EntreContos

Detox Literário.

Sem Horas (Claudia Roberta Angst)

Betina abriu os olhos com a incerteza rolando em lágrimas. Desconhecia a linguagem do relógio que acusava o adiantar das horas. Por um minuto, talvez mais, perdeu-se em esquecimento. Não sabia, não lembrava data ou local. Seus olhos revelavam cama, lençóis e abandono. Lá estava, mas em que dia?

Sua mente encheu-se de números riscados em tom escarlate. O calendário resumia-se a horas consumidas. Seria o passado ou o futuro que ali se apresentava?

Levantou-se sacudindo cabeleira e canseira. O sol estreitava-se pela janela, discreto em seus raios primeiros. A noite abandonara sonho e encanto. Sábado, era sábado. De um mês qualquer em um ano a escolher.

Ela olhou-se no espelho.

Aquela mulher amanhecida em dúvidas era para ela uma completa estranha. Inerte diante do reflexo, consultou traços e desejos para enfim despertar no dia que se desenrolava sem sua autorização.

A cama vazia denunciava a ausência. O lado liso, sem o amassar dos sonhos, sem o calor de um corpo que ali não se deitara. Já fora outro dia o lugar de alguém.

O alarme veio de longe, em forma de sinos, sons consecutivos dobrados em súplicas. Entre impaciente e febril, Betina pôs-se a descobrir as horas. Já fora tão feliz nesse tempo, tinha certeza disso. Confusa e receosa, perguntou-se por onde andaria Ivan. Em que dia se despediram?

− Preciso falar com você.

A frase repetida em sua mente como insistente abandono. O deslizar das últimas sílabas de um adeus inacabado.

− Não é preciso. Eu já entendi.

E então ela fechara a porta. Entre o desespero e a resignação que lhe cabiam no momento, suspirava. No presente, enquanto abria a janela e escutava os sons da cidade, reconhecia a história como dela. A voz daquele que julgava conhecer para sempre, era apenas um dobrar de sinos.

− Nunca vou te esquecer.

Os beijos e as mãos que entrelaçadas juntavam destinos nas linhas imprecisas. Cúmplices nas promessas de um futuro que não chegaria, eram parceiros em uma atenção que viraria lenda.

Sábado, ele viria e se deitaria ali com ela. Tomariam vinho ou veneno. Não importava mais. Era um fim provável com ele. Ela, desnuda de argumentos, encostada no vão das próprias palavras. Epílogo frio, mas doce. Perfeito na sua ferocidade de amante tardio.

– Eu poderia ficar aqui pra sempre, você sabe.

Ela nunca soube disso. Adivinhara-lhe os desejos, acreditara nas próprias promessas, mas dele guardava a distância de um milagre. Seus olhos pareciam perder-se em outro século, como museus de lembranças preciosas. Não podia mais precisar se ele era jovem, maduro ou mesmo um ancião. Nele, tudo se misturava com requintes de alquimia divina. Betina o decifrava traço a traço para depois, desconsolada, verificar que ele já era outro. Ivan trocava moradias e identidades no correr dos meses. Ora era lembrança distante, ora presença em oração e canção.

Assim, atravessaram o deserto de dias, semanas e meses. Sem perceberem, os anos também ali se infiltraram lentamente. Ivan passara a ser visita esporádica. Não havia provas de sua existência pelos cantos daquele quarto. Sumiram rastro e traço, rosto e o mero cansaço.

Betina constatava o apagar das linhas cúmplices. Continuava confusa entre o desejo e o raciocínio. Onde estava a chave do momento? Queria abrir aquela porta e sair para uma volta. Os ponteiros do relógio lhe indicariam a direção. Tudo ali tinha gosto de saudade e a realidade oferecia-lhe um cronograma falso.

Sem poder imaginar Ivan longe dali, ela desenhou corações com tinta invisível e assinou seu nome em cada ponto de união. Suas iniciais entrelaçadas revelavam-se convite de reencontro.

Acordou. Estrelas ainda pousavam nas suas retinas. Virou-se lentamente sobre o próprio corpo. Lenta, dolorida, mas viva. Sorriu ao notar o ronco compassado do companheiro. Ele estava ali. Olhos fechados, passado velado. Pijamas listrados, faces encovadas, nem tantas rugas reveladas. Seu Antônio, que nem o tempo abandonara. Encaixou-se naquele momento, sabendo ser ele todo seu.

Todo um cordão de anos foi assim se alinhando e esticado em décadas para o seu coração alcançar. Que lástima não ser mais jovem. No entanto, não desejava voltar aos anos que não lhe pertenciam. Ao vazio da cama adormecida e ao espantalho do tempo. Cronos a lhe zombar, fingiu não mais se apressar.

