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Detox Literário.

“O Safári da Estrela Negra” – Resenha (Gustavo Araujo)

SafariHeresia suprema para quem gosta de livros e viagens como uma união necessária: eu nunca tinha lido Paul Theroux. O escritor americano nascido em 1941 é uma espécie de mentor filosófico de viajantes há mais de 40 anos.

É dono de pelo menos uma dúzia de livros de viagens, além de romances, que têm influenciado gerações de pretensos seguidores desde o lançamento de “O Grande Bazar Ferroviário”, obra que revelou seus percalços a partir de Londres, passando pelo Oriente Médio, Índia até chegar ao Sudeste Asiático e regressar à Europa pelo Transiberiano.

É possível que esse currículo tenha me afetado de forma negativa, talvez até em um nível subconsciente, fazendo com que eu simplesmente o ignorasse. O mais provável é que meu velho preconceito contra sumidades tenha falado mais alto. Para que, afinal, ler um livro desses – perguntava a mim mesmo –, afinal, impressões são só impressões e de nada valem se eu não posso conferi-las pessoalmente.

De alguma maneira, porém, “O Safári da Estrela Negra” pousou no meu colo. Só aí percebi o tempo que havia perdido. Encontrei o estilo de Theroux em sua plenitude, transbordando observações sarcásticas, honestas, apaixonadamente mau humoradas e preconceituosas, sem a mínima intenção de fazer média com quem quer que seja ou de parecer politicamente correto.

A viagem que deu origem ao livro ocorreu em 2002, quando, à beira dos 60 anos, Theroux viajou por terra do Cairo à Cidade do Cabo, um feito, por si, extraordinário, dada a ausência de transportes regulares e os perigos e desafios envolvidos. Trazendo consigo apenas uma sacola velha e vestindo roupas surradas, sua intenção desde o início era desaparecer, tornar-se incomunicável, inatingível por celulares ou emails. Tornar-se um fantasma.

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A força do livro vai muito além do mero relato de dificuldades logísticas. Na realidade, o que torna a obra irresistível é tanto o afiado poder observação do autor, como, principalmente – e esta talvez seja sua melhor qualidade –, encontrar pessoas, fazê-las falar, contar suas histórias. São tantos os personagens que cruzam o seu caminho que fica difícil apontar qual o mais interessante.

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E o mais curioso é que são pessoas comuns, gente ordinária que, sob o estímulo persuasivo do autor, se transformam em protagonistas efêmeros de contos fantásticos. Nada de estereótipos ou nativos coloridos, mas gente cujas palavras se tornam o ponto de partida para que Theroux aborde aspectos históricos e culturais.

“Segundo seus próprios cálculos, Neiby Makonnen, um ex-prisioneiro, com cerca de 50 anos, tinha definhado na Prisão Central [de Adis Abeba] de 1977 a 1987 – dez anos de qualquer forma.

— Foi por causa da política. Eu estava do lado errado.

Ele ria com a simples menção de acusações ou julgamento. Tinha sido apenas recolhido, certo dia, e atirado na cadeia, onde – e ele era um homem habituado a ler e escrever – não havia livros e nada com que escrever.

— Eu enlouqueceria na prisão – disse eu.

— Você aprenderia a ter paciência – disse ele.

— É verdade – disseram os outros ex-prisioneiros.

— Um dia, quando eu já estava lá há cerca de um ano, um homem foi trazido pelos guardas. Ele tinha sido revistado, mas, não sei como, ninguém reparou no livro que estava com ele. Era … E o Vento Levou. Ficamos tão felizes! Éramos todos educados. Nós nos revezávamos para ler o livro. Havia 350 homens na minha seção. Tínhamos uma hora por dia, cada um, para ler o livro.

“Essa era melhor parte do dia na Prisão Central: ler … E o Vento Levou. Eu resolvi traduzir o livro. Eu não tinha papel, então alisei o papel aluminizado de maços de cigarros e usei o lado de trás, onde era possível escrever. Alguém contrabandeou uma caneta para dentro da cela. Eu escrevia com letra bem pequena. Como era o Supervisor de Passatempos, todas as noites lia um trecho da minha tradução para os outros prisioneiros.

“Mas eu ainda tinha que compartilhar o livro, só ficava com ele durante uma hora. A tradução levou dois anos. Foi escrita em três mil embalagens de cigarros. Eu dobrei uma por uma e coloquei tudo de volta em maços de cigarros e, quando os prisioneiros eram soltos, levavam as folhas para fora da cadeia, enfiavam nos bolsos das camisas.”

