EntreContos

Detox Literário.

Radiação (Gustavo Araujo)

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Acordou pouco antes do alvorecer. Depois de algumas semanas percebia que era esse o melhor horário para procurar comida ou água. Passara a noite em meio a uma pilha de madeira chamuscada, escondido. Tinha as feições enegrecidas, cortadas por sulcos profundos que revelavam uma exaustão perene.  Em breve o sol surgiria por trás das montanhas que recortavam o horizonte e derramaria seu calor insuportável sem piedade.

Colocou a mochila nas costas e conferiu o velho mapa remendado com fita adesiva. Tinha-o roubado de um sujeito que encontrara morto na estrada uma semana antes. O rumo que deveria seguir estava traçado com uma linha vermelha. Não que isso significasse muita coisa. A única direção possível era o sul. Ainda.

O céu amarelado sobre sua cabeça lembrava uma infinita abóboda incandescente, misturando-se ao horizonte num esgar alaranjado. Ao redor, até onde a vista enxergava, árvores retorcidas lembravam que um dia – sem que fosse possível precisar quando – havia ali um bosque, quem sabe uma floresta.

O homem vinha seguindo um curso d’água há alguns dias, um filete na verdade, que se esgueirava por baixo de pedras, ora aflorando, ora desaparecendo. O rio que ali existiu, antes caudaloso, evidentemente agonizava em um sussurro.

Era arriscado expor-se assim. Ladrões até poderiam ser um problema, mas a verdadeira ameaça eram pessoas mais famintas que ele. Com a escassez de água, era natural que os poucos sobreviventes procurassem matar a sede no que restava dos rios, tornando-se alvo fácil para os desesperados que enxergavam no canibalismo a única opção para continuar vivo.

Abaixou-se junto a um par de pedras redondas e encheu o cantil até a boca. Ali a vida ainda escorria na forma líquida, cristalina, insípida e inodora. Sorveu tudo o que pôde em um gole contínuo. Depois tornou a encher o cantil. Rosqueou a tampa e prendeu-o no cinto. Quem dera pudesse carregar mais. De todo modo, era melhor afastar-se da margem. A cerca de cem metros de onde estava erguia-se uma escarpa. Seguiria por ali.

Caminhou por algumas horas. Não havia sombra que pudesse servir de refúgio ou alento. Apesar do sol ainda incidir obliquamente, o calor já era forte. O homem sentiu-se tentado a molhar a cabeça, refrescar-se nem que fosse por um instante, mas conseguiu reprimir o instinto. Concentrou-se no som de seus pés, arrastando restos quebradiços de galhos e de folhas secas. Não havia qualquer animal por perto. Pássaro, raposa ou ratos. Nem mesmo vermes ou formigas. Só aquele ruído monótono.

À distância surgiu uma pequena construção. Instintivamente o homem envolveu o cabo do facão com os dedos, sentindo a empunhadura. Era uma pequena casa – um antigo abrigo para pescadores provavelmente. Aproximou-se com cuidado, apesar da aparência de total abandono do local.

Era uma casa pequena, feita de madeira. As tábuas das paredes estavam ressequidas, esfarelando-se, mas teimavam em sustentar o telhado. A porta fora arrancada, talvez com um golpe de machado, já que apresentava uma fenda no centro, ou podia ter simplesmente caído por causa das dobradiças desgastadas.

Com cuidado, o homem deslizou uma vareta para dentro da construção. Na ponta, um espelho demonstrava, apesar da penumbra, a ausência de qualquer animal vivo ou morto. Apenas pilhas de escombros surgiam no reflexo. A certeza quanto à segurança era um luxo impossível, mas ele precisava entrar ali. Poderia haver comida.

Arrastou a porta até conseguir uma brecha. Com uma pequena lanterna jogou luzes no fundo. Ao que parecia, móveis tinham sido revirados e encostados na parede mais afastada. No chão, os restos de uma fogueira indicavam que alguém ocupava – ou pelo menos havia ocupado – aquele refúgio.

Com os sentidos em alerta, retirou o facão do cinto e avançou seguindo o cone de luz. Rapidamente passou os olhos pelas prateleiras que milagrosamente permaneciam pregadas à parede. Nada de comida, como era de se esperar. Quem deixaria alguma coisa desguarnecida assim, à mostra sem mais nem menos? Rui da própria ingenuidade.

