-se-ão por desinteresse ou preguiça.
Este conto merece virar filme. Imaginem a maravilha que daria toda aquela informação não dita, nas mãos de um realizador francês como um Truffaut ou um Chabrol. Bem sei que o cinema francês não é para todos os gostos, tem um cadenciado muito europeu, pouca ação, muitos silêncios carregados de mensagens e isto aborrece uma larga maioria de pessoas, mas para algumas outras, normalmente bem mais exigentes, alguns destes filmes são verdadeiras obras-primas (outros, confesso, são realmente enfadonhos – ou têm espetadores que não sabem lê-los).
Olhemos a figura de Bonifácio, que história! Quantas histórias transporta na maleta que transporta as fantasias e as perucas. E de quantas perucas e fantasias se veste este homem cada dia e transporta consigo na sua maleta de arquivo, vulgo memória? O mesmo se passa com Berenice, uma verdadeira arteira em estado puro, tal como um diamante, que já é diamante ainda antes de ser lapidado e podermos usufruir do brilho que emana, com ou sem assistência, porque é seu.
Não li os comentários dos colegas (só li um específico, porque a própria Regina me pediu), mas imagino que alguns terão reagido a uma certa forma mais ou menos forçada, por tão óbvia, de introduzir emoção. É a tal diferença de que falo, entre romance e conto, num conto não há espaço, não é possível transmitir a emoção como mel que escorre, tem de ir ao micro-ondas para consumo rápido, o autor é muitas vezes obrigado a recorrer a apelos diretos, a quase lugares-comuns e a arquétipos do imaginário.
E porque o conto da Regina merece ser lido com um olhar longo e sossegado e também quero que alguns colegas leiam o meu comentário a este conto dela, decidi publicar no grupo; pois agora que o desafio terminou, bem sabemos que já ninguém irá lá ler comentários. Então, pronto, aqui fica o convite: sentem-se confortavelmente, os que gostam de escutar música enquanto leem, escolham uma melodia suavemente bucólica dentro da vossa gama de gostos; façam-se acompanhar de uma bebida, mesmo que seja água e deliciosamente com esta versão tão brasileira de uma “África Minha”.
A Regina é uma grande senhora das letras e da vida e é um privilégio conhecê-la, mesmo que virtualmente, e comunicar com ela.
Nunca imaginei ganhar um presente deste quilate! Deus lhe pague, menina… ❤
Bonifácio tem sua rotina mudada com a chegada de Berenice, uma doméstica que entra na sua vida e quebra um pouco sua solidão com um jeito despachado de ser. A questão da arte fica muito, muito relegada a um segundo plano, quase um detalhe no serviço voluntário que prestava – e na cicatriz emocional com crianças e orfanatos. O texto tecnicamente é simples, bem direto e escrito com leveza, e os sentimentos nele expressos são bastante universais, o que garante a identificação e simpatia dos leitores. Como frustração, apenas o fato de não haver um envolvimento sentimental entre Bonifácio e Berenice, que ficou morno ao longo da história.
Olá, Filó, seu texto é muito bonito. Muito boa a forma como retrata a relação entre a Berenice e o patrão. Gostei da caracterização dos personagens e adorei as falas da Berenice. O texto é envolvente.
Não encontrei erros gramaticais.
O ponto negativo do seu texto é a falta de foco. O início fala do rádio, da Berenice, depois são colocados diversos outros assuntos, um seguido do outro, sem muita relação entre si. Inclusive, em alguns momentos, seria necessária até uma separação maior entre os parágrafos ou qualquer marcação que os diferenciasse um pouco.
Quando relata a paixão de Bonifácio pelos artistas de rua, a narrativa muda completamente, parece até que criou uma continuidade para um texto já existente com o intuito de encaixá-lo no tema do desafio. Foi uma mudança abrupta e sem muito sentido. Depois fala de palhaços e muda para asilos, vai para o desapego, para a família da Berenice… são muitos assuntos, muitas tramas em um conto relativamente curto, Depois ainda inclui a questão da caridade, da adoção. Os assuntos se atropelaram, na minha opinião.
Outra coisa é que o tema arte ficou bem na superfície. Fiquei mesmo com a impressão de que este texto foi adaptado para se encaixar no tema.
Acompanha a trajetória de Bonifácio como palhaço e seu relacionamento com Berenice.
A questão de o protagonista ser órfão vai surgindo em traços da personalidade da protagonista, antes que isso seja revelado, o que trouxe um sentido de coesão muito concreto para a narrativa.
O conto tem uma estrutura narrativa um pouco confusa, mas, quando se revela que o detalhamento da relação do protagonista com Berenice descreve uma ligação praticamente familiar, toda a estrutura faz muito sentido.
