Andava tranquilo pela rua, quando vi a criatura. Era um homem de estatura média, um pouco forte, bem vestido, alinhado, mas com andar um pouco despojado, e no lugar de cabeça de gente, tinha cabeça de urubu. Esfreguei um pouco os olhos, mas ele não sumia. Estava ali. Parei na calçada e observei com certa cautela o que ele iria fazer. Olhei ao redor, as outras pessoas seguiam seus afazeres com naturalidade. Olhei mais atentamente para o sujeito, que parou em frente a um bar e ficou a procurar alguma coisa no bolso, antes de entrar. Dei dois passos em direção ao boteco, quando alguém me gritou. Depois de um tempo de sobressalto, pelo grito e pelo espanto do que tinha visto, atendi ao chamado.
Era Roberto, que veio logo me empurrando para irmos para a firma. Estava na hora. Colocou a mão no meu ombro e foi contando qualquer coisa que não prestei muita atenção, concentrado que estava em tentar distinguir dentro do bar o urubu humano. Enquanto andávamos, tentei enxergar melhor por outros ângulos, mas Roberto estava na frente. Só dava para ver mesmo diversas silhuetas em movimento. Então, não consegui mais do que deduzir qual dos presentes ali era o sujeito. Logo adiantamos e o bar sumiu da vista.
Quando voltei ao meu colega, ele falava do aumento que iríamos ter nesse mês. Estava empolgado. Dei um sorriso leve de comemoração, pensando em uma velha lista de compras que talvez pudesse começar a eliminar. Mas logo a visão do homem-pássaro voltou a me espantar, feito um incômodo que volta depois de um momento de esquecimentos e ocupações. Quase falei qualquer coisa pra Roberto, mas desisti.
A manhã estava nascendo ainda. Crianças indo para escola, carros passando lentos, uma atmosfera arrastada, ânimos brotando e se incendiando e se esbarrando no grande calor que fazia naquele começo de dia. Eu segui olhando para todos os lados, prestando muita atenção em tudo, assustado, o que levou Roberto a me questionar sobre uma possível noite mal dormida ou qualquer outro problema. Neguei. Embora a pergunta tenha me feito tentar puxar pela memória o sonho da noite anterior. Em vão. Ao contrário, eu sentia que o próprio dia tinha clima de sonho.
Chegamos à firma. Roberto logo se afastou, cumprimentando outros funcionários e seguindo para seu posto. Num movimento involuntário, olhei para trás antes de entrar de vez no dia de trabalho. O ambiente era rígido, profissional. Trabalhava ali há pouco tempo e quase não tinha feito amigos. Entrei no escritório e fui direto para o computador. Meu chefe imediato, já instalado, fez um cumprimento vago, que eu correspondi à altura. Suspirei e olhei pela janela por onde entravam raios já fortes de sol.
Teria enlouquecido de vez? Que sentido faria aquela visão? Será que só eu tinha visto? Passei a manhã e a tarde de trabalho naturalmente aflito, ansioso, me questionando do porquê de estar ali agindo normalmente, sabendo da existência de uma criatura daquela perambulando pelas ruas. Na volta para casa, fui a passos rápidos passar pela calçada do bar para poder olhar bem para dentro. Cheguei a parar. Quando percebi algumas pessoas me olhando, vi que tinha demorado mais do que o devido para quem não vai entrar e nem sair. Segui adiante. Em casa, continuei com aquele ar pensativo. O que eu podia fazer? Sair por aí perguntando? Polícia? Prefeitura?
Mônica, minha esposa, notando o meu desconforto, deixou-me ali sem muita cerimônia. Ela nunca teve paciência de me ver daquele jeito, estressado. Saiu. Fui para o quarto, sentei na cama e fiquei paralisado, deu em mim essa sensação paralisante. Como ignorar o fato de existir alguém assim na rua? Talvez eu devesse procurar compartilhar aquilo. Mas se todos já pareciam saber? Então, por que temer? Pensando isso, descobri um medo ainda maior: e se para todo mundo aquilo estivesse sendo normal e só eu não soubesse? Muita gente passou por aquele sujeito e não reagiu de nenhuma forma. O que estaria acontecendo? Havia eu sido tomado assim, repentinamente, pela loucura? Espantei-me com a hipótese e tratei de livrar-me rapidamente dela.