Um ruído seco e inesperado arrancou-o de seus devaneios. Havia algo no meio daquela pilha de lixo junto à parede do fundo. Talvez fosse um lagarto. Se fosse, haveria motivos para festa. Melhor mesmo seria um preá, ou uma galinha. Ah, uma galinha seria como um sonho. Ensopada, guarnecida por batatas.

Voltou a se concentrar, afastando com uma das mãos os pedaços de madeira empilhadas. Havia ainda restos de carvão, tábuas queimadas, na verdade. Restos de garrafas plásticas e embalagens. Pequenas latas e tijolos moídos completavam o cenário caótico. Mas não havia comida. Nada. Quando terminou de limpar a área, escutou novamente o ruído. Apontou o facho de luz para baixo, percorrendo a área do assoalho centímetro a centímetro. Então, entre as frestas da madeira, viu um par de olhos azuis encarando-o arregalados.

Sua primeira reação foi ir embora. Deixar aquela pessoa ali. Se tinha sido apanhada, agora o problema era dela. Além disso, era provável que o captor estivesse nas redondezas. Entretanto, não se sentiu capaz de abandonar o sujeito. Não estava reduzido a tal nível de barbárie. Pelo menos queria acreditar nisso. Procurou alguma coisa que servisse de alavanca e depois de algumas tentativas conseguiu arrancar uma das tábuas do piso. Depois outra e mais outra.

Do buraco improvisado saiu um homem velho. Os cabelos compridos, outrora brancos, estavam completamente encardidos, assim como a barba. O velho tinha o peito nu, sendo possível contar suas costelas, de tão magro. Os braços e pernas eram finos como gravetos, completando a aparência de um cadáver ambulante. Vestia uma calça rota e nos pés tinha sapatos destroçados, presos aos pés com barbantes de sisal.

O homem encarou o velho por um momento e virou as costas. Que cada um seguisse seu caminho antes que o dono da cabana voltasse.

Já estava a mais ou menos cinquenta metros da construção quando percebeu que o velho se esgueirava com dificuldades pela fresta da porta. Talvez ele tivesse sorte se conseguisse se esconder em algum lugar, uma caverna, quem sabe. O velho então acenou, as mãos ossudas em concha. O homem não queria responder. Era, claro, um agradecimento, mas na verdade não havia nada o que agradecer, pois dentro de pouco tempo aquele sujeito estaria morto de qualquer forma. Mas mesmo assim acenou em retribuição.

Foi quando o velho ergueu alguma coisa no ar. Uma lata.

O homem se deteve e caminhou de volta na direção do velho. Era, sim, uma lata. Comida. Ao se aproximar custou a crer. Mas era, era sim. Uma lata de pêssegos em calda. Olhando inquisitivamente para o velho, obteve como resposta apenas um apontar de queixo na direção da casa, como se indicasse um esconderijo.

“Tem mais?”, perguntou. “Hay más?

O velho fez que não com a cabeça.

“Temos alguma coisa para abrir isto aqui? Abrir?” indagou o homem.

O velho repetiu o movimento negativo.

“Você não é de falar, é? No hablas usted?

O velho apontou para a garganta e em seguida desenhou um risco horizontal imaginário num movimento de vai e vem.

O homem encarou-o por um momento. Com a lata nas mãos fez sinal para que o velho o acompanhasse. Caminharam por um tempo. O velho seguia com dificuldade, arrastando a perna esquerda, mancando, na verdade. Por fim, quando sentiu-se seguro, o homem fez sinal para que parassem. Usando a ponta do facão, fez um buraco na tampa da lata e pacientemente a abriu. O odor suave da calda fez se sentir no estômago. À sua frente o velho sorria com seus dentes apodrecidos. Mas era um sorriso de cumplicidade, inocente até. O homem mergulhou os dedos no interior da lata e de lá tirou um pêssego amarelo, levando-o à boca de uma só vez. Fechou os olhos. O gosto doce dos pedaços mastigados lentamente trouxeram a lembrança dos dias há muito passados.

Quando abriu os olhos novamente viu o velho se esbaldando, virando a lata como se fosse uma caneca. Fios da calda doce lhe escorriam pela barba, mas o velho não parecia se importar. Limpou a boca com o braço e ofereceu o que restava ao homem. Talvez o mais correto fosse guardar para depois. Mas talvez não houvesse depois. Imitando o velho, virou a lata também, sorvendo cada gota. Depois raspou o fundo com os dedos até secá-la.

