EntreContos

Detox Literário.

A inominável personificação da Literatura – Conto (Caique Sobreira)

Sobre aquela fatídica e ensolarada tarde no campo, seguem breves e singelas notas de um pretenso conto. Estava eu a passar naquele cenário incomum para indivíduos caseiros e avistei duas pessoas, uma delas jogando os cabelos reluzentes ao vento, o sol peneirado por sombras de árvores que carregavam folhas avermelhadas refletia uma luz brilhante diante da sua loira cabeleira, a moça corria pra lá e pra cá, sentindo a natureza, respirando e transpirando os ares, o cheiro das rosas, descalça com os seus pequeninos e belíssimos pés de calçado número 36, ela sentia o macio da grama extremamente esverdeada, havia vida em todos os lados, em todo canto, o cantar dos pássaros nos provava isto, nos fazia conjecturar que assoviavam racionalmente para completar o panorama daquele fausto. Uma cena apaixonante e cinematográfica, os olhos dela cintilantes da cor de mel fitavam-me de uma maneira muito forte, razão pela qual resolvi parar e admirar o contexto, o destino havia reservado que ela estivesse com os óculos em uma das mãos, revelando os irradiantes olhos e, na outra, carregava as suas sapatilhas.

A segunda pessoa que estava lá, ao seu lado, não era menos resplandecente, entretanto, não corria, apenas filmava com uma câmera de última geração os momentos marcantes vividos pela primeira pessoa, a inominável. Registrando cada passo dela e fazendo ela dar risada cada vez mais para que se enquadrasse ao ângulo da filmagem. Bom, os terceiros ao redor, que também curtiam o ambiente e reparavam as cenas descritas, provavelmente devem ter pensado apenas que era uma doidinha serelepe, saltitante sem razões últimas, que sujava seus pezinhos na grama de maneira desleixada, uma verdadeira birutinha desvairada. Mas, lamentavelmente, a minha mente é um pouco poética e a forma que demonstraste estar vivendo aquele espaço só me fez pensar em alguma personagem que estaria ali, como uma espécie de livro poético ou mesmo um romance hollywoodiano, embora eu não fosse muito fã da sétima arte norte-americana, em verdade, a detesto.

Ela mantinha-se sorridente como se estivesse experimentando cada particularidade do lugar, ou melhor, ela era parte da paisagem, em conjunção e sintonia absoluta, de forma que parecia ser a própria natureza em pessoa. Senhorita, você é pura poesia! Nunca imaginei que lhe enxergaria por lentes tão poéticas em minha vida, mesmo após 4 anos conhecendo-a, aquela tarde foi a primeira vez que ao lhe ver senti um frio na barriga, coração acelerado, leveza de espirito e etc. Se me contassem que eu poderia te ver como uma poesia humana há anos atrás, eu daria boas gargalhadas e chamaria isto de uma subjetivação fora da realidade, apenas meras abstrações, às vezes o meu mecanicismo fala mais alto, porém, sentimentos espontâneos tendem a nos surpreender. 

Foi neste elevado patamar que tudo aquilo me veio à cabeça. Você parecia verdadeiramente uma literatura ambulante, a sua altivez e a sua alegria eram estonteantes, dignas de um espetáculo antológico, talvez o único concretamente possível nesta “Sociedade do Espetáculo”, definida por Debord. Tive uma catarse estética e fiquei deslumbrado, meus glóbulos oculares interpretavam por intermédio de estímulos luminosos que você era a própria reencarnação da Julieta, da Alice, da Iracema, da Macabéa, da Anna Karenina, da Gabriela escrita pelo camarada Jorge Amado, e, especialmente, da Carlota a quem Werther tanto se devotou na obra de Goethe. Urge, então, a necessidade de superar esta imagem poética que fiquei da inominável, pois a vida continua e segue caminhando a passos largos, como em uma ampulheta, o tempo se esgota rapidamente ao cair da areia, os relógios não nos servem mais, e tudo que era sólido em algum momento se desmancha pelo ar, Goethe diria que o homem é muito fugaz, transitório e frágil.

Porém, este lapso temporal não se deu comigo, acomete-me um sentimentalismo exacerbadamente senil e infantil, contraditório, eu sei, decrépito e novo ao mesmo tempo, já disse em algumas ocasiões que a dialética está em tudo que me cerca, mas o fato inconteste é que tudo aquilo não me sai da mente. Maldita natureza! Maldita fotógrafa! Maldito sol! Maldita grama! Malditos olhos! Maldito sorriso!!! Por falar na fotógrafa, ela filmava como uma profissional, entretanto, eu nunca fui daqueles que acreditam na substituição dos humanos pelas máquinas, neste caso, confio mais no registro feito pela minha memória, tenho certeza que o meu cérebro captou muito mais os elementos profundos que nós presenciamos lá do que o mero aparelho digital. Foi um baque muito forte, fiquei sem compreender o que estava acontecendo naquele espaço e comigo mesmo, paralisado, estático, só conseguia lhe enxergar em uma poesia, foi tudo muito instantâneo e autêntico, você floresceu do nada de forma esplendorosa! 