O ritmo, por outro lado, não é muito favorável. No meu ponto de vistas, todavia, essa relação de família postiça acabou sendo pouco explorada, deixando a construção um pouco frouxa.
O final também não tem um grande impacto, o que, entretanto, não serve para esmaecer os méritos já mencionados do conto.
Parabéns e boa sorte no desafio!
Este é um bom conto em que a força está nos personagens e na relação desenvolvida entre eles. A personalidade solitária e misteriosa do protagonista vai se revelando junto do seu passado, aberta pelo próprio andar da narrativa, mas também em parte devido a Berenice, cuja presença se faz sentir pelas mudanças que traz e pela potência dos seus diálogos acelerados, cujo ritmo é muito bem transmitido pela autoria. Aliás, o conto é muito bem escrito e flui com facilidade, passando pelo tempo de forma natural e coerente. Minha única crítica é que o conto marginaliza o tema do certame. Marca presença, é claro, na atuação do protagonista enquanto palhaço, mas deixa o texto com um problema fácil em um desafio como esses, que é o seguinte: ter um personagem artista faz do conto um trabalho sobre arte? Quando vemos o personagem como palhaço temos acesso a algo valioso, que é o passado traumático de um homem que foi abandonado na infância e que agora encontrou abrigo no altruísmo e em uma mulher com quem o encontro foi inesperado para ambos… entretanto, não se vê muito do que é ser um palhaço atuante nesse tipo de atividade e quais são os pormenores dessa atuação, tanto para ele como para o seu público. O cenário, os hospitais, poderia ter tomado uma parte maior da narrativa, também. Para um exemplo que se relaciona com este conto tão somente pelo fato do protagonista ser um palhaço, tem o excelente filme “Bingo”, em que além das regras intrínsecas ao trabalho de um palhaço, há também uma forte ambientação no cenário televisivo brasileiro da década de 80. Acredito que ter trabalhado mais esses elementos teria enriquecido o texto – forte por si só – dentro deste desafio.
Olá, Filó dos Prazeres.
Seu conto tem méritos, é inegavelmente bem escrito e tem um estilo que o diferencia dos demais no desafio: um narrador, ainda que em terceira pessoa, demonstrando uma certa personalidade, com um jeitão bem próprio de narrar e até transparecendo alguma emoção. Porém, foram muitos os pontos que me incomodaram no texto – até me irritaram um pouco, rs -, impedindo que eu conseguisse imergir na história.
O primeiro foi a artificialidade dos diálogos, principalmente nas falas de Berenice, que soam extremamente teatrais. As linhas dela parecem escritas, ensaiadas e declamadas, cheias de frases de efeito e exclamações. Ela funciona como um personagem exótico, pitoresco, talvez até tenha sido essa a sua intenção. Mas não consegui encaixá-lo no contexto do conto, que parece ser mais realista. Isso acabou me afastando um bocado do texto.
Falando em exclamações, há um claro excesso delas aqui. O conto tem inacreditáveis quarenta e seis pontos de exclamação. É exclamação que não acaba mais.
Em alguns trechos elas se aglomeram, como aqui:
“− Patrão, olhe que canto bom pra criar uma calopsita! A bichinha canta tão bonito!
− Berenice!
− Tá certo, nada de calopsita! Não tá mais aqui quem falou! Entendi…”
São cinco frases seguidas com exclamações. Isso gera um efeito esquisito, como se os personagens falassem o tempo todo exaltados.
Em algumas frases a exclamação para apenas não fazer sentido, como aqui:
“A enfermeira disse que acabou de colocar um remedinho e que vai dar sono!”
Até o narrador exclama, e também em momentos em que é difícil entender o uso da pontuação:
“Combinava, como ninguém, as cores dos tecidos com as perucas, conhecia todas as lojas da 25 de Março e do Brás!”
A mudança de protagonismo de Berenice para Bonifácio foi um tanto abrupta e o final do conto não pareceu ser um desfecho para a história de nenhum dos dois. A narrativa ficou um tanto sem foco. A história da criança internada e do orfanato também não levou a lugar algum. Pareceu apenas um momento construído para apelar ao emocional do leitor.
Por fim, a abordagem do tema do desafio no conto pareceu bem pálida, longe de ser o foco principal. Não é algo que desmereça o texto, mas o enfraquece dentro do contexto da competição.
Enfim, achei um conto regular. Mas, reitero, tem personalidade e uma boa escrita. Apenas não me cativou. Faz parte do jogo.
Desejo sorte no desafio.
Abraço.
