Padre Cícero e Lampião são as duas figuras mais icônicas do nordeste? Creio que sim. Os dois polos. Deus e o Diabo (na Terra do Sol). Eu não sabia muito do padre, não. Na sexta série minha professora me ensinou que ele era um safado, politiqueiro, ladrão, explorador dos pobres; e ficou por isso mesmo, para mim. Hoje eu julgo ter discernimento suficiente para entender que alguém que mobilizou e mobilize os afetos de tantos não poderia ser resumido tão simplistamente.
Já visitei o Juazeiro em algumas ocasiões. A primeira me impressionou bastante, eu era criança e foi a primeira vez em que eu vi os macabros e assustadores ex-votos. E já voltei lá adulta, também. Conheço o Juazeiro, conheço o sertão, mas não conhecia quase nada do padre.
E dei a sorte de me deparar com este livro fantástico, um primor de escrita e de pesquisa. O ritmo é alucinante, e, embora a vida do padre seja mesmo movimentada, esse mérito é todo do autor, Lira Neto. É incrível o talento dele em ir prendendo algumas informações, soltando-as a conta-gotas e te deixando de cabelo em pé, devorando as páginas no afã de descobrir o que vem a seguir. Eu cheguei a sonhar com a história em mais de uma noite! De quantos livros posso dizer isso?
Sobre os pretensos milagres do Juazeiro, acho que eram enganação, eram charlatanismo? Sim, claro. Mas penso o mesmo de Lourdes, de Fátima, de Guadalupe. E não tenho dúvida nenhuma de que se não foram reconhecidos pela Igreja (que penalizou Cícero repetidamente a ponto de terminar por excomungá-lo, embora tenha feito questão de sequestrar seus muitos bens quando de sua morte) foi por (1) preconceito: milagre naquelas brenhas cujo nome ninguém do Vaticano sabia nem pronunciar, que dirá apontar num mapa?; e (2) medo de sombra. Sim, pois o preconceito poderia ter sido vencido com uma campanha publicitária, mas o bispo do Ceará detestava Cícero e não parava de escrever amiúde ao Vaticano fazendo a sua caveira, e mandando e mandando padres até o Juazeiro para “desmascararem” Cícero. Aponto aqui para dois detalhes, o primeiro sendo que todos os padres que dom Joaquim mandava até lá acabavam sendo convencidos do milagre. O bispo dava um piti e arrumava outro padre para a missão. Assim foi trocando de comitivas até finalmente arrumar um cônego que não se convenceu. Dom Joaquim, claro, agarrou-se ao depoimento deste último. O segundo detalhe é que dom Joaquim nunca se deu ao trabalho de sair de Fortaleza e rumar até o Juazeiro para ver o milagre com seus próprios olhos. (O dito milagre, gente, é o de que todas as vezes em que a beata Maria de Araújo comungava, a hóstia virava sangue em sua boca, “o sangue de Cristo”).
Enfim, pior para a Igreja, pois a população continuou acreditando e acudindo ao Juazeiro. Quando Cícero lá se instalou, por volta de seus quarenta anos de idade, ali era um vilarejo de umas trezentas pessoas. Quando morreu, aos noventa anos, o Juazeiro já era município independente, com umas sessenta mil pessoas. Aliás, Cícero esteve à frente de todas as negociações e foi quem conseguiu emancipar o município, até então distrito do Crato. Foi seu primeiro prefeito, também, tendo assumido muitos e muitos mandatos na função, além de ter chegado a vice-governador do Ceará e deputado federal.
As coisas que ele fez e conseguiu, a quantidade de gente que encantou e arregimentou me fizeram matutar muitas e muitas vezes durante a leitura sobre que diabo de carisma é esse com que algumas pessoas nascem. E, no entanto, e mesmo não sendo esse o tom do livro, não pude deixar de ver ali uma história triste, de um homem fracassado no meio de tanto sucesso. Pois as duas coisas que ele mais queria na vida, as duas lutas em que mais se engajou, não tiveram êxito. O reconhecimento dos milagres. E um bispado no Juazeiro (o segundo bispado — o primeiro, claro, era em Fortaleza — acabou sendo alocado no Crato). Além disso, desde muito cedo ele perdera o direito às funções (rezar missas, realizar os sacramentos, etc) e acabou por ser mesmo excomungado. Sem dúvida frustrações insuperáveis para ele. Também pareceu-me uma figura muito enigmática. Aparentava gostar de riquezas, aceitava de bom grado todos os donativos dos romeiros, tornou-se riquíssimo (em terras e propriedades. Sua liquidez era tão pouca que até para se operar de uma catarata no fim da vida teve que pedir um empréstimo), mas aparentemente não usufruía dos bens. Viveu sempre na mesma casa modesta, desde sua chegava ao Juazeiro até sua morte, e sempre andou por lá com a mesma batina puída e sapatos gastos (a vida inteira se vestiu de padre, mesmo que por mais da metade do tempo já não o fosse).
Enfim, podem ler sem medo, satisfação e muitas reflexões e indignações garantidas!
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