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Detox Literário.

Relato de um incendiário (Murilo Guilherme)

Sempre tive uma queda maior pelas drogas que se demonstravam mais intensas, as que não me deixavam sombra de dúvida de que realmente juntos podíamos mais que qualquer outro mortal a quem se denomina um “careta”. Aliás, caretas não me faltaram quando, ainda careta, a experimentava pela primeira vez: leve e lúcida. Hoje, já não ostento esse apelido preciso e cruel e que somente o tempo pode dissociar de você. Sou natural a ela, como ela a mim. Intrínsecos, já fazemos parte um do outro e meu prazer e alívio é consoante ao seu zumbido quase inaudível de êxtase quando na boca.

O começo foi ocasional, irregular, sempre se procura um motivo para o uso, como uma justificativa, apenas um consolo moral, que não te condena como um monstro e somente avalia, avalizando, o porquê de se dopar. Se tivesse de ser honesto com vocês, diria que por várias vezes foi desnecessário, mas a rotina, a facilidade e a conveniência acendiam mais fortes em meu corpo, afastando qualquer pestanejo.  Na primeira vez ela titubeou. Manifestou-se nos lugares errados e quase pôs toda nossa vindoura relação a perder, sem nem ter começado a ganhar. Vitórias são muitas, apesar de todos afirmarem que não, em minha opinião, é somente uma questão de ponto de vista. Lembro-me de quando toda sua raiva se esvaiu dentro de mim pela primeira vez e a acalmei, pouco a pouco, me sentindo útil apesar de todo preconceito. Encarando-me de frente, são poucos aqueles que têm coragem de afirmar que não estou correto quando ativado. Altivez é o que demonstro, seja por mim mesmo ou seja por ela, que me domina e, hoje em dia, manuseia como um brinquedo, vendo em mim as asas que lhe faltam para voar sozinha.

Na maioria das vezes, recorro a ela – ou seria ela quem recorre a mim? – como se respirar não fosse mais um ato pleno sem minha (sua) presença. Claro que tenho que me orgulhar. Não é vergonha nenhuma ser vaidoso a ponto de exigir admiração de todos quando tenho a precisão cirúrgica de reconhecer a necessidade dela. E a suprir. E me suprir. Da mesma forma que acerto diversas vezes o momento exato de me fundir a ela, difusos, já confundimos o querer e o ter que. Recordo-me (e se pudesse deixar de fazê-lo da mesma maneira que o fogo que ela me proporciona chega, livremente limitado, efêmero, me consome diligentemente e se esvanece deixando nada mais que um resquício amargo na boca e um odor marcante na redondeza, assim o faria) da última vez em que, já exaustos um do outro, ela, marcante, pesada, com uma ebriedade imponente me lançou ao chão sem me destinar um segundo para relutar ou prever o ato, podendo então contra golpeá-la antes do golpe e dar o futuro destino dado a mim prematuramente a ela. Como em qualquer relacionamento no qual ambos envolvidos possuem a personalidade mais forte que suas reais vontades, desentendimentos assim já aconteceram diversas vezes e o fim que calhou de ocorrer comigo como relatado agora há pouco, já também o fez o destino com ela, por mando meu, provando assim a vocês que não ostento uma fraqueza indômita quanto ao vício. Sei dominá-la quando preciso, embora, confesso, a recíproca seja mais verdadeira.

Hoje em dia me importo pouquíssimo com o que dizem de mim e como me olham. Já fui mais solidário e compreensivo com aqueles que por um acaso me criticavam, pois entendia que em quase sua totalidade eles se importavam com meu uso. De fato, podem haver algumas consequências a longo prazo, como dizem na TV e na cultura popular. Mas não para mim. Sempre estarei ereto, imponente, (in)desejavelmente respeitoso, não importa para onde os ventos soprem. Eu e minha parceira estamos juntos onde quer que seja. Ela não se importa mais em ser exposta e esse foi o grande passo que nos tornou invencíveis se juntos. Se vocês me perguntassem o porquê de ter sido ela a minha escolha, eu não saberia responder. A resposta mais provável seria que ela é avassaladora. Em todos os momentos. Em toda minha história, não me recordo de ter sido tratado de maneira tão leal à que exijo por natureza. Ela foi a primeira e é até hoje a única que conseguiu tirar tudo de mim e me exaurir até o último suspiro com toda avidez que mereço. Desde os momentos em que o que se busca é paz, até as eufóricas e súbitas necessidades.