Aos poucos, levantou-se com a dificuldade dos dias subindo pela sua coluna levemente arqueada. Alcançou o espelho. Sorriu para aquela senhora que, de repente, encontrava seu destino no ritmo certo. Minuto por minuto, auroras repetidas, seu mundo enfim despertado.

…………………………………………………..

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57 comentários em “Sem Horas (Claudia Roberta Angst)

  1. Bia Machado
    29 de outubro de 2013

    Lindo, adorei! Um texto que transmite leveza, é puro, bem escrito, e a autora mostrou muita segurança na escrita. Achei até uma pena ter sido curto, podia ter escrito mais! 😉

    • Claudia Roberta Angst - C.R.Angst
      30 de outubro de 2013

      Agradeço seu gentil comentário, Bia. Concordo com você quanto à brevidade do conto. Eu mesma me canso das minhas palavras e encurto tudo…rs.

  2. José Geraldo Gouvêa
    29 de outubro de 2013

    Texto chato, cheio de platitudes, de exageros açucarados que parecem os romances espíritas da Yvonne Ribeiro (“Memórias de um Suicida”, arrrgh!). Muito ruim.

    • Claudia Roberta Angst - C.R.Angst
      30 de outubro de 2013

      Calma aí que tive de procurar o que são platitudes. Valeu, mais uma palavra para o meu parco vocabulário. Não li “Memórias de um Suicida”, mas pelo jeito você não o recomenda muito…rs.

  3. Alexandre Leão.
    28 de outubro de 2013

    Parabéns, GAROTA! Porque isso aqui, só uma mulher saberia criar com tanta maestria. Porém se o autor deste for homem, que receba ainda mais fortes minhas homenagens. Deu para navegar sobre as formas poéticas, o jogo incrível de palavras bem usadas. Em suma, me deleitei aqui. Que mais posso dizer? Obrigado por esta leitura e abraços. Adorei!

    • Claudia Roberta Angst - C.R.Angst
      30 de outubro de 2013

      Adorei o “garota”. Rejuvenesci décadas…rs. Já me haviam dito que escrevo mesmo como uma mulherzinha…rs. Muito obrigada pela atenção e gentileza. 🙂

  4. Alexandre Santangelo
    28 de outubro de 2013

    Excelente conto, poético, maravilhosamente bem escrito, envolvente, muito bom! E acima de tudo simples! Na medida certa.

    • Claudia Roberta Angst - C.R.Angst
      30 de outubro de 2013

      O que mais gostei do seu comentário foi o “acima de tudo simples”. A ideia era essa – mostrar de forma simples os sentimentos de Betina. Thanks.

  5. Juliano Gadêlha
    27 de outubro de 2013

    Uma escrita impecável, isso é sempre bom de se ver. O texto é poético, sensível, tem belíssimas descrições. Como já comentei em um conto parecido, esse não é muito o meu estilo de texto, mas sua qualidade é inegável. Inspirado, para dizer o mínimo. E mais uma vez uma viagem no tempo “não- convencional”. Belo trabalho, parabéns!

  6. Sérgio Ferrari
    25 de outubro de 2013

    Ah não curti as adjetivações escolhidas. Mas teria curtido e aplaudido se a personagem tivesse SINESTESIA. Uia, já pensou que bom trabalhar com o conceito? O ronco compassado do companheiro…. Ok, vamos por isso em prática e é assim que fica: RÓOOOOOORRRRRRRRRRR
    RÓOOOOOORRRRRRRRRRR
    RÓOOOOOORRRRRRRRRRR
    hehehehe dissonância é isso.

    • Claudia Roberta Angst - C.R.Angst
      30 de outubro de 2013

      kkkkk.. e eu que me achava a própria mulher sinestésica! Quanto ao ronco do companheiro, preferi não lançar mão de qualquer onomatopeia. Talvez na próxima, quem sabe? Aí vira um poema concreto – com risco de atingir alguém bem na cabeça..rs.

  7. Gina Eugênia Girão
    25 de outubro de 2013

    É um conto porque narra um passar de tempo/lugar/situação – sem pecados gramaticais, e gosto muito disso! – mas também é prosa poética pura! A viagem foi outra, acho… Muito bom, pela poesia – que a mim não cansa, não – mas rejeito, rejeito rejeito e rejeito esse final com gostinho de moral.

    • Ricardo
      26 de outubro de 2013

      Boquiaberto a cada vez que releio este conto… Que descrição de passagem do tempo!