Quando terminaram o homem fez um sinal com a cabeça para o velho, um agradecimento, e retomou seu caminho. Depois de alguns minutos olhou para trás e viu que o velho vinha pelo mesmo caminho a passos trôpegos. Era melhor esquecê-lo. A última coisa de que precisava era de companhia, ainda mais alguém naquele estado. Sim, todos morreriam no final, mas o velho evidentemente não aguentaria muito. Teria sorte se conseguisse ver o dia seguinte.

O horizonte castigado pela poeira revelou um amontoado de construções. Uma pequena cidade outrora. O melhor seria evitá-la, é claro. Ainda que parecesse abandonada, seus prédios semidestruídos por certo abrigariam ladrões e gente desesperadamente faminta. Mas o homem precisava de comida. Era possível que houvesse ainda um mercado, um depósito, algum lugar com pacotes de biscoito ou macarrão. Tinha que arriscar.

Sentiu o peso do cantil com a mão esquerda. Ainda havia água. Lembrou-se do velho e olhou para trás. Era possível enxergar a silhueta alquebrada e cambaleante já bem distante, mas avançando apesar do sol.

Depois de um tempo o homem chegou aos limites da cidade. Como havia imaginado, tudo parecia ameaçadoramente vazio. Apenas um vento quente assobiava nas ruas. Entrou em um prédio pequeno, de três andares. Com o facão em punho, subiu as escadas. Entrou em um dos apartamentos e o encontrou completamente revirado. As portas dos armários escancaradas revelavam o óbvio: não poderia haver comida por ali. Nem naquele edifício decrépito nem em nenhum outro. Nem que desmontasse tijolo por tijolo daquelas construções encontraria uma migalha de pão. Permanecer ali era tudo menos aconselhável. Ele era nada mais do que um alvo fácil para quem quisesse capturá-lo.

Deixando o prédio, enxergou uma construção grande, retangular, rua acima. Provavelmente um mercado num passado remoto. Mesmo sabendo que nada encontraria, rumou naquela direção. Foi quando percebeu uma nuvem se formando no horizonte. Já tinha presenciado aquilo. Uma tempestade de entulhos e poeira. Tão forte que seria capaz de arrancar o que restava de árvores e construções condenadas. Formava-se assim, sem aviso, devido à diferença de pressão, arrasando o que tivesse pela frente.

O homem apressou o passo. De repente o antigo mercado era mais do que um local para procurar comida. Quando entrou no depósito, o vento ao redor já espiralava com fúria. Não parou para assistir. Correu para o fundo do galpão, improvisando um abrigo com estantes e prateleiras vazias, onde se encolheu. De repente o calor amainou e fez-se um silêncio enervante. Em seguida, um estrondo anunciou a chegada da tempestade, como o ribombar no ápice de uma música clássica.

Fechou os olhos e esperou. Talvez não escapasse, afinal. Morreria ali, soterrado. Não que tivesse medo, pois isso, a morte, acabaria acontecendo cedo ou tarde. Porém, de alguma forma, preocupou-se com o velho. Certamente seria engolfado pela nuvem, desmembrado ou sufocado.

O rugido do vento e o gemido do telhado eram entremeados por assobios, como se alguém chamasse para brincar. Ouviu vidros estourando e o som inconfundível de ferro se retorcendo. Ao baque seco de paredes desmoronando seguiu-se o colapso do telhado. Chapas de zinco projetaram-se ao chão, próximo de onde ele estava. A repentina invasão de luz cegou-o por um instante e ele protegeu a vista com as mãos.

Súbito, tão rápido como começou, a tempestade se foi. O calor voltou instantaneamente. O homem correu os olhos pelos arredores, apenas para perceber que pouco restara do antigo galpão. Meneou a cabeça e decidiu retomar sua rota. Amaldiçoou-se por ter entrado naquela cidade já morta, perdendo um tempo precioso, mas depois lembrou-se que se estivesse ao relento já estaria morto.

A nuvem, na verdade, arrasara boa parte dos prédios. Em meio ao entulho, o homem avançou resoluto. Até que percebeu um braço imóvel saindo de uma pilha de tijolos, como a imagem congelada de alguém que se afoga e pede socorro. Olhou para os lados para se certificar de que não havia ninguém o observando. Talvez sua sorte estivesse mudando.