Olá, Filó das Artes!
Seu conto contempla o tema do desafio. A arte escolhida é o teatro, mais especificamente a performance circense.
Antes de mais nada, obrigado por compartilhar seu texto com a gente. É um conto de leitura muito agradável, com potencial para agradar um público amplo. A gente fica feliz de encontrar uma narrativa leve assim no desafio. De fato, eu posso imaginar que, se fosse uma série, seguramente o público “shipparia” o casal Berenice e Bonifácio. Que bom que, sendo um conto, você não sofrerá a pressão popular para fazer esse “fan service”.
Seu conto é sobre um encontro de opostos que, no fundo, não são tão diferentes assim. Enquanto a empregada possui fala solta, o patrão é resguardado, evita intimidades e responsabilidades com outros seres. O contato o transforma. Um roteiro com o qual muito leitor irá se identificar. A vida é, mesmo, feita de encontros.
Todavia, eu faria algumas coisas diferentes. Berenice é uma personagem central e, na minha opinião, deveria ser introduzida com mais cuidado. Conhecemos a mulher, basicamente, através dos diálogos dos quais ela participa. Nem sou entusiasta de muita descrição, mas acho que o aparecimento dela poderia contar com uma introdução mais encorpada.
Os diálogos, aliás, também me causaram algum incômodo. As longas falas da Berenice, em tom de “lições”, não me soaram completamente naturais. Embora eu admire a forma coloquial de sua linguagem. Mas creio que algo, talvez o ritmo da conversa, poderia ser mais natural.
Por fim, faço uma outra observação, agora sobre a estrutura do texto: eu pensaria em, de repente, ser mais tradicional. Deixar mais evidente no formato da narrativa qual é a tensão do conto. Ser mais pedagógico, delinear de forma mais lenta o Bonifácio pré-Berenice, o “efeito Berenice” e como ele colocou o homem em contato com seu passado.
Enfim, só pitacos. Você, Filó das Artes, fez suas escolhas e se saiu bem. Parabéns e boa sorte no desafio!
Delícia de texto. Flui como água. Muito bem escrito e no tema. Sem dúvida é um texto armado para emocionar, mas é muito eficiente nisso e o prazer gerado pela fluência da escrita faz o leitor relevar algumas artificialidades. Como os diálogos monólogos. Acho o contraponto do orfanato bom e enriquece a história, oferecendo a motivação pelo trabalho que faz nos fins de semana e para o fechamento do conto.
Só faltou a calopsita na pitombeira. Parabéns pelo trabalho e boa sorte!
Vida Arteira (Filó dos Prazeres)
Comentário:
Interessante que, quando terminei a leitura deste texto, fiquei matutando sobre uma entrevista dada por um esportista brasileiro que foi criado num orfanato. Ele falava exatamente sobre a angústia de aguardar por uma adoção, de como essa expectativa é dolorosa.
Mas vamos ao texto. Gostei, é daqueles textos simples que me fisgam. Fala sobre a vida como ela é, caborteira. Exatamente, a vida é “arteira”. Gostei da pegada do rádio, voltei no tempo, na vida do sertão. Rádio realmente é companhia. Viver com música é mágico.
E gostei do mergulho na arte de rua. Artistas quase invisíveis, mas tão intensos. Numa passagem minha pelo hospital, fiquei encantada com um saxofonista que circulava pelos corredores, doando a sua arte. E chorei com “Tears in heaven”. Misericórdia…
Voltando ao texto, bonita a amizade dos dois bicudos: Bonifácio e Berenice. Ligação profunda, significativa, silenciosa (sem palavras).
Na escrita, há erro na digitação – aquela velha história de consertar o texto e não reler.
Filó dos Prazeres, bom texto para ser saboreado quando colocamos a cabeça no travesseiro.
Parabéns pelo trabalho!
Boa sorte no desafio!
Antes de continuar, acho justo esclarecer como estou avaliando nesse desafio. Além de uma consideração final, guio-me por três fatores: artístico, técnico e criativo. Não estou participando dessa vez, mas decidi ajudar a movimentar os comentários!
ARTÍSTICO
Se a vida é uma obra de arte, esse conto representa bem isso.
Apesar de toda a beleza expressa, ainda cismo com a adequação ao tema. Falar sobre arte é diferente de adaptar um hobby artístico na vida do personagem. A temática não é o foco, é uma consequência do foco, da relação de Bonifácio e Berenice. Apesar disso, funciona bem com o conto, tendo pouco espaço pra mudanças.
TÉCNICO
Excelente.
