Excerto dos Obituários dos jornais Daily Telegraph, Standard e Daily News
Este texto se dedica, em parte, a narrar o caso de Ivan Ilitch, falecido há alguns meses. É uma narrativa sem o esmero literário do meu caro amigo, o Dr. John Watson, que infelizmente não pôde escrever esta estória. Caso o leitor esteja se perguntando por que a morte natural de um burocrata russo figura entre obituários de jornais ingleses, recomendo a leitura dos meus artigos sobre a ciência da dedução, em que enalteço a virtude de observar. O bom observador só precisará deste parágrafo para compreender todo o texto, o restante ficará às voltas com adivinhações.
Tratava de negócios pessoais na terra dos czares quando ouvi da morte que intitula o texto. Não soube pela leitura de obituários, como agora ficam sabendo, mas a partir do falatório embriagado de um jovem, o que por lá chamam de mujique. Ele parecia um tanto emocionado ao falar de seu patrão. Alguém perguntou se era aquele que saíra noticiado no jornal e assim eu soube o nome do desafortunado: Ivan Ilitch Golovin.
Um cidadão inglês certamente se sobressaía naquela taverna sombria, o que mesmo assim deixou de ser notado pelo rapaz, o qual logo eu descobriria se chamar Guerássim. Cheguei mais perto para escutar. A lástima e a bebedeira não fazem nenhum favor ao idioma russo, mas minha experiência com a língua possibilitou compreendê-lo.
─ Eu confesso! No começo eu não gostava do patrão Golovin… Mas então ele adoeceu e foi quando finalmente o conheci. Ele me contou da infância, das vezes em que a mãe presenteou ele e os irmãos com pirojkis e esses mesmos bolinhos o fizeram ter uma briga feia anos depois, na faculdade… no fim, eu acho que ele apreciava a minha companhia mais do que a da própria família… eu não o culpo. Eu fui encarregado de jogar seus dejetos fora sempre que enchesse o vaso e vou dizer o que acho: tive a sensação de que a família lidou com o pobre senhor Golovin da mesma forma que eu lidava com aqueles vasos asquerosos.
Alguém insinuou assassinato. “A viúva certamente ganharia uma pensão, afinal”. Guerássim negou veementemente, mas ali eu encontrei minha primeira pista. Não foi difícil persegui-la. Como já lhes informou meu amigo Watson, dominei algumas qualidades que considero de suma importância ao ofício do detetive, dentre as quais o disfarce. Não foi preciso muito. Por alguma razão na qual não rastreio lógica, enxergam certo refinamento no homem inglês, então fiz minha pesquisa como um repórter britânico. Não resisti à tentação de usar o meu próprio nome. Como as minhas aventuras publicadas não foram traduzidas para o russo, não fui reconhecido.
Ivan Ilitch morreu doente após três meses de lenta e consistente agonia, tendo passado também três dos seus últimos dias não poupando um minuto sequer dos seus gritos, como eu viria a saber mais tarde. Tratando-se de um juiz, um possível assassinato nos dá uma variedade de suspeitos. Lendo os processos que levara a cabo, identifiquei um magistrado experiente, comedido em suas decisões e nunca, exceto nas poucas semanas precedentes à sua saída, errôneo em suas interpretações da lei. Sendo um perfeito burocrata, condenou mais do que absolveu. A Igreja Ortodoxa tem grande influência na Justiça russa, de modo que as chamadas seitas dissidentes poderiam ter escolhido o pobre Golovin para vingança. Por outro lado, o assassino poderia ser qualquer um de seus condenados. E esta era apenas a sua vida funcional!