A vida prega dessas peças. Por um segundo eu passaria direto e não veria nada disto, perderia uma cena esteticamente perfeita. Por outro lado, também não ficaria idealizando-a com tamanha abstração, como uma fonte de energia deslumbrante, uma exuberância sem igual, delicadeza ao mesmo tempo que força, uma elegância natural. Uma idealização quase que platônica de uma mulher incorporada à natureza, sendo feita desta, mas também expressando-a em suas mais singulares graciosidades, inexistentes nas vidas urbanas. Ela me trouxe uma sensação de essencialidade que eu queria esquecer um pouco, pelo cansaço e exaustão de várias questões pessoais que naquele momento só me legavam o ódio. Caros leitores, eu não estou doido, não. Mas é que, para mim, foi um estarrecimento muito estranho e espontâneo, sabe? Magnificamente excepcional.

Minha querida inominável, eu tinha uma imagem de você mais concreta e real, como uma mulher com suas qualidades e defeitos, cuidadosa com os outros, mas que às vezes se torna chata por excesso, tentando me enquadrar, mesmo que com razão, ou aquela inquieta que deixa as pessoas inquietas, não consegue ficar parada, não cessa suas risadas e trejeitos, sorrindo sempre para alegrar o ambiente/ mesmo quando deixava os outros sem graça sem querer. E, de repente, eu vi que, por um instante, você poderia ser ainda muito mais do que aquela pessoa de coração enorme com terceiros. Veio na minha consciência, em frações de segundos, um contraste entre a percepção que eu tinha de você anteriormente e aquela nova, de uma abstração idealista, perfeita, como se realmente fosse uma cena de filme em que a “princesa” ou sei lá o quê que os roteiristas fantasiam, deixou a todos encantados em um mundo fantasmagoricamente perfeito e belo, divergindo do real. Como se você tivesse brotado de todos os livros que li, não sei explicar direito, é como se eu visse concretamente a forma de personagens que somente havia lido. Sabe aquele vácuo entre o que está escrito e o que se pensa sobre aquilo? Não existem figuras em boa parte dos livros que tive acesso, fica sempre uma dúvida, uma lacuna que sua imaginação preenche, mas que nunca se encerra, pois você não tem a resposta definitiva sobre qual a forma concreta que as personagens realmente têm. Mas quando te vi ali, foi como se tivesse germinado para mim, a forma concreta da literatura, eu vi na sua imagem, a escrita, e na escrita, a sua imagem.

 Deves estar me denominando de gentil, mas não é a verdade, eu sou apenas poético, você quem me inspirou, você é a arte da qual eu fui o mero tradutor. Portanto, apesar dos pesares, tenho muito a lhe agradecer, inominável, por ter personificado tão contundentemente a forma última e definitiva da poesia e da literatura, jamais lerei com as mesmas lentes reduzidas de antigamente, fecharam-se as lacunas. Muito obrigado!

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2 comentários em “A inominável personificação da Literatura – Conto (Caique Sobreira)

  1. pedropaulosd
    16 de julho de 2020

    Este é um texto interessante, talvez seja certo dizer que é metalinguístico, pois parece ser uma longa introspecção quanto ao processo criativo. Dessa maneira, a imagem descrita no início – e composta com competência, mesmo com uns recursos descritivos batidos – é mera desculpa para embasar as reflexões do narrador. Apesar disso, a inominável retorna constantemente a ele, inclusive sendo destinatária de parte de suas palavras e tomando proporções de distintas amplitudes. Ora é uma mulher humana, ora é a perfeição que apenas a arte poética é capaz de conceber. Chega a ser uma princesa de Hollywood e a própria natureza. O que essas atribuições têm em comum é que todas transcendem a realidade. Partem do mesmo piso onde se encontra o narrador, mas em sua mente, num jogo de associação e digressão, fazem daquela mulher uma série de imagens que muito provavelmente não fazem jus a quem a mulher realmente é, mas nem por isso deixam de ser verdade.

    E não é isso que é criar? Não é essa a graça, ainda que o personagem lamente?

    Bom, não a primeira ficção voltada ao processo criativo, mas nem por isso deixa de ser uma investida valorosa e envolvente, sobretudo pela escrita bem articulada, que em maior parte não tira o fôlego do leitor (chegando a conversar com ele). Sobre esse lado técnico, há certos momentos que se alongam mais do que deveria e fazem do narrador prolixo. Por outro lado, reconheço que a qualidade artística não é exata e tem muito de prolixo, o que dá verossimilhança à temática explorada aqui.