Levantei, tomei banho e saí. Não podia ficar cercado por aqueles pensamentos todos dentro de casa. Eu tinha pouco tempo para um relaxamento qualquer. No outro dia tinha que acordar cedo novamente. As noites são muito curtas no meio da semana. Olhei o relógio e senti essa cobrança. Mas continuei. Passei por algumas ruas vazias, até que cheguei a uma praça com certo movimento de pessoas. Sentei em um banco que sobrava. O sereno da noite me agradava. Talvez eu estivesse esquentando demais com uma visão que provavelmente fosse só minha. Começava a acreditar que podia muito bem ter sido uma impressão errada da fisionomia de alguém. Eu devia estar com muito sono, cansado. Respirei fundo e olhei as pessoas passando. A cidade não estava abalada. Não havia motivo para me esquentar. Olhei mais uma vez para tudo e estava tudo em ordem. Levantei mais tranquilo e aliviado. Posso ir para casa e dormir, logo esqueço isso.
Mas foi apenas dar o primeiro passo, que o vi novamente. Estava ali na praça. Dessa vez o flagrei de lado. Dava para ver muito claramente o seu bico curvado, sua cabeça preta, enrugada, seus olhos totalmente negros. Agora estava usando um chapéu. E não estava só. Conversava com ginga de moleque com outras pessoas, que faziam uma roda em um canto da praça. Meu coração ficou aos pulos, minha mão gelou. Tremi.
Meus pensamentos paralisaram outra vez. Senti como se algo tivesse me cercado e de um modo definitivo. O que eu deveria fazer com aquilo? Por que aquilo exercia esse peso todo sobre mim? Se todos estavam tranquilos… Fiquei olhando para a reação das outras pessoas, de fora daquele grupo. Elas ignoravam tudo. Um desespero subiu pela minha garganta. Gritei. Um grito animalesco saiu de dentro de mim, sem nem eu mesmo esperar. Senti um pavor, um medo de mim. Um pouco de lágrima escorreu. Algumas pessoas olharam para mim espantadas. Mães puxando os seus filhos para se afastarem. Com uma respiração forte, olhei ao redor. Meu grito realmente tinha chamado atenção. Pensei em apontar para aquela aberração e questionar a todos. Se isso fosse um pesadelo, sei que já teria feito isso. Mas era real. Dava vontade de chorar. Corri.
Parei em uma rua vazia e coloquei as mãos sobre os joelhos. Por que aquilo me afligia tanto? Se o mundo estava em ordem? Eu estaria mesmo saindo da linha? Olhei para o relógio e já era bem tarde. Era preciso dormir, descansar. Não podia me desregular daquela maneira por uma tolice. Que isso fosse fácil de resolver, ansiei. Eu não podia me perder assim. Uma consciência forte lutou dentro de mim, resistindo a qualquer perdição. Ergui-me. Se todos se acostumaram com a aberração, era possível que, mais cedo ou mais tarde, eu passasse a encarar isso com naturalidade. E nem era da minha conta aquilo existir. Pensei, saindo do espanto para a moral. Voltei para casa com esse avançar e retroceder de normalidades, com o pensamento de compartilhar isso com alguém na próxima oportunidade, com o desejo de resolver de vez a situação.
Quando cheguei em casa, minha esposa já estava dormindo. Deitei e abracei-a com uma leve força. Ela acordou, deu um sorriso calmo e voltou a dormir, abraçando-me de volta. Demorei um tempo, mas acabei dormindo. Com a cabeça daquele jeito, sonhei. O mundo era todo feito de urubus, todos voavam para todo lado e eu não conseguia saber da minha própria aparência. Passava por uma rua de minha infância e os via, no céu, em cima de uma árvore, no poste, perto de algum lixo. A cidade estava cheia deles. Quando eu me aproximava de algum, ele crescia ensaiando tomar forma de humano. Daí, eu me afastava. Preferia-os menores, voando. Então, senti-me criança e corri, corri para que pudesse vê-los voar. E todos voaram. Aquilo me dava alegria. Acordei.
Mônica, já arrumada para trabalhar, me acordou se despedindo, apressada. Levantei com o sonho se diluindo pela pressa. Nem comi direito e fui rapidamente para a firma. Essa forçada aceleração deu uma pequena trégua aos pensamentos do dia anterior. Aproveitei, iludido. No caminho, olhei para ver se Roberto estava vindo. Não estava. Segui. Olhei para o bar. Não dava para enxergar bem, se não me aproximasse. Não me aproximei. Prossegui. Tentei forjar uma tranquilidade em mim. Era mais um dia de trabalho que eu precisava cumprir. Nada deveria me atrapalhar assim. Abandonei todas as promessas do dia anterior. Considerava agora que todas seriam loucuras. Olhei para o relógio várias vezes, esquecendo sempre a hora e conferindo novamente. Senti que estava atrasado, mas não me concentrei.