      “Assim, atravessaram o deserto de dias, semanas e meses. Sem perceberem, os anos também ali se infiltraram lentamente. Ivan passara a ser visita esporádica. Não havia provas de sua existência pelos cantos daquele quarto. Sumiram rastro e traço, rosto e o mero cansaço.”

      Gina, por que você sentiu gosto de moral ao final? Não estaria mais para resignação, ou aceitação…?

      Este conto é muito lindo! Quase tanto quanto profundo… Uma verdadeira delícia de se ler e reler! 🙂

    • Claudia Roberta Angst - C.R.Angst
      30 de outubro de 2013

      Obrigada pelo comentário, Gina. Não tive intenção alguma de introduzir qualquer tipo de morar no conto, mas posso ter dado essa impressão sim. Vou rever.

  8. Andrey Coutinho
    25 de outubro de 2013

    Muito bom! Prosa poética de primeira… A linguagem é limpa e inequívoca, e as imagens são, em sua maioria, muito profundas. O sentido literal da narrativa se desenvolve de maneira fluida, apesar do proposital anacronismo. É um conto para ler e reler.

  9. Thata Pereira
    25 de outubro de 2013

    “Tomariam vinho ou veneno” – adorei essa frase.

    Tão sensível e bonito. As palavras usadas, o tom… soou tudo tão prazeroso! Parabéns!

  10. fernandoabreude88
    25 de outubro de 2013

    Poxa, esse é romântico mas está muito bem escrito. Legal, as descrições e os personagens criam empatia com o leitor, além do final que é emocionante.

  11. Frank
    24 de outubro de 2013

    Este é mais um conto cujo estilo é “mais poético” e para o qual preciso de treinamento para poder apreciar devidamente. Acho que trabalhar com pesquisa e ler coisas referentes a isso me “enrijeceu” a percepção. É justamente por isso que ler alguns os contos do desafio se torna mais que um prazer, passa a ser um aprendizado para minha sensibilidade. Obrigado e parabéns pelo conto.

    • Claudia Roberta Angst - C.R.Angst
      30 de outubro de 2013

      Não consigo me libertar da poesia, ela gruda nas minhas palavras..rs. A sua percepção me parece ótima e admiro quem sempre busca refinar a sensibilidade. Parabéns.

  12. bellatrizfernandes
    23 de outubro de 2013

    Bacana e muito interessante. Acho que é o primeiro dos contos que eu li que pega a viagem no tempo do modo tradicional: Através do próprio tempo natural dele. Muito bom!

  13. claudia roberta angst CRAngst
    22 de outubro de 2013

    Seriam duas mulheres ou apenas uma Betina perdida no tempo? O título tem relação com isso? Duas senhoras sem horas? Talvez a viagem no tempo não tenha sido o esperado pelo leitor,mas uma adaptaçao subjetiva do tema. Também tenho dúvidas sobre a brevidade do conto. Talvez a narrativa encurtada não tenha sido suficiente para captar a atenção

  14. Ricardo Gondim
    22 de outubro de 2013

    Neste conto, a viagem no Tempo é um prosaísmo. Pena que Cronos seja esse traidor zombeteiro. Belíssimo texto.

  15. Elton Menezes
    21 de outubro de 2013

    Sobre a história… Um narrador onisciente mergulhado em prosa poética nos brinda com palavras belas e uma história de (falta de) amor e sofrimento. Embora siga um rumo muito bonito, em que o tempo de dor se perde ao longo dos anos, o tema central não aconteceu. Não há uma viagem no tempo, mesmo que metafórica, e por isso deveria ser desclassificado do concurso.
    Sobre a técnica… Apurada, metáforas ricas, um texto muito bem construído. Sabemos pouco sobre Ivan, talvez porque o narrador mergulhe muito mais na mente de Betina. Isso talvez ficasse ainda mais forte se o texto fosse narrador personagem, com Betina gritando desespero para o leitor, mas o seu onisciente está maravilhoso.
    Sobre o título… Muito bom. Tudo a ver com o tempo que se perdeu na dor.

    • Claudia Roberta Angst - C.R.Angst
      30 de outubro de 2013

      A viagem no tempo foi interna, entre os sonhos e as memórias da personagem. A mente de Betina foi minha viagem…rs. Obrigada pelo seu comentário, me fez ter um novo ponto de vista em relação ao meu conto. Beijo.

  16. Rodrigues
    21 de outubro de 2013

    Está bem escrito, mas creio que todo o texto tenha sido construído com imagens que não me agradam. Da cama vazia que denuncia ausência às mãos entrelaçadas que juntavam destinos, nada conseguiu me fisgar, exceto uma frase perdida ou outra por ali. O autor desse texto provavelmente sairia na porrada comigo numa discussão de bar.