Ao chegar perto do braço afastou o entulho. Sim, tirara a sorte grande. O morto era alguém de seu tamanho. O rosto estava desfigurado e o peito tinha um buraco. Mas o corpo não estava enrijecido. Devia ter morrido no desabamento.

O homem revirou o defunto em busca de algo que se aproveitasse. O sujeito vestia uma camiseta regata, caças rajadas e botas de soldado. As botas. Se havia lago de valor naquele mundo miserável era isso, um par decente de calçados. Não teve dúvidas: arrancou-as ali mesmo, experimentando-as em seguida. Perfeitas. Estava quase contente.

Notou então um coldre na cintura do sujeito. E, mais importante, uma pistola. Com o coração acelerado, apanhou a arma. Parecia em ordem. Destravou-a e liberou o carregador. Dentro, cinco cartuchos prometiam uma segurança que ele jamais tivera. Puxou o ferrolho à retaguarda e desengatilhou. Tudo funcionando. Inacreditável. Sentia-se como se tivesse ganhado na loteria.

Desceu da pilha de escombros aos pulos. Por uma fração de segundo sentiu-se como uma criança no Natal. Aquilo tudo merecia uma comemoração. Ao diabo com o racionamento. Apanhou o cantil e tomou três goles d’água. No fim, a expedição àquela cidade tinha valido a pena.

Iniciou a marcha retomando o curso planejado. Pelo menos para isso o sol escaldante servia: mostrar a direção a seguir. Descendo uma ladeira percebeu uma sombra algumas centenas de metros adiante. Reconheceu o velho. Apressou o passo e chegou até ele. O velho sorriu ao vê-lo, aquele mesmo sorriso apodrecido. Não parecia ter sofrido com a tempestade, ao contrário do imaginado. Provavelmente conseguira se esconder em algum lugar.

Observando melhor, porém, o homem notou um ferimento na altura de sua coxa. Havia uma mancha vermelho escuro na calça. Se o velho já mancava antes, agora seria ainda mais difícil caminhar.

Uma ideia riscou a cabeça do homem. Poderia acabar com o sofrimento do sujeito. Agora tinha a ferramenta para isso. Um disparo na têmpora encovada e pronto. Aquele cadáver ambulante finalmente descansaria. Porém, abandonou a ideia no instante seguinte. De algum modo aquele velho miserável havia lhe trazido sorte. E, de mais a mais, era melhor economizar munição para quando fosse realmente necessário.

Fez um sinal para o velho, apontando para si e depois para ele, para em seguida indicar a direção que seguiria. Depois voltou a apontar para si e para ele, demonstrando que queria, agora, que se mantivessem juntos. Talvez estivesse com pena dele. Ou talvez acreditasse, de verdade, que o velho trouxesse sorte.

Voltaram à trilha de pedras redondas que demarcava o curso do antigo rio. Avançavam em um ritmo lento, com o velho arrastando seus sapatos apodrecidos sobre as pedras. Depois de alguns quilômetros, o homem se convenceu de que não haveria mais água. A única fonte de beber era o que restava no cantil.

Ao cair da noite, encontraram um carro abandonado. Naturalmente, os pneus e o motor já não existiam. Havia apenas a carcaça, mas incrivelmente os bancos estavam intactos. Claro, o couro estava esgarçando e com um odor pútrido, mas serviria perfeitamente. Dormiriam ali. O homem tentou explicar ao velho que deveriam se revezar em vigília durante a noite. O velho pareceu compreender. Se algo acontecesse, era só avisar.

O homem dormiu abraçado à pistola, deitado no banco de trás do carro. Tinha pensado em dar a arma ao velho durante a vigília, para melhorar a proteção, mas, no fim, achou melhor ficar com ela. Apesar de tudo, não confiava em ninguém. Estava tão cansado que simplesmente apagou.

Foi acordado no meio da madrugada, imaginando que seria o velho a lhe chamar. Porém, antes que dissesse qualquer coisa, percebeu que uma luz forte o cegava.

Donde está la comida?

As palavras eram cuspidas. Instintivamente, o homem procurou sua arma, mas não a encontrou.

Que procuras, hijo de puta? Esto?

Ele ainda não conseguia enxergar, mas sentiu um golpe forte na cabeça.

La arma es mía ahora, carajo. Pero tengo hambre. Quiero comida. Dime donde la escondió…”

Era um garoto. Pela voz, só podia ser um garoto. E estava sozinho.