    Li pelo comentário do Anderson que é sua estreia.e, de fato, não reconheço seu nome. Sendo assim, bem-vindo e obrigado pelo texto!

  2. Anderson Do Prado Silva
    13 de julho de 2020

    Olá, Caique!

    Bem-vindo ao EntreContos! Parabéns pelo texto! Para um trabalho de estreia neste espaço, foi uma grata surpresa!

    Você possui bom domínio da língua. E seu conhecimento das técnicas de narração está bem encaminhado – com alguns poucos ajustes, ficará tudo perfeito.

    O paralelo que você estabeleceu entre a musa inspiradora e a literatura ficou deveras interessante e serviu muito bem para demonstrar o amor do seu narrador por sua musa inspiradora e pela arte literária.

    O seu texto demonstra erudição na escolha do vocabulário, na menção a personagens famosos da literatura, menção indireta a Marx ou Marshall Berman e menção direta a Goethe e Debord.
    Sobre a menção indireta a Marx ou a Marshall Berman, tome cuidado, pois pode ficar parecendo plágio, já que você não atribui diretamente a nenhum dos dois o pensamento da solidez que se dilui no ar. No seu texto, fica parecendo que a ideia é sua, e não é.

    Apesar de cultura e erudição serem importantes, tome cuidado para suas menções não soarem descontextualizadas: tive a impressão de que a menção a Debord ficou num limiar muito tênue. Recentemente, publiquei no EntreContos o conto “Filho de mãe solteira”, em que mencionei Eduardo Alves da Costa, Carlos Drummond de Andrade e Juscelino Kubitscheck. Se possível, leia o texto e tente perceber como minhas citações se adequam perfeitamente ao enredo que desenvolvi (tente buscar isso no seu texto).

    O seu narrador possui uma visão política de esquerda. Bem, eu gosto disso, mas sempre vai aparecer quem não goste. Eu seguiria firme nesse propósito, mas haverá sempre quem lhe aconselhe a mudar o rumo. Sabe como é, né? Temas políticos afloram paixões nem sempre agradáveis ou reprimíveis.

    Tome mais cuidado com a escolha da voz narrativa: em alguns momentos, você escolhe a primeira pessoa do singular (“estava eu”), em outros a primeira do plural (“nos provava”), em outros a segunda (“demonstraste”), em outros a terceira (“ela mantinha-se”).

    Tome cuidado com o destinatário do seu texto: ora parece que ele é uma missiva dirigida à inominável, ora parece que é um registro para si mesmo, ora parece que é dirigido aos leitores em geral (inclusive com a utilização da figura do narrador intrometido).

    Você possui amor pelo poético e pelo grandioso. Nisso, em si, não há mal (pelo contrário, a poesia na prosa é uma qualidade a ser cultivada e aperfeiçoada). No entanto, tome cuidado para que o uso do advérbio e do adjetivo não se torne excessivo. Um exemplo bem singelo: o seu primeiro parágrafo está recheado de adjetivos e advérbios… Modere-os! Veja esse pequeno trecho tirado dele: “ela sentia o macio da grama extremamente esverdeada”. Ele poderia ser transformado em: “sob os pés, o macio da grama”. Evite o verbo sentir! Não permita que seus personagens sintam! Mostre que eles sentem! Entende? Se você escrever “sob os pés, o macio da grama”, seu leitor já saberá que sua personagem sentia a grama macia e, consequentemente, verde! Confie na inteligência e sensibilidade do seu leitor, pois ele compõe a história tanto quando você escritor.

    Por fim, tome cuidado com os lugares comuns, que são formas de se expressar, ideias, estruturas, palavras etc. que soam como repetitivas ou batidas. Por exemplo, tarde no campo. Já parou para pensar quantas vezes na história da literatura a ideia idílica de tarde no campo já foi utilizada? Há cinco dias, aqui no EntreContos, foi postado justamente o conto “O encontro”, de Ivan Turguêniev, que usa essa ideia. Outro lugar comum: “a vida prega dessas peças”. Procure formas de dizer as mesmas coisas de maneira menos óbvias. Por exemplo, “você parecia verdadeiramente uma literatura ambulante” poderia se tornar “vi em seus contornos as mãos hábeis de um artista”.

    Enfim, Caique, você me parece muito bem encaminhado. Gostei muito do que li e, se me estendo no comentário, é por querer vê-lo ainda melhor! Foi um prazer conhecer o seu texto!

    Felicidades!

    Anderson do Prado Silva.

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Publicado às 12 de julho de 2020 por em Contos Off-Desafio e marcado .
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