Todo mundo tem um parente ou amigo que mora num apartamento mais alto. Este será incomodado. Todo mundo tem um parente ou amigo que tem uma camionete ou um pequeno caminhão de dois eixos. Este também será incomodado.
No meio da noite, os telefones começam a tocar, os cachorros começam a latir. Os gatos, injuriados com o movimento, chegam a sair de casa. O cunhado ou o genro traz umas chaves de fenda para desmontar os móveis. O primo ou o sobrinho traz uma chave inglesa para as camas. Uma mulher chora num canto. Um filho foi para a casa de uma tia, numa cidade vizinha. Um homem relembra, em voz alta, que um dos móveis foi comprado no mês passado, com o dinheiro do décimo terceiro. Tudo fica fora do lugar. Os cachorros ainda estão perplexos. O único em seu lugar, o único que não precisa se mudar, nem incomodar os amigos, é o Rio. Este está onde sempre esteve. Cresce onde sempre cresceu, sem pedir licença, sem nenhuma força que o detenha. Entra confiante nas casas, como se essas lhe pertencessem, e os intrusos fossem os donos ou os inquilinos. Lento como um lagarto, ou rápido como uma serpente, ele não deixa de ocupar seu espaço, não deixa de nos lembrar que somos menores que ele.
Depois fica um sentimento de desterro, de desconfiança. Um rancor furtivo talvez se esconda no fígado. A terra fede, como se o Rio tivesse aliviado seus intestinos. Os homens andam de cabeça baixa. Os que são dados a pensar começam a se perguntar sobre a existência de deus. Os mais práticos começam a olhar preços de apartamentos nos bairros mais altos da cidade. Os incautos já começam a esquecer. Daqui a quatro ou cinco anos, a enchente será para eles uma remota novidade. Algo tão distante no tempo que parece nunca ter acontecido. E novamente desmontarão seus móveis, e novamente ligarão para aquele parente que tem uma camionete. E tudo se repetirá, como as leis tediosas da natureza.
Olá, Ronaldo!
Então, admito que não gostei muito do conto. É basicamente o relato de uma enchente que atrapalhou inúmeras vidas, dando bastante ênfase para o rio e seu poder. A narrativa não é ruim, apesar do tempo verbal não ter soado como a melhor escolha. O conto tem seu valor. Fala de vidas, da humanidade, isso tudo de uma forma crua e direta. Não há poesia, assim como nossa realidade.
A parte mais interessante, ao meu ver, foi quando você focou no rio. Talvez, se escrevesse o conto todo a partir do ponto de vista da água que invade as vidas alheias, poderia ter uma obra bem mais atrativa. Todos os diálogos, todas as citações, poderiam ser palavras escutadas pelas águas. Enfim, é apenas uma ideia!
Continue escrevendo sempre, Ronaldo!