“Eu não tenho comida… Eu…”

Outro golpe. O sangue escorreu pelo ouvido.

Te voy joder el cullo, hijo de puta. Estás mintiendo…

Um baque surdo e o facho da lanterna desapareceu. Assim como aquela voz estridente. O homem saltou do banco de trás o mais rápido que pôde. Saiu do carro e, mesmo na penumbra, viu um sujeito estirado no solo. Diante da cena o velho arfava, as mãos apoiadas nos joelhos como quem fizera um esforço descomunal.

Apanhando a lanterna no chão, o homem iluminou a cena. Percebeu que era mesmo um garoto. Não mais que quinze anos. Uma poça de sangue se formava ao lado da cabeça. Estava morto. Ao lado, uma pedra retangular indicava a razão. O homem agachou-se e apanhou a pistola, guardando-a de volta no coldre. O garoto tinha nos bolsos dois pacotes de biscoitos. Não precisaria mais deles.

Os primeiros raios de sol já surgiam quando eles deixaram o carro para trás. O corpo do garoto ficaria ali. Em breve alguém se aproveitaria dele. Nada se perderia.

Precisavam agora encontrar água. Essa era a necessidade imediata. Olhando o mapa, o homem notou o desenho de um outro curso d’água a alguns quilômetros a sudeste. Era para lá que deveriam seguir.

O velho parecia mais pálido aquela manhã. A mancha de sangue em sua calça aumentara, mas talvez fosse só impressão. O sol surgia ainda mais quente. Avançaram lentamente por uma trilha poeirenta, bebericando o pouco que restava do cantil. Depois de algumas horas chegaram ao local planejado, mas não havia nada além de pedras amontoadas, revelando o cadáver do rio.

O homem prendeu os lábios e olhou para o velho, fazendo-lhe sinal para que seguissem margeando o curso morto. A fragilidade do velho contrastava com seus olhos de titânio, francos e fortes, permitindo acreditar que talvez ele aguentasse um pouco mais.

O homem se sentia fraco. Aboca seca e língua inchada o faziam pensar em água o tempo todo. Em como deveria ter sido bonito aquele rio cheio, as águas rolando sobre as pedras, o frescor, a umidade.

Alguns metros atrás, o velho puxava a perna com dificuldade. O arremedo de sapato no pé esquerdo estava completamente destruído. Dava para ver que sangrava.

Uma rajada de tiros rasgou o ar. O velho caiu no mesmo instante. Outra série, quase imediatamente depois, e o homem se jogou nas pedras. Estava vivo ainda, aparentemente não fora ferido, mas decidiu permanecer imóvel. Pensou em apanhar a pistola, mas sabia que estava em um local vulnerável. Quem quer que os tivesse alvejado estava bem escondido. Era melhor fingir-se de morto.

De um segundo para o outro, a fome e a sede desapareceram. O homem olhou para o velho, ali próximo. Ele estava de bruços, numa posição torcida. A perna esquerda dobrava-se sobre as costas de maneira pouco natural. Ele não se mexia e tampouco dava para ver seu rosto, mas talvez estivesse fingindo apenas. Pelo menos era no que o homem queria acreditar.

Os minutos pareceram se transformar em horas. Não dava para saber quantos eram seus algozes. Talvez estivessem apenas esperando para se certificar que tanto ele quanto o velho haviam morrido. Sentiu-se tentado a levantar a cabeça, mas alguma coisa lhe dizia que não. Que poderia ser seu fim. Mas, ora, o fim haveria de chegar cedo ou tarde. Mesmo seguindo em direção ao sul os rios morriam. E, ao contrário do que acreditava, mesmo no sul, mesmo no inverno, o calor só fazia aumentar. Só encontraria gente morrendo, cada vez mais desesperada dali por diante. E no fim, mesmo no extremo sul, se é que conseguiria chegar até lá, os rios e os mares terminariam por desaparecer. A morte era, sim, questão de pouco tempo. Inevitável até. Talvez devesse levantar e de peito aberto receber uma bala ou várias, acabar com aquele sofrimento ali mesmo. Mas não. Sabia o que iria acontecer a ele e ao velho se ambos morressem. Deveria esperar. Aguçar os ouvidos e esperar.