Narrativa bonita, bem elaborada e natural. Não encontrei nenhum erro e, sendo sincero, há uma beleza no estilo apresentado que impressiona. Não gostei muito dos diálogos, ensaiados demais para mim. Não gosto quando as falas cabem mais ao leitor do que aos personagens envolvidos na cena. Dá uma sensação de artificialidade.
CRIATIVO
Bom.
Eficiente em pegar uma história comum e transformá-la em algo encantador. O enredo se torna um pouco óbvio com o tempo, principalmente quando percebemos que Berenice iria mudar a vida de Bonifácio. Isso tira um pouco do brilho do enredo.
Agora, não consigo evitar: a sensação de que o conto é construído para emocionar. Sou chato com isso, sim. Se a leitura foi natural, sem entraves, a história seguiu a contramão. Todas as cenas e falas são elaboradas para encaminhar o leitor para o final emocionando. Com isso, o texto serve ao leitor, não ao mundo apresentado. Não há conflitos reais, é tudo meio idealizado, seja para ser feliz, seja para ser triste. Isso pode ser o estilo natural do autor da obra, mas costumo me afastar um pouco de textos dessa natureza.
Vale ressaltar que isso não é um problema. É um estilo e respeito a escolha do autor, apenas acho justo demonstrar minha visão de leitor.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O conto é muito bom.
Não é o meu favorito, mas está bem escrito e demonstra um estilo narrativo belo e gostoso de ler. Não é fácil escrever assim, então acredito que é um autor bem maduro no ofício.
Parabéns pelo trabalho e boa sorte no certame!
Oi Filó!
Que delícia, seu conto! Impossível não se apaixonar por Berenice e Bonifácio, dois personagens tão bem desenvolvidos. O relacionamento entre eles é lindo, uma amizade, um afeto genuíno, o cuidado.
A história traumática de Bonifácio vai se revelando aos poucos e explica sua dificuldade com compromissos.
A escrita é maravilhosa, vai conduzindo o leitor com muito jeito.
Parabéns!
Kelly
Olá Filó. Texto estranho este. Pensei de início que fosse uma história de amor, mas transforma-se num confronto de duas pessoas que assumem a sua solidão e são felizes assim: ele nas horas vagas é palhaço, ela é a empregada que lhe ensina o seu lado mais humano e um escondido sentido altruísta. A autora poderia ter caído no lugar comum da história de amor, mas ao criar o desencontro dos dois cria também uma tensão que eleva a qualidade do conto. Em termos de linguagem nada a apontar, excepto o título: não vejo a adequação ao tema, pelo menos no sentido que a palavra “arteira” tem aqui em Portugal, o sentido de algo astucioso. Se é este também o sentido da palavra no Brasil, não me parece ter sido uma escolha muito apropriada. Mesmo assim, nota máxima. Parabéns.
Vida arteira
Repito o principal elogio dos colegas comentadores: é um conto delicioso. Um narrador bastante eficiente e personagens muito cativantes. Vamos aos detalhes:
Coesão – A história que pulsa é a de Berenice, apesar de parecer se tratar de Bonifácio. A cor que essa mulher traz para a vida desse artista honorário mostra que a Beleza não está exatamente na estética, mas pode estar em coisas mais simples e cotidianas. Reparei, apesar da eficiência do narrador, uma quebra na narrativa quando você decide dar uma virada para a história pessoal do Bonifácio. Não tenho certeza de que a adição da carga emocional própria do orfanato tenha sido uma ótima opção para um texto curto.
Ritmo – Em geral, muito bom, seguindo a toada das anedotas e experiências da Berenice. Contudo, a quebra da narrativa, como apontei acima, também gerou quebra no ritmo, parecendo até que eu estava lendo outro conto, com um narrador completamente diferente.
Impacto – Gostei demais do texto, da história, enfim… O final, após adição da carga emocional do orfanato, pareceu-me frio, talvez porque focou na cena do menino de olhos vendados como se ele fosse transformar Bonifácio de alguma maneira, logo, eu esperei um desfecho mais altruísta da parte do personagem. Não quero aqui interferir no rumo da sua história, até mesmo porque acho isso o fim (kkk), mas é que você mesmo, através da sequência, conduziu-me a essa expectativa. Mas, são somente chaturas que considero necessárias para oferecer ao autor uma visão diferente, e caso ele concorde e deseje, talvez rever algumas partes para melhorar ainda mais a ótima sensação do conto.
Parabéns. Um grande abraço.
Que conto delicioso! Os dois personagens foram muito bem construídos, e Berenice, em particular, é tão palpável que quase dá pra sentar aqui com ela pra tomarmos um café juntas! Muito bom.