O repórter Sherlock Holmes conversou com a viúva, com os filhos e com aqueles que a família indicou como amigos do falecido. Vestida toda de preto, a viúva Prascóvia Fiódorovna se esforçou ao máximo para parecer comovida pela morte do marido, o rosto ruborizado do esforço que fez para chorar. Com uma sutileza quase imperceptível conseguiu perguntar o quanto se pagava pela sua participação na reportagem. A filha, que era a mais velha e já se encontrava casada e mudada para outra residência, parecia ter esquecido que o pai havia vivido e morrido. Em outras palavras, estava ocupada e grávida demais para lidar com o luto. Mais reativo foi o filho do morto, ainda um ginasiano. Entrevistei-o na mesma ocasião em que conversei com a viúva e cada palavra do rapaz foi dita sob o olhar inquiridor da mãe. Mas ele não precisou fingir, o choro estava no garoto mesmo antes das lágrimas saírem, metendo soluços onde deveriam estar palavras. Perguntei sobre o que mais gostava no pai e foi quando ele realmente começou a chorar. Menti dizendo que teríamos outra chance de conversar, ao que o menino sorriu pela primeira vez. Era evidente que não sabia nada sobre o pai, então o que poderia me responder?
Foram os tais amigos de Ivan Ilitch que me possibilitaram conhecer o finado. Não por uma descrição minuciosa, pois estes sabiam apenas um pouco mais do que o ginasiano choroso. O que ocorre é que a performance era idêntica àquela do juiz morto. Aliás, já havia sido substituído, então era apenas um morto. Foram todos agradáveis e decentes, como eu soube que havia sido Ivan Ilitch. Foi-me concedida a honra de acompanhá-los até a casa de um deles e descobri na residência do magistrado uma cópia daquela que eu havia visitado naquele mesmo dia, exceto por um detalhe distinto na cortina, um bronze de outro tipo, um tapete de outra cor. Mas eram os mesmos componentes, os mesmos ares, a mesma intenção. Era uma casa agradável e decente, digna das pessoas importantes que eram.
Nenhum deles assassinou Ivan Ilitch. E eu sei que nenhum dos réus condenados pelo falecido perpetrou esse suposto assassinato. Ivan Ilitch Golovin morreu de uma doença não plenamente identificada e não se passa de uma memória inconveniente tocada com conveniência calculada por colegas e familiares. Eu sabia disso antes mesmo de perseguir aquilo que instintivamente escrevi acima como uma “pista”. Peço desculpas por esse erro de denominação, meus caros. Watson também vos informou de meus hábitos com as injeções de cocaína e tenho abusado ultimamente, contra o que ele certamente protestaria.
O que me intrigou no caso de Ivan Ilitch não foi tanto a natureza da sua morte, mas a do seu esquecimento. Existe uma regra para a sociedade, um conjunto de convenções, escritas e não escritas, que variam pouco cá e acolá de nossas civilizações modernas e Ivan Ilitch Golovin as seguiu com uma excelência admirável. Eu, por outro lado, criei-me para divergir dessa regra. Não por capricho, mas apenas porque segui-la limitaria aquilo que me é caro: descobrir aquilo que não querem que seja descoberto. A curiosidade por si só me colocaria atrás de qualquer mistério medíocre, caso não fosse um detetive. Persigo o crime e frequentemente me vejo caminhando com naturalidade e, confesso, alegria, em cenários que deixariam nauseados os mais corajosos cavalheiros. Vivemos lados opostos das regras, eu e Ivan Ilitch. Enquanto o burocrata russo foi meticuloso em se fazer à imagem perfeita daquilo que esperariam de alguém em sua posição, eu nunca me importei em seguir as convenções. Mesmo assim, as convenções estavam ali, próximas ou distantes.
Há algo que me iguala a Ivan Ilitch, apesar disso.
A minha fama fez bem aos negócios, embora nunca tenha a almejado. Ela existiu pelo empenho criativo e romântico do Doutor John Watson ao escrever e publicar nossas investigações. É certo chamá-la de nossas, pois logo me acostumei a ter sua companhia em boa parte dos meus casos. O que eu achava simples surpreendia Watson com sinceridade e o deixava curioso o suficiente para escrever uma série de estórias. Nunca, ao menos até ser tarde demais, compreendi que sua admiração não era pela ciência da dedução, mas por mim. O que ocorria ao meu amigo era apenas a cara estupefação de um leigo. Escrevo para agradecê-lo por isso. Se já errei ao me sentir importante, devo isso a ele.
