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Detox Literário.

As Amantes de Celestino – Conto (Jorge Santos)

Na barbearia da pequena cidade do interior estão, ao todo, oito homens. O senhor Silva, homem baixo e vivido, com fama de mulherengo, cortava o cabelo a um homem de elevada estatura e estranhamente parecido com um soldado russo, de rosto ossudo e cabelo prematuramente branco. Pedro, o filho do barbeiro, corta o cabelo a uma criança, sob o olhar atento do pai, um homem de aspeto nervoso que aproveita para fumar no exterior da barbearia. Eu espero sentado no sofá mais novo da barbearia, sobejamente conhecido por ser bastante desconfortável e, por isso mesmo, o único disponível. A meu lado está o meu filho de 16 anos, ele está nervoso: é sábado, mas aproxima-se a hora da sua aula na Academia de Música e ele continua à espera da sua vez para cortar o cabelo.

Silva dá uma tesourada no cabelo branco do cliente. Um tufo branco cai no chão, misturando-se com pequenos tufos de cabelo de várias cores, numa promiscuidade de uma estranha beleza. Só quando a quantidade de cabelo excede o limite do bom senso (e ele começa a escorregar nele) é que Silva se digna a pegar na vassoura e o varre para um canto, onde o mesmo cabelo começa a ganhar a forma de um pequeno Evereste. Depois estica o pescoço, olha para o exterior e exclama: “Lá vem o chato. Vamos ter festa.”

Celestino entra alguns segundos depois. Num passo lento, cumprimenta todos os presentes. É um homem baixo, dos seus setenta e muitos anos e um forte hálito a vinho. 

“Já soube da novidade, Sr. Celestino! Já soube que vai ser pai! E de uma moça de trinta anos. Você não pára!”, exclama Silva, sem parar de cortar o cabelo ao cliente. 

Celestino desfaz-se num sorriso aberto e malicioso. 

“Trinta anos não, tem vinte e oito!”, diz ele, numa voz arrastada. 

“E ouvi dizer que a outra chorou lágrimas de sangue quando soube da notícia”

“Ela que não me tivesse deixado. Pelo menos esta está longe, na capital, e não me chateia o juízo.”

Pedro, depois de inclinar a cabeça do menino a quem cortava o cabelo, decidiu meter-se na conversa: “E eu ouvi dizer que ela vem morar para aqui. Diz que não consegue estar um dia sem o ver.”

A face do Celestino muda de cor.

“Outra? Ó caralho… se a minha mulher descobre…”

“A esta hora a sua senhora já deve saber, Celestino. Mas perdoa-lhe tudo porque o ama de verdade e só o quer a si. Desconfio que se fosse outra mulher já se tinha posto a andar há muito tempo…”, remata Silva. 

Nas costas de Celestino, o pai do rapaz e o outro cliente que estava sentado ao lado do meu filho sorriem. 

“Ela só me quer a mim. Eu é que não consigo estar só com uma… Foi sempre assim, desde novo.”

“E agora, depois de velho é que está a ser, Celestino. Grande homem. Ter um filho com uma mulher de trinta anos…”, comenta Pedro. 

“Vinte e oito anos. E quando estava com ela perguntei-lhe: dentro ou fora? E ela respondeu: dentro. Se acontecer, aconteceu. E eu gosto tanto de ti, Celestino. E foi dentro. E agora sou pai.”

“Assim é que é, Celestino! Parabéns.”, felicita o cliente que estava sentado e que, até aquele momento, tinha ficado em silêncio, a apreciar a conversa. 

“Obrigado. Bem, agora vou ao meu barbeiro. Tenham um bom dia, meus senhores.”

Celestino sai, no mesmo passo arrastado. 

Silva espera que ele se afaste antes de comentar: “É tudo mentira. Ele vive com a mulher doente, não tem nenhuma amante. Os filhos estão emigrados, não querem saber nada deles há anos. E a única alegria dele são estes momentos.”