Depois de algum tempo, quase uma eternidade, escutou, enfim, os passos. Ao que tudo indicava, era uma só pessoa. Alguém de tocaia que naturalmente esperou um desesperado qualquer vir em busca de água naquele regato agora seco. O homem agora tinha uma chance. Uma chance. Não poderia errar. Com os olhos semicerrados, viu quando o sujeito, com uma metralhadora pendurada no ombro, pronta para usar, revirou o corpo do velho.

Viu quando o atirador revistou os bolsos do velho não encontrando coisa alguma. Sentiu um arrepio ao perceber que, de fato, o velho estava morto. Depois fechou os olhos. Sabia que o sujeito viria até onde ele estava. Escutou-o cuspindo e dizendo alguma coisa. Seu coração disparou e ele lutou para permanecer calmo. Tinha que ser preciso. Concentração. No instante seguinte percebeu a proximidade. O atirador fez seu corpo rolar, para enxergá-lo melhor. Uma expressão de júbilo fazia crer que o sujeito notara a pistola no coldre. Imediatamente avançou para retirá-la. Pacientemente, o homem aguardou que ele começasse a examiná-la.

O atirador jamais soube o que o atingiu. Com um só golpe, o homem girou o facão no ar, cravando a lâmina entre o pescoço e o ombro do sujeito. Morreu instantaneamente, a carótida partida enquanto ainda sorria.

O homem voltou até o velho e arrastou o corpo até o que seria a margem do rio. O tiro o atingira na altura do coração. Não houve a mínima chance. O homem o pôs deitado e, observando o estado lastimável dos pés, arrancou o que restava daqueles sapatos destruídos. Em seguida tirou as próprias botas e calçou-as no velho. Depois cobriu-o com pedras.

Nunca fora de rezar – até porque em vista do que se tornara o mundo era difícil acreditar em alguma divindade – mas naquela hora ele fez uma prece para que o homem descansasse em paz.

Olhou para o atirador, sem a menor dúvida de que iria deixa-lo ali mesmo, à mercê de quem quisesse apanhá-lo. Jamais sentiu tanta raiva de alguém, especialmente porque, no fundo, talvez o disparo tivesse lhe feito um favor. De certa forma, a morte do velho era um alívio, e o homem sentia-se envergonhado por isso. Algumas lágrimas afloraram, como se fosse possível ainda chorar. O velho havia sido o mais próximo de que ele teve de um amigo.

Por fim, levantou-se e esvaziou as provisões do atirador. Havia o suficiente para uma semana. Também o cantil do sujeito estava repleto de água. Não precisava ter atirado neles. Não precisava.

Colocou a metralhadora em bandoleira e retomou seu caminho sem olhar para trás.

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28 comentários em “Radiação (Gustavo Araujo)

  1. Marcelo Porto
    7 de abril de 2014

    Do pódio esse era único que ainda não tinha lido.
    Após o resultado do desafio, só tenho a dizer que o primeiro lugar foi merecido. Não seria o meu, mas faz jus ao pódio.
    Parabéns ao Gustavo!

  2. Eduardo B.
    5 de abril de 2014

    Gostei. Indiscutivelmente bem escrito, mas a estrutura não faz muito meu tipo. Poucas descrições e muitas frases curtas.

  3. jggouvea
    5 de abril de 2014

    Bacana usar uma captura de tela do filme “Stalker” como ilustração (não, não estou falando sério, se não em engano isso aí é um lugar na Namíbia, mas no filme aparece algo bem parecido, só que à meia luz e com morcegos).
    Agora falando sério, esse é até agora o melhor texto do desafio, e olha que eu sou do tipo convencido que acha o próprio texto bom…
    A única coisa de que não gostei é que o texto é tão econômico em sua falta de explicações que a gente fica meio perdido, mas isso É BOM. Quanto menos você explica, menos erra.

  4. Marcellus
    5 de abril de 2014

    Ótimo texto, parabéns! Curioso como alguns textos nos evocam sentimentos, lembranças… este aqui poderia ter sido situado numa Gilead, de Roland Deschain, ainda mais decadente.
    Um dos meus prediletos, certamente.

    • Jefferson Lemos
      5 de abril de 2014

      Pensei a mesma coisa, Marcellus! 😀

  5. Wilson Coelho
    5 de abril de 2014

    Ótimo texto, muito boa a escrita e personagens bem desenvolvidos. Ah, a imagem que ilustra o texto também foi bem escolhida. Gostei!

  6. Bia Machado
    5 de abril de 2014

    Olha, parabéns. Valeu a pena vencer o sono e continuar acordada para ler essa história.