  17. Marcellus
    20 de outubro de 2013

    Outro conto onde a viagem no tempo não é mecânica, nem Física. Um belo texto, difícil aos que têm a mente puramente cartesiana, que conseguem admirar sua beleza, mas não enxergar sua profundidade.

    Parabéns!

  18. Edson Marcos Gomes Nazário
    20 de outubro de 2013

    A vejo escrevendo sentada na grama de um jardim florido, uma brisa fresca beijando seus cabelos e um sorriso suave… Inspirada. Parabéns!

    • Claudia Roberta Angst - C.R.Angst
      30 de outubro de 2013

      Acertou no cenário ideal – adoro jardins floridos com brisa fresca. Só que escrevi metade do conto na penumbra, sentada na cama, em um bloco qualquer, com canetinha fuleira…rs.. enquanto esperava a filha se arrumar para a escola. Na próxima vez, vou procurar um jardim. 🙂

  19. Felipe Holloway
    19 de outubro de 2013

    A exata antítese de outro texto romântico que li, entre os do concurso. E, por isso mesmo, maravilhoso.

    Lindo, lindo. Depois comento melhor. =)

    • Felipe Holloway
      19 de outubro de 2013

      E digo mais: tomara que tenha sido escrito por uma mulher. E solteira, haha 😉

      • Ricardo
        21 de outubro de 2013

        After me, man…! Soltei o A maiúsculo bem antes… hehehe… 😉

      • Claudia Roberta Angst - C.R.Angst
        30 de outubro de 2013

        E digo mais, me senti literalmente assediada – no sentido literatura da palavra…kkk. É, eu sou menina.

  20. Gustavo Araujo
    19 de outubro de 2013

    Um dos melhores contos do desafio, sem qualquer dúvida. Por mais que eu olhe, leia, releia, não consigo encontrar um defeito. As palavras caem perfeitamente na narrativa. É possível sentir a dor, a angústia, o desejo — enfim, tudo, o que ela passa. É o amor puro, em sua mais autêntica essência. Falar disso sem parecer piegas é difícil, mas a pessoa que escreveu essas linhas conseguiu fazê-lo de modo natural, sem forçar a barra. Como disse o José Geraldo ao comentar um conto do concurso do mês anterior, este aqui é “fantástico justamente por não ser fantástico”. Parabéns de verdade!

  21. mportonet
    18 de outubro de 2013

    Gostei muito!

    Sensibilidade de quem domina o ofício e sabe conduzir o leitor com maestria.

    Parabéns!

  22. Ricardo
    18 de outubro de 2013

    Lindo! Belo! Belíssimo!
    Viva a poesia! 🙂
    Que maravilha ler um texto repleto de delícias espalhadas por cada linha… Fui pego como uma formiga, seguindo o rastro do mel literário derramado com maestria sobre todo este conto.
    Até mesmo o próprio deus do Tempo teve de fazer-se presente nesta obra, tão belo retrato seu aqui bordado.
    Parabéns para a autorA! E obrigado pelo presente recebido nesta fria madrugada! 😀

    • Claudia Roberta Angst - C.R.Angst
      30 de outubro de 2013

      Adorei a sua imagem da formiga atraída pelo mel…rs. Fofa. Melhor ainda o retrato do Tempo bordado… Foi muito poético. Obrigada por receber meu conto tão bem. 🙂

  23. Agenor Batista
    18 de outubro de 2013

    Nada como uma boa dose de talento e poesia a nos tocar o coração de forma simples, inteligente, instigante e de beleza ímpar. Parabéns!

  24. selma
    17 de outubro de 2013

    otimo, bonito, bem escrito, prende, envolve, muito bom! tudo pode ser simples e belo, sem complicações, no bom portugues, sem exageros ciberneticos, parabens! gostei muito!

  25. rubemcabral
    17 de outubro de 2013

    Muito bom! Um conto romântico muito bem escrito: gostei!

  26. Sandra
    17 de outubro de 2013

    Noossaa, que linda poesia!
    Passagens como esta: “Acordou. Estrelas ainda pousavam nas suas retinas…” fazem cócegas no cardíaco, rs… O finalzinho, me lembrou aquele poema lindo da Cecília Meirelles, “Retrato”.
    Excelente!
    🙂

  27. Gilnei Nepomuceno
    16 de outubro de 2013

    Muito interessante. Parabéns.

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Publicado às 16 de outubro de 2013 por em Viagem no Tempo e marcado .
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