Um bando de pombos passou voando do chão sujo da rua para a altura das casas. Seguia-os, distraidamente com o olhar, quando, de relance, na sacada de um prédio, vi, pela terceira vez. Ele estava debruçado, fumando. Olhava contemplativo para o horizonte. Meu corpo paralisou. Definitivamente, eu não conseguia me acostumar. Aquilo era concretamente uma realidade. Ele dava tragadas leves e olhava meio melancólico para frente. Fiz um movimento forçado para recomeçar meus passos e ignorar. Cheguei a dar alguns. Porém, por dentro, senti que não aguentaria mais aquela agonia se prolongando e não se resolvendo. Então, numa resolução cega, dei meia volta e fui direto para a entrada do prédio onde ele estava. No caminho, vi pela fachada que se tratava de uma pousada. Num súbito de coragem, subi as escadas com pressa, como quem precisa resolver algo. Ignorei as pessoas pelo caminho, deduzi em que quarto ele estaria e bati.
Fez-se silêncio. Naquele momento de coragem, o maior medo foi o de voltar ao meu estado normal e não saber o que fazer. E isso me deu mais pressa. Bati com mais força, insistentemente, até ouvir barulhos de chaves do outro lado. O movimento da porta me impacientou, me fez suar frio. A porta abriu. Era ele, completamente como eu tinha visto antes. Era real e estava agora bem na minha frente.
– O que deseja? – perguntou-me com uma voz rouca de fumante. Titubeie. Só me vinha à mente a idéia de fugir. – Algum problema? – ele insistiu.
– É que, é que, eu nunca tinha visto… – falei muito reticente.
– Visto o que? O que você vê? – perguntou sem deboche.
– A cabeça… – respondi, apontando temeroso.
– Como se chama, rapaz?
– Jorge… – falei, engolindo seco.
– Me chamam de Carlito. – estendeu a mão humana para um cumprimento. Correspondi, tentando distinguir em que traço do seu rosto estava o sorriso que eu sentia em sua amistosidade. Aquele seu comportamento foi me constrangendo. Sua simpatia dominou a relação. Convidou-me para entrar.
Entrando, tentei vislumbrar qualquer excentricidade no local, em vão. Estava eu, ali, enfim, com o objeto da minha aflição de um dia inteiro.
– Eu enlouqueci? – perguntei, impulsivamente, sem nem saber de onde veio a minha pergunta.
Ele emanou mais um sorriso, que agora descobri ser oriundo do canto dos olhos.
– As aves voam. – disse-me em um tom mais sério. – As aves são caçadas e admiradas. – fiquei observando-o boquiaberto, resistindo a acreditar que uma voz humana saía dele. – As aves são vulneráveis e belas. Não há fascínio nem medo maior no homem do que a capacidade de voar. Eu era livre. Fui escolhido entre os meus para cair. E quanta falta faz a mim voar. – finalizou melancólico.
Eu balbuciei alguma coisa, mas meus pensamentos não se formavam bem. Ele, caminhando para a janela, continuou:
– Jorge, perdoe-me por não ter percebido antes, só você me enxergou como sou. – sua voz parecia emocionada. – Desculpe-me por tê-lo deixado vir até aqui sozinho, sem ter te notado antes. Mas nos encontramos.
Aquelas palavras doeram fundo em mim. Minha angústia só cresceu. O tom familiar me assustou:
– Nós nos conhecemos? – perguntei meio debochado, meio temeroso, o que deu ar de ironia desesperada à minha fala. Então, ele olhou mais diretamente para mim, bem na direção dos meus olhos e se aproximou.
– Um urubu come carniça. Um urubu devora restos, engole podridão, todo o asco para os humanos. – dei dois passos para trás, ameaçado. – Um urubu é a ave feia, repugnada, que limpando a sujeira se torna a própria sujeira. O que há de bom em ser urubu? – parou de se aproximar. Mantive os olhos fixos nele, por precaução. Perguntei, corajoso:
– Você é um urubu ou um humano?