O leitor continua desperdiçando seu tempo com adivinhações? Escrevo para informá-los do lamentável falecimento do Doutor John H. Watson, ocorrido há um mês, pouco antes do meu retorno da Rússia. Reconheço no meu amigo falecido um único olhar sincero, que concedia a mim não a admiração de algo exótico, como se visse alguma atração de circo, mas a fraternidade de um verdadeiro amigo. Temo que, sem Watson, o meu futuro é o mesmo de Ivan Ilitch Golovin. Vivendo para cá ou para lá das convenções, eu e o juiz compartilhamos da mesma solidão, agora absoluta. Não sei se o meu correspondente russo a percebeu antes que fosse tarde demais, mas posso afirmar que eu poderia ter aproveitado antes de estar sozinho como estou agora. Não acho que a minha morte será tão efêmera quanto a de Ivan Ilitch. Confio em certa persistência da minha imagem pública como alguém excêntrico e misterioso, o que se deve em muito ao deslumbramento das narrativas pelas quais vim ser conhecido. É um erro confundir estranheza com mistério.
O homem que sou, entretanto, só foi conhecido completamente pelo meu parceiro e não foi levado às páginas. O único mistério que se faz ao meu redor não existe pelo meu esforço, mas pela morte que enterrou o único que realmente me conheceu e se esforçou para fazer do meu nome algo conhecido. Descanse em paz, querido amigo.
…………………
Este conto reaproveita a proposta fanfic do desafio anterior para homenagear minhas últimas leituras: “Um estudo em vermelho”, de Arthur Conan Doyle, que apresenta Dr. Watson e Sherlock Holmes, e “A morte de Ivan Ilitch”, Lev Tolstói, cujo título é autoexplanatório.
Olá, Pedro,
bem legal o conto. Procurei aqui em casa pelo original, a novela do Tolstói, mas não o encontrei. Deve estar perdido atrás de outros livros. Voltei a lê-lo faz alguns meses. A Morte de Ivan… é uma novela bem bacana.
O ato de revisitar heróis é uma ideia e tanto. Vê-los sob uma ótica pessoal, contar uma história subliminar àquela “original”. Um mistério, realmente, a morte de Ivan Ilitch.
O final do seu conto, você faz um apanhado de suas visitas, mas, não sei se casual ou não, você se esqueceu de um personagem: Guerássim, o mujique do conto Mumu de Ivan Turguêniev:
… Mumu pôs-se a comer, mal encostando o focinho na comida. Guerássim ficou observando-a longamente, duas pesadas lágrimas rolaram dos seus olhos: uma caiu sobre a cabeça da cadelinha, e a outra na sopa. […] Finalmente, Guerássim aprumou-se e, com raiva, atou a corda aos tijolos que apanhara, fez um laço, colocou-a no pescoço de Mumu, ergueu a cadela sobre o rio, olhou-a pela última vez. …
Bem, imaginou que foi dele que você trouxe a tal figura.
Abraços, Pedro.
Olá, Ângelo! Primeiramente, agradeço muitíissimo pela leitura e por compartilhar suas impressões. Vale muito para mim.
Sobre a sua observação, na minha lenta progressão na leitura dos russos, Turguêniev continua sendo apenas um nome conhecido que infelizmente não li. Entretanto, o personagem Guerássim figura entre os trazidos por Tolstói em “A morte de Ivan Ilitch”! É o mujique que parece ser o único a se compadecer verdadeiramente pelo sofrimento do moribundo, concedendo a ficar conversando com Ilitch enquanto segura suas pernas acima dos ombros. Então é daí que trouxe o personagem.
Abraços e, de novo, obrigado por ler!
Olá, Pedro,
um prazer ler o teu texto.
Ironia: lembrei de algo tão distante – quando fui até Turguêniev e seu Mumu e Guerássim – e esqueci de algo tão próximo – o próprio conto do Tolstói. Confesso que não me lembrava desse personagem.
Como alento, digo que procurei aqui em casa pelo livro para melhor escrutínio, mas não o encontrei.
Fico devendo melhores palavras.
Grande abraço.