Eu já sabia. Quando comecei a frequentar a barbearia, ainda o meu filho era pequeno e ele próprio se entretinha a varrer os cabelos do chão, ouvi falar do Celestino e da sua amante de então, a Rosinha. Ambos os barbeiros pegavam com ele por causa dela. Na altura, levei a mal. Achei uma falta de respeito descomunal brincarem com o pobre homem. Hoje percebo e posso até alinhar na brincadeira. Quando a realidade é amarga, qual é o mal de se viver na mentira?

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7 comentários em “As Amantes de Celestino – Conto (Jorge Santos)

  1. Andreas Chamorro
    14 de julho de 2020

    Que narrativa descompromissada. Uma anedota que tira um sorrisinho no final da leitura. Parabéns!

  2. Cilas Medi
    3 de maio de 2020

    Olá Jorge.
    Uma intimidade de conhecimento de todos os passantes. Calculado para dar alegria no meio de uma mentira, poderosa para o ego do velhinho e, mais ainda, para o seu desejo de viver.
    Abraço!

  3. pedropaulosd
    30 de abril de 2020

    Acho que existem alguns lugares cujo formato se presta ao que aqui no Brasil chamamos de jogar conversa fora, ter conversas fiadas, papear, etc. A barbearia é um desses. Portanto, a imagem de pessoas esperando, de cabelos caindo no chão e de poltronas dentre as quais se há uma preferida foi perfeita para imergir no ambiente. Logo quis saber qual era da chatice do indivíduo e, a princípio, pensei que sabia. Fanfarronice? A realidade, no entanto, mostrou-se tanto mais brutal e, portanto, chocante, encerrando o texto, qualitativo na escrita e na ambientação, em boa nota.

  4. angst447
    29 de abril de 2020

    Que delícia de narrativa, Jorge. Consegui até me ver sentada naquele sofá desconfortável ouvindo a conversa entre o barulho das lâminas das tesouras. Fiquei tão presa à leitura que me surpreendi a chegar logo ao final. Concordo que a realidade às vezes é demasiado cruel e precisa de uma dose de fantasia para ser enfrentada. Parabéns pelo texto.

  5. Priscila Pereira
    29 de abril de 2020

    Muito bom, Jorge! É quase um causo, ainda mais se tratando de uma história real. Você pegou um momento, uma conversa e a eternizou na forma literária e ficou muito bom mesmo. Real, bem escrita, interessante de ler. Parabéns!

  6. Angelo Rodrigues
    29 de abril de 2020

    Olá, Jorge.

    Conto – ainda que você não o diga ser, mas apenas um relato – muito legal, ainda mais quando me traz lembranças das quais nunca me separei.
    Seu conto me lembrou do tempo de menino quando ia com meu pai à barbearia do Zé Barbeiro, um sujeito pequeno, elétrico, que para os clientes mais agigantados, subia em um caixote de madeira para estar à altura deles, e para se movimentar em torno desses clientes, descia da caixa e a chutava, fazendo tremendo barulho e arranhando o chão de tábuas. Torcedor alucinado pelo Botafogo de futebol, meu barbeiro tinha sempre uma novidade para contar.
    Pelos cantos do salão um mundo de flâmulas de clubes de futebol, pôsteres de artistas da música e um grande retrato com a figura do Presidente Getúlio Vargas, que àquela altura dos anos já estava numa cova. Tudo tomado pelo cotão, cocô de mosca e rasgos provocados pelas traças. Lindo.
    Quando havia alguma mulher no ambiente – normalmente levando o filho ou irmão pequeno – era só silêncio, e quando ela saia, sempre haveria um deles que dela mal falasse. Uma desgraça. Eram conversas de homens, afinal. De modo geral gente simples.
    Foi onde pude ouvir histórias que se transformaram também em contos, sempre engraçados, alguns melancólicos, mas todos profundamente humanos como este que você nos presenteia.
    Parabéns pelo conto. Gosto muito desse jeito das coisas simples da vida quotidiana.
    Abraços.

  7. antoniosbatista
    29 de abril de 2020

    Coitado do Celestino, os amigos o ajudam a sobreviver a tragédia, alimentando sua ilusão. Boa história, ainda mais que é verídica.

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Informação

Publicado às 28 de abril de 2020 por em Contos Off-Desafio e marcado .
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