O dia acordou mandando sol para todos os lados, à maneira de beijos, mas a orientação geral era que todos ficassem em casa. Fiquem em casa para não se queimar! Sendo possível, permaneçam adormecidos!
A ordem era pros humanos, não pros bichos, gatos, cachorros, pássaros, aves ou borboletas. Tanto que o encontro entre pardaloca e bem-te-vi aconteceu, de manhãzinha, em plena Rua da Saudade.
― Fazendo o que aí, Neguda?
― Não é da sua conta, Fredoca!
Pela resposta, a pardaloca não estava pra conversa ou troca de amenidades. Mas o bem-te-vi, que via tudo e sabia das coisas, não ia desistir facilmente.
― Obrigado pela resposta educada ― respondeu Fredoca, irônico ―, mas nossa amizade conta muito.
― Hum… ― piou Neguda fingindo desinteresse. ― Me desculpe, mas não estou para papo com bem-te-vi nem pituã ― acrescentou a pardaloca, equilibrando-se no fio de eletricidade.
O bem-te-vi, que sentiu ali a chance para uma aproximação, deu dois pulinhos no topo do poste da iluminação pública em que estava empoleirado e de onde falava (à maneira das aves canoras), um pouco acima da pardaloca.
― Você corre risco, miga, de levar um choque daqueles! Não abuse da sorte!
― Que choque, que nada! Estou muito bem aqui. Muito bem no fio da navalha do amor. Veja com seus próprios olhos.
Naquele ponto da conversa, o bem-te-vi compreendeu que a situação era muito mais complicada do que ele havia imaginado. Era mais que um capricho duma pássara metida a besta. Então todo cuidado era pouco…
― Como assim, miga? Que está havendo consigo? ― Era primeira vez na vida que usava aquele pronome estranho…
― Comigo? Nada. Vou muito bem, obrigada, veja ― fez um rodopio, balançou e não caiu, como se fosse um equilibrista de circo. ― E então?
Sejamos sinceros e informados: esse negócio de linha de transmissão de energia é mais para andorinha ou eletricista da concessionária de energia. Pardais em geral se dão melhor com muros, telhados, playground e chão de terra. Ou empoleirados em galhos. Portanto, aquela cena era uma temeridade…
― Quanto equilíbrio, Negudinha! Bem que eu vi! ― Fingiu a ave passeriforme, mas pê da vida com a loucura que a amiga estava prestes a cometer. Interiormente já suplicava ao protetor dos bichos, São Francisco de Assis…
Enquanto a pardaloca, louca da vida, agora se equilibrava numa única patinha! Para desespero do bem-te-vi, que, muito preocupado, apelava para que a amiga não fizesse aquilo.
― Preocupa comigo não, moço. Estou bem. Em vez disso, vá curtir o sol, que está uma brasa. Quem vê cara não vê coração! ― Já filosofava a desajuizada pardaloca.
O bem-te-vi soltou um longo assobio antes de passar à última tentativa, que consistia em se oferecer para pousar no fio elétrico e fazer companhia à pardaloca… Mas ela não aprovou a ideia.
― Alto lá, forneiro! Dispenso seu biscoito. Se se aproximar, eu pulo ― ameaçou a louca.
― Cuma é? Só quero ajudar. Oxente!
― Nem pense nisso, joão-de-barro. Pegue sua autoajuda e…
O bem-te-vi não gostou nem um pouco de ser chamado de João, calando-se em seguida. Sem poder fazer nada, ficou esperando o desfecho daquela brincadeira patética e irresponsável ali na Rua da Saudade… Suicídio por amor ― repetia para si.
A rua continuava deserta, as pessoas confinadas em seus lares, o sol queimando lá fora, a vida por um fio, a eletricidade rimando com saudade…
O bem-te-vi ― empoleirado no poste ― tinha a noção exata do perigo, enquanto a pardaloca seguia na mesma posição, indiferente ao choque elétrico e fatal, esperando o quê? Esperando o amor.
Eis que, de repente, um pardal vindo não se sabia de onde, pousou ao ladinho dela, no mesmo fio, fez um cafuné e a intimou: Vamos?
Em seguida, coladinhos, partiram sem rumo nem direção, para alívio e inveja do bem-te-vi, que não pensou duas vezes em viralizar o milagre amoroso que unira pardal e pardaloca…
― Meus amigos, juro que eu vi. Podem me acreditar.
Naquele dia o sol não queimou o bicho homem, preso em si mesmo, mas abençoou o amor de pássara e passarinho.
Almir, que conto leve e gostoso! Bem estruturado, diálogos inteligentes, um autêntico texto de domingo, mas que só li agora, nessa segunda-feira, para minha sorte.
Grande abraço!
Gostei do diálogo entre pássaro e passarinha, muito criativo. Um toque de leveza em qualquer dia de pandemia sempre é bem-vindo. Parabéns.
Agradável leitura, com narração e diálogos se alternando mansamente. Parabéns, Almir!
Muito bom, parabéns.
Um continho amoroso, entre pássaro e pássara, para animar este domingo de pandemia!
Gratidão, EntreContos, pelo espaço dedicado à divulgação do conto brasileiro.
Continuem se cuidando, meninos e meninas! Vacinação para todos e todas já!