Neiby permaneceu na prisão durante sete anos. Quando foi solto, procurou as 3 mil folhas com sua tradução de … E o Vento Levou. Localizá-las e reuni-las levou dois anos de viagens e investigações. Finalmente conseguiu publicar sua tradução do romance. Era a tradução que os etíopes liam.

— Qual a sua passagem favorita do livro.

— Não sei. Eu li o livro sem parar, durante seis anos. Já conheço tudo de cor.

No final de A Handful of Dust (Um Punhado de Poeira), romance de Evelyn Waugh, o prisioneiro Tony Last é condenado a ler toda a obra de Dickens – repetidas vezes – para o sr. Todd, seu enlouquecido captor. É uma coisa implausível e, portanto, divertida. Mas a história de Neiby Makonnen era muito melhor – e ainda mais horrivelmente engraçada, por ser verdadeira. Seis anos olhando para Scarlett O’Hara em uma prisão etíope.”

Sugestões do tipo: “não vá, é perigoso” provocam um efeito contrário em Theroux. Aconselhado a evitar o Sudão, não teve dúvidas em seguir para lá. O mesmo aconteceu na Etiópia e no percurso até o Quênia, onde o caminhão em que havia tomado carona foi atacado por bandidos do deserto.

É nesse trecho que se percebe sua franqueza ao escrever. Ele não poupa o leitor, sob qualquer critério, de observações pessimistas quanto à corrupção no Quênia e a total falta de infraestrutura da Tanzânia. A culpa, segundo diz, é menos dos africanos do que daqueles que ele chama pejorativamente de “agentes da virtude”, as agências humanitárias que atuam na África. Theroux não vê problemas em apontar o dedo para o trabalho desenvolvido por tantas ONGs e afins e classificá-los como o grande motivo pelo qual o continente permanece patinando em um lodaçal de miséria, cenário perfeito para aproveitadores, prostitutas e vigaristas.

http://t1.gstatic.com/images?q=tbn:ANd9GcSif5tryAL9cImMiNX1ZUTCvAn_pHdPXRw2MDmADbxqjO4hhPs0Ao chegar a Uganda e depois, no Malaui – lugares em que já estivera antes – Theroux só confirma essa constatação. Indo além, acusa sem o mínimo pudor missionários religiosos de tentar promover uma lavagem cultural nas tribos mais afastadas. Isso, de acordo com ele, é um dos fatores que leva ao êxodo transformando cidades em favelas que se esparramam pelo horizonte, repletas e doenças, crimes e desesperança.

O que mais o deixa indignado, percebe-se, é como esses missionários – evangélicos, principalmente – julgam-se os detentores da verdade suprema, sempre ostentando sorrisos de comiseração pelo fato de outros não terem, ainda, encontrado um suposto caminho para a “salvação”. É o que se deduz de sua conversa bastante amistosa com uma garota em um trem da África do Sul para Moçambique.

Viajando em trens caindo aos pedaços, matatus, micro-ônibus, caminhões, e até mesmo canoas, Theroux leva o leitor à verdadeira África, não àquela vista pelos turistas. Aliás, esse é um rótulo que ele faz questão de dispensar, atacando e ridicularizando com observações deliciosamente sarcásticas aqueles que só vão à África para perturbar os animais.

Cidade do Cabo, África do Sul

Cidade do Cabo, África do Sul

Mesmo que não se concorde com tudo o que Paul Theroux diz, é possível entrever por suas linhas que o continente africano prima por apaixonantes contradições e por uma complexidade sedutora.

A maior qualidade do livro talvez seja exatamente essa: a franqueza insuperável com que foi escrito. É uma pessoa falando, não uma entidade bíblica ou um professor cansado. É alguém que esteve no local e o experimentou. Não se contentou com estudos apenas, mas foi até lá e viu, com os próprios olhos, daí passando a impressão que o atingiu.

Deixar o leitor desconfortável, em dúvida, questionando-se, é o maior mérito de qualquer escritor. Nisso, Paul Theroux é mestre. Sua viagem termina com um reflexo do paradoxo do continente. Revela-se “africanizado, roubado e doente”, uma provocação irresistível àquele que lê.

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Informação

Publicado às 3 de dezembro de 2012 por em Resenhas e marcado , .
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