  7. Hugo Cântara
    4 de abril de 2014

    Aqui está um bom exemplo de como um conto sem diálogos consegue prender o leitor.
    Não senti falta dos diálogos, e isto evidencia a qualidade da narrativa. Tanto o protagonista como o velho foram personagens interessantes. Faltou explicar o que originou o “fim do mundo” e o final, apesar de compreeender a escolha do autor, deixou-me um pouco frustrado.
    Parabéns e boa sorte!

    Hugo Cântara

  8. Pétrya Bischoff
    2 de abril de 2014

    Gostei muito, esses ambientes pós apocalípticos fazem-nos criar uma empatia enorme pelos personagens. Foi triste e memorável, no entanto, somente mais uma estória na vida desse sobrevivente. Parabéns e boa sorte 😉

  9. fernandoabreude88
    2 de abril de 2014

    Narrativa crua e realista, me fez lembrar muito o filme A Estrada. Tem um tom árido e as partes mais lentas estão aí para dar à história um pouco mais de crueldade, segui essas linhas com entusiasmo e me deparei com um final que valeu a pena. Bom conto, top 10 com certeza.

  10. Alexandre Santangelo
    2 de abril de 2014

    Bela narrativa Gostei do tom realista e os personagens centrais foram muito bem construídos. Parabéns!

  11. Thata Pereira
    2 de abril de 2014

    Muito bom! Esse conto tem uma beleza nos detalhes que não seu como explicar. Ah, antes de tudo, esqueci de mencionar que eu adorei a imagem escolhida.

    Na hora que o homem abandonou o velho eu fiquei muito frustrada. O sentimento melhorou quando ele voltou atrás na sua decisão. As cenas do carro foram muito interessantes de imaginar. Lembrei do filme “O Livro de Eli” durante toda a leitura. Gostei bastante!

    Boa Sorte!!

  12. Socram Bradley
    1 de abril de 2014

    No mundo pós apocalipitico a moral nao existe e não hálimites para o que o hoem pode fazer por sua sobrevivencia. Boa história. Boa sorte!

  13. rubemcabral
    28 de março de 2014

    Gostei da história e da escrita também. Achei a pegada do conto realista. Talvez um pós-apocalipse seja assim mesmo.

    Bons os personagens do protagonista e do velho, boas também as descrições do ambiente.

  14. Felipe França
    26 de março de 2014

    Vamos lá! Faço coro com os colegas no que diz respeito do conto ser bem escrito. Além disto, há um detalhamento impressionante e as personagens têm características marcantes. O fim do mundo pode ser cruel para quem sobreviver. Foi esta a mensagem a qual entendi. Contudo, a minha única crítica é que o conto parece ter começado sem uma “introdução” propriamente inicial. O final deixou a sensação de continuação. Parabéns e boa sorte!

  15. Felipe Moreira
    26 de março de 2014

    Belíssimo conto. Meus parabéns. A narrativa me surpreendeu desde o início, o título colaborou bastante com a ambientação. Mas na trama em si, eu só despertei o interesse quase na metade, no instante que ele encontra a arma. Achei uma cena tão bem descrita, tão verossímil. Está de parabéns. Dali por diante, pra mim, foi só alegria, ou melhor, melancolia. HAHA
    O conto me lembrou muito o filme The Road. Triste do início ao fim; degradante. O conto tem em mim o mesmo efeito, de nos colocar abaixo da civilidade, de qualquer conceito moral que um dia nos enobreceu. Um ponto que me incomodou foi a alcunha de “homem” e “velho” em demasia no texto.
    Enfim, é isso. Boa sorte.

  16. Rodrigo Arcadia
    25 de março de 2014

    Bom conto, traz uma versão diferente do apocalipse, fim do mundo, o personagem faz o leitor segui-lo, esquecendo da razão da radiação. É um clima monótomo, mas no meu ver, é bem isso que significa, um lugar desolado, destruído e chato e com alguns malucos pelo caminho.

    Abraço!

  17. Weslley Reis
    25 de março de 2014

    É de fácil visualização todos os ambientes descritos pelo autor. Isso é um ótimo ponto para um conto, somado a boa construção dos personagens, torna-se uma leitura realmente agradável.

    É de hábito esperar uma grande reviravolta, ou um ápice, porém, mesmo a ausência desse fator não desmereceu todos os pontos altos do textos.

    Vagueia entre minhas melhores leituras até o momento. Parabéns.