Ele não tirou o olhar de mim. Pareceu ignorar a pergunta.
– O que você gosta de comer, Jorge? – seu ar parecia hostil agora. Voltou a se aproximar. – Há tempos você nos observa. Vim aqui saber, então, Jorge, o que você gosta de comer? – enquanto ele falava, me vinham imagens antigas de urubus no quintal de casa, no céu, encolhidos na pedra do rio.
Coloquei as mãos na cabeça, pois doía. A situação parecia precipitada, de uma evolução muito rápida, senti-me em uma vertigem, num precipício. Fechei os olhos, apertando-os com força, até sentir que ele me tocou no ombro. Olhei.
– Já que veio até mim, Jorge, venha voar. Se veio até mim, Jorge, é porque saiu de uma gaiola? Por que nunca veio conosco, e ficou? Ficou esse tempo todo em cima desses pés, com o corpo todo pisando esse chão. Mas, Jorge, tinha que deixar esses olhos de fora? Seus olhos, Jorge, os que te fizeram me enxergar. Perdão por te encontrar, perdão por agora te levar, Jorge, perdão. – E segurou-me pelo braço, guiando-me com força para a janela, com sua voz se confundindo com gritos de ave. Resisti. Com toda a minha força puxei-me de volta.
– Vamos, Jorge, vamos! – gritava. E minha cabeça doía. – Eu vim para você ir. Vamos, Jorge, vai ter medo agora? – E sua voz parecia mais grave agora. Empurrou-me com toda força em direção ao parapeito da janela. Segurei-me lá.
– O que está fazendo?! – gritei, cambaleante e irritado.
– O que você quer, Jorge. Você veio até aqui. Você não pôde mais resistir. Tanta sujeira, Jorge, tanto lixo que tu te tornaste, Jorge. – Repetia meu nome como quem fala com o próprio espelho. – Sua cabeça é um pássaro, Jorge, em um corpo pesado, Jorge. Vamos…
– Não! Não! – eu gritava descontrolado. Parti em sua direção disposto a usar a força que tinha para lutar corporalmente com aquele que havia sido o meu pavor por um dia inteiro.
De olhos fechados travei o combate desesperado, e só fui perceber que penas pretas voavam para todo lado, quando parei. E tudo parou. As penas preenchiam todo o quarto, do chão ao ar. Algumas já flutuavam janela afora. Olhei para todo lado, o homem havia sumido. Não havia onde estivesse. Corri para a janela, procurei e lá estava um urubu alçando voo, se distanciando.
Eu, muito ofegante, olhei aquele voo. Abaixo da janela estavam o seu cigarro e o meu relógio. Dentro do quarto, as penas desapareciam. Vagamente, senti que precisava ir embora dali. Mas o meu olhar já estava longe, sem percorrer distâncias. Eu me senti devorando a imundice do mundo. Era a liberdade. Senti-me muito sujo e invisível dentro daquele prédio. Senti que nada podia me deter e que o mundo inteiro iria voar de mim.
A porta do guarda-roupa estava aberta, o quarto, revirado, e um espelho sobrava na minha direção, fazendo-me ver, sem que eu pudesse evitar, os meus olhos negros, muito negros. Talvez, olhos de urubu, talvez, toda a cabeça. Não voei. O que você gosta de comer, Jorge? Não voei. O olho não voa. Mas a treva orgânica do olho, Jorge, no meio da cabeça do teu corpo pesado, percebe bem o que devora. O que te tornas.
Ótimo conto. Melhor que encontrei até agora.
Muito obrigado, Pedro, pela análise enriquecedora!
É um texto que merece releitura e que mesmo nesta terá impacto. A narrativa é bem estruturada. A primeira metade do conto nos apresenta ao conflito logo no primeiro parágrafo, desenvolvendo a angústia em cada linha do que sucede a introdução. É uma premissa comum e o homem da cabeça de Urubu poderia ser qualquer outra coisa que só o protagonista pode ver, recurso típico de qualquer enredo de teoria conspiratória ou, como é o caso aqui, de uma estória sobre uma gradual degradação. Dentre as duas, gosto muito mais da segunda, aliás. Interessa-me muito!
Apesar de de ter classificado como “comum”, não deixa de ser profundamente intrigante e funciona de duas formas: faz sentir a angústia do personagem, que apesar do esforço fracassado em tentar viver normalmente, não consegue ignorar aquele “mas” (nada muda em minha vida, MAS como pode haver um homem com cabeça de urubu?); e prepara para o clímax do encontro entre o perturbador e o perturbado. Então essa primeira metade do conto faz um bom trabalho em imergir o leitor na confusão do protagonista.