Nesse ponto de meu relato já deve ter ficado claro para vocês que o motivo maior desse meu desabafo é agradecer, com saudosismo e orgulho, à minha tão fiel parceira. O que consegui ao seu lado foi ser visto com outros olhos e a isso serei eternamente grato. A sensação de uniformidade com a qual, enclausurado e confinado eu me acostumei, depois dela, simplesmente desapareceu. Espero que ela nunca se prive de mim no futuro e que ainda nos deleitemos com o fogo que nos mantém vivos. Como esse espaço foi aberto de forma inédita a mim e penso já ter pouco tempo para aproveitá-lo, peço que vocês, quando acabarem de me investigar e analisar minha originalidade e procedência, encaminhem esse texto de gratidão à minha parceira. Ela saberá, natural que é à nossa comunhão, o remetente. Não se preocupem com sua compreensão, afinal nossa língua é a mesma, falada e compartilhada. Ela logo dará falta de mim, se vocês não se apressarem logo. E quanto mais o tempo passa, mais necessito dela e ela de mim e se vocês soubessem o quanto preciso ser aceso através de seu manejo autêntico e único, provavelmente já teriam me liberado dessa alfândega imunda.

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4 comentários em “Relato de um incendiário (Murilo Guilherme)

  1. Anorkinda Neide
    19 de novembro de 2015

    Olá! Acho que pelo mesmo motivo do Fábio, eu gostei muito do conto hhehe
    Na verdade, uma crônica, eu acho. Gostei imensamente do começo, do tom quase poético, da reflexão, da fusão do protagonista com a droga que eu li como sendo o cigarro, mas acho que foi devido a ter lido teu comentário explicitando o ‘cigarro’,talvez se eu não soubesse não pensaria nele, mas falas de fogo e achei em clara à alusão ao cigarro, mas, enfim.. ainda assim fica um pouco obscuro o texto principalmente do meio pro final, confesso q não entendi bem e pretendo voltar pra ler com menos sono.. rsrrs
    Mas parabéns pelo teu texto que mostra que tens um manejo lindo das artes literárias.

  2. Miquéias Dell'Orti
    12 de novembro de 2015

    E ae Murilo.

    Cara, eu gostei bastante da ideia que você quis passar com o conto. A sacada do narrador droga (do) é bem legal. Eu gosto de acreditar que o imagitivo é a essência de tudo e o resto são ferramentas e podem ser desenvolvidas por qualquer um. Técnicas você adquire com esforço, mas a criatividade é sempre a chave de tudo.

    Bem, mesmo assim não há como negar que uma coisa está ligada a outra. Também achei o texto um pouco cansativo e em alguns pontos até confuso, talvez pelo estilo meio “verborrágico” da narrativa (eu sofro um pouco desse mal também rs).

    É isso.

    Abrax.

  3. Fabio Baptista
    11 de novembro de 2015

    Olá, Murilo!

    Então cara… não curti muito esse conto não.
    Ficou uma expectativa de uma revelação final, que pensei que seria a respeito da natureza da droga (tipo… algo nada a ver com cocaína, heroína e afins, que seriam as apostas óbvias do leitor). Essa “surpresa” acontece, mas com o local em que o personagem está… não pe das piores sacadas, mas também não teve muito impacto.

    A narrativa retrata com competência a mente do viciado, mas peca pelo excesso em alguns pontos, tipo: “com uma ebriedade imponente me lançou ao chão sem me destinar um segundo para relutar ou prever o ato, podendo então contra golpeá-la antes do golpe e dar o futuro destino dado a mim prematuramente a ela”. Acho que uma narrativa um pouco mais simples e direta teria caído melhor.

    Abraço!

    • Murilo Guilherme Gontijo Macedo
      11 de novembro de 2015

      Muito obrigado pela crítica, Fábio. Esse é meu primeiro conto publicado aqui (espero ter mais) e um dos primeiros que escrevo e justamente por isso suas observações são imprescindíveis para aprimorar meus futuros escritos. Agradeço mesmo.
      A minha intenção era fazer um narrador duplo, que transitasse entre um viciado (que foi notado com mais facilidade) e o próprio cigarro! Talvez eu tenha pecado um pouco em não ter conseguido deixar isso tão claro, o que era justamente a intenção do desfecho: direcionar o leitor a intuir que o narrador poderia ser um narrador-cigarro. Enfim, apreciei demais suas dicas e prometo voltar com textos melhores a cada trabalho que fizer.
      Obrigado!

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Publicado às 10 de novembro de 2015 por em Contos Off-Desafio e marcado .
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