Tecnicamente quase perfeito, a Claudia fez alguns apontamentos que eu apenas repetiria. Escrita segura, narrativa consistente, linguagem que equilibra bem a oralidade e o lirismo; tudo deixa bem claro de que se trata de um(a) autor(a) experiente. Aliás, acho que sei quem é! 😉
Minha única observação – não chega a ser uma crítica! – é que a questão da infância de Bonifácio no orfanato pareceu, ao menos a mim, um “excesso de trama”, se entende o que quero dizer. Acho que focar no relacionamento dele com Berenice, na maneira como ela trouxe leveza à vida, já estaria de bom tamanho. A ternura e o encantamento naquela relação dispensariam este ponto a mais, que ficou um pouco jogado ali ao final. Mas isso não tirou de modo algum o brilho do texto.
Enfim, um conto excelente, um dos meus favoritos! Parabéns e boa sorte no desafio!
Também quero tomar café com a Berenice. Mas não deixa aquele psi do “O cativo da sorte” vir. Tenho medo dele.
Ah, Elisabeth, que pena. Mas tudo bem. Continuarei recluso nos próximos anos, então o café precisaria, mesmo, ser adiado.
Quando meus romances de fantasia forem publicados, tenho certeza que você mudará o juízo ao meu respeito. Até lá, seguirei acompanhando seus comentários 🙂
Vida Arteira (Filó dos Prazeres) /Indicação Anderson
(…)Não me macem, por amor de Deus!
Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havemos de ir juntos? (…)
(Álvaro de Campos, Lisbon Revisited – 1923)
Uma análise rápida pelas características de Conto e história: Estrutura de conto, perfeita. Tema Arte – Palhaçaria e Radioarte. Texto excelente. tema bem elencado, com elementos de autoconhecimento através do fazer artístico. Personagens bem marcante. Enredo similar à narrativa, bem elaborado. Espaço e tempo de memória corrente, também perfeitamente elaborados. Narração bem executadas como uma Filó dos Prazeres, contadora de causos sabe tecer. Porque essa narradora é um espetáculo, que fique claro!
As duas Artes abordadas são pano de fundo para a vida de duas pessoas, parafraseando Dr Lao, “o circo aqui exposto é a própria vida e nele tudo é maravilha”
Minha recepção ao texto foi de maravilhamento. Saboreei e chorei com ele. Em muitos aspectos Berenice e Bonifácio são meus irmãos de alma. Não tem como não me deixar seduzir por eles. O escritor Sérgio Sant’anna (1941/2020) dizia que “Ler não é só adquirir conhecimento ou experiência de vida. É também a possibilidade de ter outra vida, de viver o imaginário.” E sua escrita, Filó dos Prazeres nos permite isso. E mais, nos permite conhecer o que os personagens são, o que pensam e sentem.
A escolha dos nomes é interessante e de significados etimológicos bem próximos ao que ambos significam para a narrativa e para suas próprias vidas. Berenice, de grego Pherenike, cuja composição ocorreu pela soma de dois verbetes distintos: phero, relacionado ao verbo ‘trazer’, e nike, traduzível por ‘vitória’, significa algo como “aquela que traz a vitória”. Já Bonifácio, que vem do latim Bonifatius, parte de dois elementos: bonum e facere, significa “benfeitor, o que faz o bem”. Tudo a ver com o que chega até nós pela voz de Filó dos Prazeres.
Filó, que por acaso é uma das primeiras representantes da Palhaçaria que vi na vida, narra de forma deliciosa. Sim, o tema entra aqui como um subtema das Artes Cênicas, afinal, a milenar Palhaçaria ou Arte Circense – em representado comum e hospitalar.
A caracterização de Berenice é perfeita e falsamente comum: empregada, pobre, esforçada, moradora de um cortiço, que adora um rádio e um arrasta-pé. Entretanto, quanta riqueza há além dessa aparente capa corriqueira. Inteligente, perspicaz, sagaz, sábia e amiga. Um primor de pessoa. A alma lírica do conto.
No plano da linguagem e da formação do enredo e discurso, o autor de ”Vida Arteira” dá muito material com sua narrativa, mas também sugere com profundidade e, trabalha com a temática da Solidão. As duas personagens têm naturezas solitárias e são apresentadas com extrema beleza poética. Berenice, que surge persona importante para Bonifácio, é a primeira delas. Cercada por muitos entes que lhe são caros, é uma solitária nata que reconhece nele a mesma necessidade de compreensão.