A segunda metade é que dá a substância do texto, distinguindo sobre o que realmente se trata esta estória. Quando se assiste ao desconcerto do protagonista, é notório que uma de suas indagações é que ele não entende porque algo que não abala ninguém mexe tanto com ele. Ou seja, não é a estranheza para aquilo que vê, mas o fato de que as pessoas não dão importância. Isto é revelador não do mundo ou mesmo da criatura quimérica que o assombra, mas dele mesmo. Não surpreende que os urubus marquem visões de sua própria infância. O urubu e seu simbolismo estão nele. E ora, é por isso que o encontro entre Jorge e homem urubu tem tanta força. Pois não é um conhecimento, mas um reconhecimento. Jorge parece normal, não perturba ao mundo, mas ele se vê, reconhece a sua própria imundice, e aquilo que os outros não veem… aquilo que está nele, tão visível para si próprio, o aterroriza.
Assim sendo, a especificidade absurda do conto – a imagem do homem urubu – me pareceu mirar num tema universal, que é como o conhecer a si mesmo inclui tomar nota (talvez num reconhecimento solitário) até da própria imundície. É um tema caro para mim. Conto excelente.
Olá, Anderson! Muito honrado pelas boas vindas!
Gostei bastante dos seus comentários e observações. Pertinentes.
Estou revisando esse texto e os outros. Usarei suas dicas, com certeza! Muito bacana esse espaço!
Abraço!
Olá, Glauber!
Parabéns pelo texto e pela estreia!
Bem-vindo ao EntreContos!
Glauber, você possui excelente domínio da língua e das técnicas de narração.
O seu texto é muito bom e com excelente enredo! Na primeira metade, quando o narrador via o que ninguém via, pensei que eu estivesse frente a uma metáfora política para um país em que a maioria dos eleitores parecem cegos ou míopes, não notando os espécimes horrorosos que escolhem para ocupar certos cargos. Quando seu texto evoluiu, ou seja, já na segunda metade, o que eu estava pensando ser uma metáfora política ganhou contornos mais intimistas, tornando-se um questionamento sobre a natureza do que o narrador (e todos nós, portanto) teria se tornado em razão de seus muitos consumos e escolhas. (O seu texto é meritosamente aberto, o que permite infinitas ilações.)
No grupo do EC no Face, você comentou que pretender incluir ou transformar esse conto em um livro… Bem, você já possui mesmo as qualidades necessárias para publicar um livro: sua escrita é muito boa e você é criativo!
Boa sorte e sucesso!
Anderson do Prado Silva
P.S.: Dicas:
– como o seu texto é narrado no tempo passado, não ficaria melhor se os verbos “poder” e “esquecer” fossem conjugados no futuro do pretérito na seguinte frase “Posso ir para casa e dormir, logo esqueço isso.”? Assim: “Eu poderia para cara e dormir, logo esqueceria aquilo.”;
– em “Gritei. Um grito animalesco saiu de dentro de mim, sem nem eu mesmo esperar.” não seria melhor cortar “saiu de dentro de mim”? (Pois, a não ser que isso esteja de alguma maneira explicado no texto, os gritos saem de dentro mesmo.) Assim: “Gritei. Um grito animalesco, sem nem eu mesmo esperar.” ou “Gritei. Um grito animalesco e inesperado.”;
– você faz a opção estética por frases curtas. Não há, nisso, um mal em si, desde que você possua também domínio da escrita com frases longas, pois um escritor deve saber empregar enunciados de todas as extensões possíveis, dispondo-os no texto para obter a melhor composição. No entanto, no seu texto, teve um único momento em que tive a impressão que ocorreu um pequeno abuso no uso dos enunciados curtos. Foi aqui: “Aproveitei, iludido. No caminho, olhei para ver se Roberto estava vindo. Não estava. Segui. Olhei para o bar. Não dava para enxergar bem, se não me aproximasse. Não me aproximei. Prossegui. Tentei forjar uma tranquilidade em mim.”
A minha imaginação voou. Texto excelente! Mostra como a imaginação de um escritor de qualidade pode triunfar no texto. 👏👏👏
Maravilhoso.
Valeu pela leitura! 🙂