  18. Fabio Baptista
    25 de março de 2014

    Boa narrativa, boa escrita, bom cenário, verossimilhança, adequação ao tema. Uma história simples e bem contada.
    Não gostei do excesso de repetições “o homem” e “o velho”.
    E também achei que faltou um pouco de emoção. Com exceção ao final, tudo foi meio arrastado, enfadonho às vezes. Creio até que propositalmente, meio que transparecendo a aridez desse mundo pós-radiação.
    Seja como for, certamente um conto acima da média.
    Abraço.

  19. Vívian Ferreira
    25 de março de 2014

    Ainda não li todos mas foi que mais me agradou até agora, bem escrito, com vários ingredientes interessantes: o motivo do fim explicado no título, a desolação do ambiente bem mostrada, personagens bestializados e outros que ainda conservam sua humanidade, a relação com o velho, enfim, parabéns ao autor e boa sorte!

  20. Maurem Kayna
    24 de março de 2014

    Esse foi o texto que me deixou ( até aqui 15 textos lidos) a melhor impressão. Consistente, verossímil e bem estruturado, ainda que a angústia de nao ter rumo ou esperança pudesse ter sido melhor resolvida

  21. Claudia Roberta Angst
    24 de março de 2014

    Conto muito bem escrito com personagens construídos com cuidado. A narrativa flui naturalmente e traz emoção ao leitor sem pieguismo. A relação do homem com o velho traz leveza à história de desolação e penúria humana.Gostei.
    Boa sorte.

  22. giulialisto
    24 de março de 2014

    Gostei muito. O texto foi bem escrito, teve cuidado e foi bem tratado e revisado. Gostei das personagens, da relação entre o homem e o velho e do universo criado ao redor deles. Me parece consistente e deu para visualizar tudo. É um conto que prende o leitor. Parabéns! Muito bom!

  23. Felipe Rodriguez
    24 de março de 2014

    Gostei do conto. Essa relação do homem com o velho foi muito bem construída. A jornada do protagonista em meio a um mundo acabado, em que as coisas mais importantes são comida, armas e água – acaba por não desumanizá-lo, um discussão interessante que o texto sugere. O final tbm é muito bom.

  24. Eduardo Selga
    23 de março de 2014

    O conto é muito bom. Embora o protagonista percorra vários espaços ficcionais, em verdade é tudo um único espaço: a desolação da catástrofe. Esse aspecto faz com que a unidade seja mantida durante o percurso.

    Os personagens centrais são bem construídos, com forte traço de benignidade em ambos, apesar da fome. Aliás, nesse aspecto, o texto foge ao comum, pois normalmente o que se lê em textos que tratam do apocalipse é exatamente o oposto, ou seja, a selvageria.

    Aliás, ela não está ausente no conto: personagens secundários estão bestializados (a garoto e o atirador). Mas, perceba-se: são secundários. Isso levanta uma questão estética relevante: a valorização, no texto ficcional, daquilo que nos faz humanos.

  25. Anorkinda Neide
    23 de março de 2014

    Ow.. me fez chorar!
    e eu adoro isso.. rsrsrs
    Parabens !
    Pensando no que comentar, reparei no nome do conto… Radiação… hum .. ele explica pq do mundo estar do jeito q esta? Nem tinha pensado nessa questão, tamanho meu envolvimento com o personagem. que nao tem nome nem caracteristicas físicas, provando que um bom personagem se sustenta sozinho.. hehehe
    Obrigada por este conto!

  26. Helena Frenzel
    23 de março de 2014

    Taí, gostei muito. Nos faz pensar no que realmente significa o tão falado apocalipse. Muito bem escrito e estruturado, parabéns!

  27. Jefferson Lemos
    23 de março de 2014

    A narrativa fluiu muito bem, e a escrita é muita boa. Em alguns momentos, o cenário me remeteu a “The Last Of Us”. O velho me pareceu bem simpático, e uma personagem fácil de se apegar.

    Entretanto, achei a história um tanto monótona. Foi muito bem narrada, mas foi apenas um lapso, Um dia da vida de um homem no fim do mundo. Apesar da ação durante a narrativa, eu esperava algo mais.

    De qualquer forma, é um bom conto, bem agradável e com uma boa mensagem.
    Parabéns e boa sorte”

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Informação

Publicado às 22 de março de 2014 por em Fim do Mundo e marcado .
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