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Detox Literário.

A Pardaloca e o Bem-te-vi – Conto (Almir Zarfeg)

O dia acordou mandando sol para todos os lados, à maneira de beijos, mas a orientação geral era que todos ficassem em casa. Fiquem em casa para não se queimar! Sendo possível, permaneçam adormecidos! 

A ordem era pros humanos, não pros bichos, gatos, cachorros, pássaros, aves ou borboletas. Tanto que o encontro entre pardaloca e bem-te-vi aconteceu, de manhãzinha, em plena Rua da Saudade. 

― Fazendo o que aí, Neguda?

― Não é da sua conta, Fredoca! 

Pela resposta, a pardaloca não estava pra conversa ou troca de amenidades. Mas o bem-te-vi, que via tudo e sabia das coisas, não ia desistir facilmente. 

― Obrigado pela resposta educada ― respondeu Fredoca, irônico ―, mas nossa amizade conta muito. 

― Hum… ― piou Neguda fingindo desinteresse. ― Me desculpe, mas não estou para papo com bem-te-vi nem pituã ― acrescentou a pardaloca, equilibrando-se no fio de eletricidade. 

O bem-te-vi, que sentiu ali a chance para uma aproximação, deu dois pulinhos no topo do poste da iluminação pública em que estava empoleirado e de onde falava (à maneira das aves canoras), um pouco acima da pardaloca. 

― Você corre risco, miga, de levar um choque daqueles! Não abuse da sorte! 

― Que choque, que nada! Estou muito bem aqui. Muito bem no fio da navalha do amor. Veja com seus próprios olhos. 

Naquele ponto da conversa, o bem-te-vi compreendeu que a situação era muito mais complicada do que ele havia imaginado. Era mais que um capricho duma pássara metida a besta. Então todo cuidado era pouco…

― Como assim, miga? Que está havendo consigo? ― Era primeira vez na vida que usava aquele pronome estranho… 

― Comigo? Nada. Vou muito bem, obrigada, veja ― fez um rodopio, balançou e não caiu, como se fosse um equilibrista de circo. ― E então? 

Sejamos sinceros e informados: esse negócio de linha de transmissão de energia é mais para andorinha ou eletricista da concessionária de energia. Pardais em geral se dão melhor com muros, telhados, playground e chão de terra. Ou empoleirados em galhos. Portanto, aquela cena era uma temeridade… 

― Quanto equilíbrio, Negudinha! Bem que eu vi! ― Fingiu a ave passeriforme, mas pê da vida com a loucura que a amiga estava prestes a cometer. Interiormente já suplicava ao protetor dos bichos, São Francisco de Assis… 

Enquanto a pardaloca, louca da vida, agora se equilibrava numa única patinha! Para desespero do bem-te-vi, que, muito preocupado, apelava para que a amiga não fizesse aquilo. 

― Preocupa comigo não, moço. Estou bem. Em vez disso, vá curtir o sol, que está uma brasa. Quem vê cara não vê coração! ― Já filosofava a desajuizada pardaloca. 

O bem-te-vi soltou um longo assobio antes de passar à última tentativa, que consistia em se oferecer para pousar no fio elétrico e fazer companhia à pardaloca… Mas ela não aprovou a ideia.

― Alto lá, forneiro! Dispenso seu biscoito. Se se aproximar, eu pulo ― ameaçou a louca. 

― Cuma é? Só quero ajudar. Oxente! 

― Nem pense nisso, joão-de-barro. Pegue sua autoajuda e… 

O bem-te-vi não gostou nem um pouco de ser chamado de João, calando-se em seguida. Sem poder fazer nada, ficou esperando o desfecho daquela brincadeira patética e irresponsável ali na Rua da Saudade… Suicídio por amor ― repetia para si. 

A rua continuava deserta, as pessoas confinadas em seus lares, o sol queimando lá fora, a vida por um fio, a eletricidade rimando com saudade… 

O bem-te-vi ― empoleirado no poste ― tinha a noção exata do perigo, enquanto a pardaloca seguia na mesma posição, indiferente ao choque elétrico e fatal, esperando o quê? Esperando o amor. 

Eis que, de repente, um pardal vindo não se sabia de onde, pousou ao ladinho dela, no mesmo fio, fez um cafuné e a intimou: Vamos?

Em seguida, coladinhos, partiram sem rumo nem direção, para alívio e inveja do bem-te-vi, que não pensou duas vezes em viralizar o milagre amoroso que unira pardal e pardaloca… 

― Meus amigos, juro que eu vi. Podem me acreditar. 

Naquele dia o sol não queimou o bicho homem, preso em si mesmo, mas abençoou o amor de pássara e passarinho.

5 comentários em “A Pardaloca e o Bem-te-vi – Conto (Almir Zarfeg)

  1. thiagocastrosouza
    15 de março de 2021
    Avatar de Thiago de Castro

    Almir, que conto leve e gostoso! Bem estruturado, diálogos inteligentes, um autêntico texto de domingo, mas que só li agora, nessa segunda-feira, para minha sorte.

    Grande abraço!

  2. angst447
    8 de fevereiro de 2021
    Avatar de claudiaangst

    Gostei do diálogo entre pássaro e passarinha, muito criativo. Um toque de leveza em qualquer dia de pandemia sempre é bem-vindo. Parabéns.

  3. Anderson Prado
    24 de janeiro de 2021
    Avatar de Anderson Prado

    Agradável leitura, com narração e diálogos se alternando mansamente. Parabéns, Almir!

  4. Gildásio
    24 de janeiro de 2021
    Avatar de Gildásio

    Muito bom, parabéns.

  5. Almir Zarfeg
    24 de janeiro de 2021
    Avatar de Almir Zarfeg

    Um continho amoroso, entre pássaro e pássara, para animar este domingo de pandemia!

    Gratidão, EntreContos, pelo espaço dedicado à divulgação do conto brasileiro.

    Continuem se cuidando, meninos e meninas! Vacinação para todos e todas já!

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Publicado às 24 de janeiro de 2021 por em Contos Off-Desafio e marcado .