Aqui é interessante dizer que a solitude de ambos foge do lugar comum, da ideia geral que fazemos da solidão narcisista, dos espaços vazios na mente, ou pior ainda da solidão depressiva. Ambos conseguem viver seus momentos de liberdade e de paz, sem interferir na relação com o outro. Para eles, estar só não é um padecimento, é a liberdade, a oportunidade de fazer o que bem entender para estar bem consigo mesmo. Ela gosta de cuidar, sem realmente envolver algo mais que o sentimento de acolher. Ele gosta de dar e receber no seu limite.
Na verdade, o relacionamento de patrão empregada perpassa os laços e enraíza em uma amizade que mexe com vida pessoal de ambos. E é ela, em sua simplicidade que entende que se encontraram com um propósito: “Berenice acreditava que a vida não era feita de acasos; não foi só o patrão quem leu aquele seu pedido de emprego, ela carregou aquela propaganda, escancarada no peito, por dias e dias.”
A solidão de Berenice é a que Comte-Sponville conceituou: “o preço por ser si mesmo”. Ela não depende de estar ou não vivendo entre outros, nela o ser solitário é sua condição humana. Ela se percebe bem só e procura, quando pensa ser necessário, suprir suas diversas necessidades. Simples, é uma mulher sábia, tanto que desiste de lutar com a balança e as roupas de números pequenos e se aceita. Ela pertence a si apenas (Montaigne,, 2002, p. 361).
Quando falamos de solitário é comum pensar no ser depressivo, entretanto, esse pensamento é uma forma de oprimir o outro, já que estamos exigindo que todos os seres tenham companhia, vivam em relacionamentos que não desejam ou busque no outro a fonte de entretenimento. Berenice e Bonifácio se completam, sabem que vivem de comum acordo uma relação de amizade e de intromissões comedidas. Mas vivem além das exigências sociais. Encontraram seu espaço, seu ser-em-si.
Ela se coloca na vida dele como um anjo que o protege e ele faz o mesmo em relação a ela. Não há cobranças. Ele não vai às festas de fim de ano na casa dela e ela não vai assistir as apresentações dele. Mesmo que ele tenha prazer em ajudá-la com os presentes da família dela que cresce desordenada como o cortiço em que vive e ela o ajuda nas escolhas de fantasia que ele usa para ser palhaço e encontrar a si mesmo longe dela. Ela sabe onde ele está, ele sabe quando a encontrará.
Órfão, ela é a ideia de lar que ele tem. E essa orfandade é apresentada de forma magistral, quando em seu momento de paz interior ele encontra seu passado representado no menino doente.
O menino que ele foi, esperando uma família que nunca veio, ergue-se ali e o enfrenta e entendemos porque ele é contrário a ir aos orfanatos. Vendo-o ali, de mãos dadas com o menino saudoso do orfandário, percebemos que ele não é mais o solitário comum e depressivo, afinal, ao conhecer uma mulher simples, livre e ter se descoberto na Arte teve expurgado de si as amarras e tornou-se limpo da mácula do solitário depressivo.
Ele muda seu jeito de ter carro por ela, ela move céus e terras para o fazer feliz e juntos, nessa simbiose que construíram, são felizes. Ambos compreendem a necessidade e vazio do outro. Ambos criam em suas vidas um puxadinho para que o outro caiba.
A construção de quem é Bonifácio vai surgindo aos poucos. De princípio sabemos que ele é um artista circense ou médico da alegria, já que aos domingos, fantasiado, faz visitas. Ainda não sabemos a quem, porque a Arte aqui, milenar Palhaçaria, surge ainda como pano de fundo.
São duas pessoas de personalidade forte. Ela, que prefere ser chamada de BE-RE-NI-CE. Ele que aceita ser chamado de patrão. Ela quer a individualidade de seu nome, ele que abre mão do seu em benefício dela. E como é lírica a Berenice. Acredita que seu nome tem melodia. E tem. É macio e intrometido como o amor dela.
A união de almas dele é tão deliciosa que ele compra o carro pensando nela e ela vai para o descanso semanal pensando nele. Eles se completam sem se unirem de fato.
Há muito a ser visto nos dois. A percepção de ele conhecer Berenice como ela é, com a sua importância na vida dele e de ser tão especial que é difícil de traduzir: “Nunca tentou explicar, seria complicado. Eles não conheciam a Berenice.” Ela que sendo uma representante de uma classe profissional simples traz em si marcas de liberdade, afinal
Berenice é livre, conhece sua feminilidade e necessidade. Tem forte senso de prioridade: “ Na hora de comer, não ouve rádio’’. É grata a Deus e ao amigo. Tem consciência de sua solitude: “ Tendo um rádio, a solidão acaba, a gente sonha com o pé no chão.”
