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Detox Literário.

Todavia (Wender Lemes)

todavia

O mundo é vasto desde que o mundo é mundo, e vasto e imundo é que se forma belo. Maria José cresceu num bar em Poço Fundo, lavando copos, às vezes panelas, cuspindo rimas de penar profundo na bebida de sua clientela. Não que Maria fosse pobre ingrata, seus gestos sujos de moça singela escondiam tristeza muito mais antiga: por que ninguém gostava dela? Por que ninguém gostava de Maria? Não se aguentava de tanta fadiga, mas trabalhava duro, todavia.

Eu sei, pobreza é dote que se guarda inteiro, nem exclusivo da protagonista, nem inclusive, do bom brasileiro. Que não se veja aqui generalização, visão comum do autor como um brejeiro, que só sabe culpar sua nação – coisa que qualquer um faria. Voltando à moça, à guardiã de balcão, Maria José crescia indiferente à ironia que a todos arruinava, não se culpava por ser miserável: o inescolhível – pensava – é da conta de Deus, não há razão pra ninguém ser culpado, só cabe ao homem olhar pelos seus. Mas eis que surge o diabo: um branquelinho chamado Jiló, magrelo e feio de fazer careta, gentil e bom que dava dó, a quem Maria quis dar sua meiguice. Jiló jurava que amava Maria, Maria sonhava que amava Jiló, porque amor se dá a quem retorna, se dá a quem retornaria. Era o primeiro a lhe mostrar um dengo? Talvez fosse, talvez não, todavia.

Casaram-se de rito simplório, nas faculdades do senhor Jesus, sob a benção do padre Honório e o signo sagrado da igreja. Assim, finalizado o casório, foram-se embora para casa aproveitar o que de bom tem a vida, Jiló no seu terno e gravata, Maria em vestido esculpida. A vida, embora ingrata, também tem compaixão dos sofredores, metiam-se em si como agulhas, costuravam-se de amores. Mas, sempre há de haver uma falha: no meio da consumação, bate à porta um canalha:

“Deixa chamar, Mazé, volte aqui que isso tá bom…”.

“Parece que é importante, Jiló, dá pra ver pelo tom…”.

“E eu no corta-vontade fico é louco esperando a senhora.”.

“Vou ver quem é primeiro, depois a gente continua, eu também não vejo a hora.”.

“Então corre, fia de cacatua!”.

Notaram o tom de patrão? Jiló se achando mandante, inicialmente deixado porque podia ser necessário deixar o marido imponente se Maria quisesse uma agulha quando voltasse a pegar no batente.

Agora, abrindo a porta, Maria quis ter ouvido Jiló: não era nenhuma urgência, era o remelento de alguma vizinha, pedindo sua bola que caíra na varanda:

“Devolve, por favor, doninha?”.

“Pega essa porcaria e se manda!”.

Foi o que o moleque fez, no susto, não esperava a moça brava praguejando igual fera. Afinal, era só uma bola. Afinal, era só uma esfera, de dois lados – o de dentro o e o de fora. Mas, vejam bem que maldade: de tanto morder-se de espera, Jiló perdeu a vontade e a dureza também foi embora.

“E agora, o que a gente faz?”

“Sei lá, começa outra vez.”

“Mas eu tenho que voltar pro bar, Jiló, vai que chegou freguês.”

“Freguês sou eu, mal atendido, trata de voltar pra cá e me acarinhar bem doído, que é bom pra me levantar e a gente se acha de novo.”.

“Eu vou é trabalhar porque o dinheiro vem do povo e a casa precisa de trato. O senhor fica encarregado das roupas, do lixo e dos pratos.”

“Mas olha bem pra minha cara, dona Mazé: eu aqui que me acabo em tara e tu quer me fazer de mulher?”

“Olha aqui o senhor, seo Jiló: ou faz o que eu lhe digo, ou pode ficar com a sua tara, que num caça mais nada comigo. Foi-se o tempo em que a mulher devia alguma coisa ao marido.”

“Pois vá então pro seu bar, que eu lavo, passo e limpo, mas quando voltar, ah Mazé, me aguarda, vai ser um perigo.”

“Quando eu chegar do serviço, a gente vira o colchão do avesso, mas agora eu vou.” – falou no seu tom mais travesso.

Jiló então se empenhou em tudo do fim ao começo – do início ao fim, pode ser – não sei em que ordem os fez, mas fez tudo que tinha a fazer. Mazé dobrada em sorriso chegou, à noite, do serviço, dando pulos de alegria, achando Jiló na cama.

“Te apronte, meu dono de casa, que hoje eu deixo de ser dama.” – mas Jiló estava cansado de toda a diurna algazarra. Virou-se para o lado, acabado, por incrível que pareça:

“Hoje não, Mazé. Fiquei com dor de cabeça.”. – disse em tenor abafado. Quem diria?

Maria que amava Jiló, Jiló que amava Maria, não se amaram naquela noite, mas em todas as outras, todavia.

Parece que foi rápido, incoerente, mas este é um conto assim mesmo, meio rimado – perdoem o jeito afobado e a franqueza de algumas falas. É só como busco o mundo, no que vai além das valas, além de Poço Fundo, além das conversas ralas. O mundo é o que é: vasto, imundo e falho; meu, seu e de Mazé.

6 comentários em “Todavia (Wender Lemes)

  1. Anorkinda Neide
    18 de outubro de 2014
    Avatar de Anorkinda Neide

    Que bacana! Gostei demais!
    Certa vez escrevi uma crônica sobre o trabalho da dona de casa e a dor de cabeça.. a conclusão é a mesma, só que invertida… adorei ver Jiló na lida e não é incomum não, ter o marido esta tirana ocupação.
    Muito divertido dei várias risadas, gostei do tom, da rima, da simplicidade.. daquelas q é difícil de colocar no conto no tom certo e vc conseguiu. Parabens!

    • Wender Lemes
      19 de outubro de 2014
      Avatar de Wender Lemes

      É extremamente gratificante quando alguém vê as camadas do que a gente escreve e se diverte com elas, Anorkinda, muito obrigado!

  2. rubemcabral
    17 de outubro de 2014
    Avatar de rubemcabral

    Gostei! Bem simpáticos e divertidos as personagens. Bem agradável a leitura!

    • Wender Lemes
      17 de outubro de 2014
      Avatar de Wender Lemes

      Obrigado Rubem! Que bom que gostou das personagens e da leitura!

  3. Maria Santino
    17 de outubro de 2014
    Avatar de Maria Santino

    Oi!

    Ah! Eu imagino o trabalho que deu rimar tudo isso.
    Gosto dessas tragédias comuns. Senti afeição pela Xará Maria e ri da desventura do Jiló (tadinho, negou fogo assim… comecinho da vida a dois 😦 ) . Gostei desse passeio social, os direitos iguais que você pincelou.
    Um bom conto 🙂

    • Wender Lemes
      17 de outubro de 2014
      Avatar de Wender Lemes

      Ei Maria! Obrigado pelo comentário! Realmente, deu um certo trabalho kkkk, mas para o bem ou para o mal sempre vale a pena tentar. Fico satisfeito que tenha gostado.
      Abraço!

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Informação

Publicado às 16 de outubro de 2014 por em Contos Off-Desafio e marcado .