Que divertido, Pedro! Acho que a proposta era essa, né?, divertir…
Seria uma bela fanfic no desafio! (Apesar que a sua fanfic lá foi bela, né?, até mais trabalhada e sofisticada do que essa aqui…)
E não poderia ser acusada de literatura de entretenimento! (Ai, acho que nunca vou me perdoar por isso!)
Mas, entregando-me ao completo sincericídio, prefiro mil vezes esta história humana, divertida e sensível aqui do que aquela coisa fantástica de lá.
Sabe que esse seu texto ficou enternecedor?! Fiquei triste com a morte do Watson! Veja que fofinha essa frase: “Nunca, ao menos até ser tarde demais, compreendi que sua admiração não era pela ciência da dedução, mas por mim.” Ownt!
Há um quê de metalinguagem aqui também, né? Até uma certa aproximação com o trabalho que fiz com “O coronel…”. Você pegou o protagonista, colocou ele pra narrar em primeira pessoa e, a partir daí, subverteu não apenas uma, mas duas ficções originais!
Sabe que gostei da pegadinha a que você nos levou (seus leitores)? Desde o primeiro a parágrafo, eu já me obriguei: “não vou perder nenhuma pista!, vou desvendar esse crime! o abracadabra não vai me pegar!”. Pois bem, foram inúteis meus esforços! Caí no abracadabra: “O leitor continua desperdiçando seu tempo com adivinhações?” Sim, sim, sim!!!
Não identifiquei erros de digitação, ortográficos ou gramaticais, mas colocaria umas vírgula depois de “imperceptível “: “Com uma sutileza quase imperceptível conseguiu perguntar o quanto se pagava pela sua participação na reportagem.”
E considero “estória” um arcaísmo.
Gostei de algumas frases – muitas para um texto tão curto (além das duas já transcritas):
– “o choro estava no garoto mesmo antes das lágrimas saírem, metendo soluços onde deveriam estar palavras”;
– “não se passa de uma memória inconveniente tocada com conveniência calculada por colegas e familiares”;
– “descobrir aquilo que não querem que seja descoberto”;
– “Ela existiu pelo empenho criativo e romântico do Doutor John Watson ao escrever e publicar nossas investigações.”;
– “O que eu achava simples surpreendia Watson com sinceridade e o deixava curioso o suficiente para escrever uma série de estórias.”;
– “O homem que sou, entretanto, só foi conhecido completamente pelo meu parceiro e não foi levado às páginas. O único mistério que se faz ao meu redor não existe pelo meu esforço, mas pela morte que enterrou o único que realmente me conheceu e se esforçou para fazer do meu nome algo conhecido. Descanse em paz, querido amigo.”
Parabéns pelo texto! Fiquei feliz por ler você graciosamente (sem desafio)!
Obrigado pela leitura e pelos elogios, Anderson!
Veja, sobre o texto divertir, confesso que o escrevi visando diversão, mas mais pensando na minha! Algumas coisas convergiram para a escrita desse texto. Quis aproveitar uma ideia que me veio à cabeça, baseada no fato do título da novela do Tostói me parecer exemplar para uma história de detetive. Gosto muito do Sherlock Holmes e estava relendo algumas de suas estórias que já li em preparação para outras que me são inéditas, já que adquiri a obra completa há alguns anos.
Além disso, eu tenho muitas ideias, mas geralmente são esquecidas ou ficam voltando para me atormentar com o fato de que não as escrevi. Como era uma ideia simples, decidi não perder tempo e a redigi de vez. Também foi a oportunidade que me dei de escrever em primeira pessoa, pois é o primeiro texto que publico dessa forma (talvez fique como único, continuo preferindo a terceira pessoa).
Como conto, acho que deixa a desejar, mesmo tendo dissimulado a estória que queria contar como um recorte de jornal. Basicamente, o primeiro parágrafo é um desafio, o desenvolvimento se faz num falso mistério (sustento que o parágrafo introdutório diz tudo logo de cara) e o final se encaminha a partir de uma reviravolta. Apesar desses elementos ficarem bem evidentes e não darem numa história elaborada, a julgar pelo seu comentário acho que deu certo e fico feliz! Tive medo de ser melodramático ao invés de singelo.
Abraços! Esperamos que possamos nos ler mais e mais.