Berenice sabe dosar sua personalidade, minar as barreiras do patrão, convencendo-o do que ela acha que ele precisa. E ele desfruta desse carinho. Aceita as plantas e até as molha. Ela tem todo seu jeito de cuidar dele sem demonstrar que o faz, disfarça sua generosidade: “Não é agrado, não, patrão! O senhor sabe: aniversário de família é um derrame, e o meu povo é destemperado. Lá, fartura é exagero (…) Quando acaba a festa, cada um leva um pedaço, e ainda sobra um monte. (…) então, como ia estragar, trouxe um pedaço pro senhor. Eu também não sou de agradar ninguém.”
Aqui, como em “O deus velho” a arte surge como terapia. Ser palhaço libera Bonifácio, o faz feliz, ou melhor, reconhecer sua importância: “Abraçou a causa com enorme prazer, a maquiagem o liberava. Bastava pintar o rosto, enfiar a roupa, firmar a peruca no cucuruto e pronto, transmudava-se.” E a arte radiofônica auxilia no equilíbrio de Berenice. Representação artística que pouco percebemos, mesmo que ela seja tão presente.
Para usar um termo ligado ao rádio, há sintonia na forma como o texto se move e sai de um para o outro. É muito interessante, sem deixar ruídos. Surpreende, sem assustar e sem deixar resto de linha no tecido. Cada cena foi bem desenhada.
O choro de Bonifácio é sua catarse. Sua dor brota e sai. A solidão da infância, essa sim depressiva, criada pela expectativa de esperar um amor que nunca veio, a separação do amiguinho. Aqui a mágoa da rejeição ricocheteou no oco de suas lembranças. Sentiu de novo sua “alma aprisionada pelo destino e convertida em canto, mas também o tormento da criatura condenada ao isolamento e que anseia pela comunidade” (LUKÁCS, 2004, p. 43). Ao sair dali, olhar a Natureza e deixar se envolver por ela, a vida real voltou, revigorando-o, sanando-o.
Adulto, Bonifácio não tentou suprir suas necessidades de vida comunitária prendendo-se a um casamento. Ele conseguiu encontrar algo maior, que o completa, por isso volta para sua lasanha, sua rede e seu pé de pitomba, conquistas vindas daquela que é seu lar. A comida pronta previamente com carinho, a rede que é o descanso e o pé de pitomba que lhe dá a sombra necessária são as marcas da Berenice em sua vida, símbolos que independem de sua presença, pois existem por causa dela, mas sem ela. E há a esperança de uma segunda-feira de surpresa: algo vai “sobrar” e ela vai trazer para não estragar e ele vai se sentir amado.
Parabéns pelo texto. Sorte no Desafio.
A rotina solitária do patrão é modificada graças ao relacionamento com sua ajudante, rica de sinceridade e de sabedoria popular.
Tecnicamente, o conto está muito bom, a leitura é leve, divertida e os personagens muito carismáticos. A coloquialidade encontra fluidez na oralidade do texto, como requerem as situações cotidianas mais informais aqui apresentadas.
A narrativa me conquistou, a estética também condiz com o estilo do conto; mas não senti que o tema tenha sido bem explorado, parece-me que está mordido pelas beiradas; o foco se prende à amizade entre os dois personagens e não, na arte.
Parabéns e boa sorte no desafio! Abraço.
Olá, Filó! Obrigado por compartilhar Vida Arteira conosco ♥️
Conto gostoso de ler porque traz personagens comuns, que são bem apresentados.
– PONTOS POSITIVOS: Escrita boa; bom uso da gramática; o recurso das explicações da Berenice, por mais que seja utilizado várias vezes, não cansa, pois é bem explorado e deixa a narrativa interessante.
– CONSIDERAÇÕES: Por mais que os diálogos sejam charmosos, senti que a voz do narrador toma para si a voz dos personagens em alguns momentos, devido ao uso de palavras mais rebuscadas em diálogos informais.
Achei a história legal, o final tem um apelo forte, mas faltou trabalhar melhor o momento antes das revelações finais para amplificar o impacto no leitor.
Parabéns! ☮
Olá, Filó dos Prazeres, tudo bem?
Farei considerações sobre seu conto na forma de A-R-T-E:
A = A arte em si = Arte circense, de rua, e música ouvida pelo rádio, além da arte da vida.
R = Revisão = Quase nada a apontar.
– danou a falar > danou-se a falar [mas ainda tenho dúvida quanto a isso]
– um monte letra > um monte de letra
– Desde que começou a trabalhar > Desde que começara a trabalhar
T =Trabalho de escrita/narrativa = Narração feita como “contação de causo” , o que aproxima o leitor com a familiaridade do cotidiano. Linguagem simples, mas rica em coloquialismos, tornando a trama bem verosímil. Personagens muito bem construídos, é fácil criar empatia por eles. No entanto, senti que o enredo é muito rico para tão curto espaço. Dá margem à criação de um romance, ou pelo uma boa novela. Uma história dentro de outra história, o que não prejudica em nada a narrativa, mas desperdiça material. Berenice é encantadora, e fiquei torcendo para nascer um romance entre ela e o patrão. Sou dessas…
E = Então, autor[a] = Uma leitura muito prazerosa, que nos faz querer um pouco mais, saber mais do que aconteceu com Berenice. Gostei principalmente dos diálogos de Berenice revelando tanto autenticidade quanto sabedoria. Um deleite.
Parabéns pela participação e boa sorte no desafio.
Ambientação= No tema- Arte Circense, embora o mote do conto seja outro.
Escrita= Boa escrita, boas frases, diálogos abordando assuntos diversos, falas extensas mas de interesse..
Enredo= História do cotidiano, sem muitas surpresas.
Considerações Gerais= História do cotidiano, bem escrita, empresário solitário contrata uma ajudante que modifica sua rotina, a maneira de viver. Uma história comum, mas mostrando os reais valores da vida. Ponto positivo para a criação de Bernadete, uma personagem bem interessante.
Olá! Tudo bem?
Seguindo os passos da melhor revisora de todos os tempos, a dileta Claudia Roberta Angst, farei considerações sobre seu conto na forma de A-R-T-E:
A = A arte em si = A arte aparece com sucesso no conto: gira em torno da música e do teatro (palhaço).
R = Razões para ODIAR o conto (porque sou desses) = Primeiro parece tratar do carro, depois parece tratar da música, por fim trata do patrão: muita coisa em pouco espaço.
T = Trabalho de escrita/narrativa = A escrita é boa.
E = Então, autor[a] = O retrato da doméstica ficou muito bom. Gostei muito também da maneira como a música (especialmente o rádio) foi tratada. O protagonista é um homem muito solitário, o que foi trabalho com excelência.
Parabéns pela participação e boa sorte no desafio!
Resumo: Bonifácio contrata Berenice para trabalhar em sua casa e ambos desenvolvem uma relação de amizade. Cheio de pendências com o passado, o protagonista visita hospitais vestido de palhaço, para alegrar pacientes.
Comentário:
Filó, obrigado por esse conto! Bem escrito, fluido e divertido na maneira como construiu os personagens. Ambos têm personalidade, voz própria e gestos que os tornam reais. A arte, tema do desafio, está presente no apreço de Berenice com o rádio, da capacidade de mantê-la no mundo, e se faz perceber também no vestir-se de palhaço por Bonifácio, um admirador de artistas de rua. Bonifácio surpreende-se de se deixa levar por Berenice que, juntos, formam um par dinâmico e divertido. A estrela do conto, claro, é a vendedora de bolos, Berenice tem diálogos marcantes, críveis e audíveis em pessoas reais que já passaram pela minha vida. Uma pessoa que se impõe para o bem do outro e, quase sempre, está coberta de razão. A autora inseriu um mistério sobre o passado de Bonifácio, que vamos desfolhando aos poucos com o andar da história, recolhendo pistas deixadas ao longo do texto. Há ainda espaço para insinuações sobre o futuro de Berenice; provavelmente Bonifácio faleceu antes de conseguir acompanhá-la nas compras, ou ela mesmo se foi. Nesse ponto, estava crente que Bonifácio estava indo de encontro a ela no Hospital, o que seria bastante emocionante, mas o fechamento vai por um caminho mais explicativo, com o objetivo de justificar as atitudes do protagonista, assim como seu passado traumático no orfanato. Desta maneira, Berenice ocupa um papel renovador em sua vida, até então, quando não palhaço, bastante solitária.
Não senti tanto impacto nessa resolução, mas foi uma maravilha percorrer esse conto. A escrita é precisa, sem exageros, com bom uso do vocabulário além de passagens que são poesia pura, como:
“[…] O rádio é, pra mim, a linha da pipa. Ele me prende no mundo; se o juízo voa muito alto, o rádio me traz de volta. Ele é vivo, patrão, tem música, conta o que tá acontecendo em todo lugar, fala a hora, e até me faz rezar. Tendo um rádio, a solidão acaba, a gente sonha com o pé no chão. É meu parceiro, só desligo o bichinho quando vou comer. Na hora da comida, quero silêncio pra repensar e agradecer.”
Belíssimo trecho.
Parabéns e boa sorte no desafio!