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Detox Literário.

Nos Umbrais (Anorkinda Neide)

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(Dilacerado sem sorte)

Atravessamos vários problemas, mas jamais nos separamos, Antonieta e eu… Mesmo atravessando diversos umbrais, a presença dela me fortalece e de seu lado, andar comigo dá um sentido a sua morte/vida.

Antonieta está bastante desfigurada, por exemplo, já lhe falta um olho, o que não me afeta, visto que eu perdi os dois na luta contra os corvos do Umbral Negro. De certa forma eu enxergo, talvez através do único olho morto de Antonieta, mas acredito que neste submundo os sentidos físicos são desnecessários… Bem, qualquer forma física é desnecessária, não fosse, não haveria tanta deterioração.

Eu não estaria semi/vivo até hoje se Antonieta não estivesse aqui… Sempre meus pensamentos se voltam para ela, a única bênção nestes infernos que tenho percorrido. Foi uma ideia providencial, ter deixado como último pedido que Antonieta fosse enterrada ao meu lado no túmulo… Eu sabia que ela não viveria muito tempo sem mim.

Ela veio já na primeira noite. O que foi ótimo, pois eu estava atravessando o Umbral Púrpura. Antonieta foi muito corajosa, ela notou minha insegurança e principalmente o perigo que eu corria diante aquele exército de ratos esfomeados. Isto faz muito tempo… Primeiro Umbral! Ainda estávamos inteiros àquela época.

Caminho ainda sobre pés esfacelados, sem dedos. A fome saciada pelos vermes e insetos que encontro pelas estradas agourentas que percorro. Não posso parar ou são eles, vermes e insetos que me devoram. Sempre em frente, atravessando umbrais dos quais eu não gostaria de guardar lembranças, mas elas vêm, involuntária e incessantemente.

Como aquele mais terrível Umbral, o sétimo… Aterrorizante como o pior de todos os meus pesadelos! Tudo vermelho, cheiro de sangue e morcegos voando em rasante, guinchando ensurdecedoramente. Antonieta, daquela vez, nada esboçou fazer, paralisada de medo. Foi sendo mordida e sugada por cada um e por vários deles ao mesmo tempo.

Por minha vez, eu debatia-me e arrancava de cima de mim, um por um, ainda com os dentes cravados em minha carne, levando assim bons bocados de meu corpo. Mas o desespero me afligia, queria proteger Antonieta. Joguei-me por cima dela e deixei-me devorar mas se ficássemos ali parados, morreríamos… Que paradoxo!

Não estávamos já mortos?

Peguei-a no colo e corri, desenfreadamente, sempre à frente. Ao final deste rubro inferno, estávamos, os dois, sem grandes porções de nossa carne, mas estávamos juntos e prosseguindo assim, ultrapassaríamos todos os obstáculos.

Sou injusto ao dizer que não há bênçãos neste lugar… Não sentimos dor! Este presente nos conforta enquanto esperamos morrer de verdade. Acredito que este dia chegará quando não houver mais nenhuma porção de nosso corpo a ser devorada por seres insaciáveis.

Antonieta encosta-se, quer um abraço. Meio sem braços, a estreito e penso no que antes fora seu dorso lustroso, de um pêlo cor de caramelo. Ela geme baixinho pela primeira vez em todo este tempo… Corajosa, minha menina.

Sigamos, Antonieta, sempre em frente. Este tormento há de acabar, quem sabe você possa me levar ao céu dos cachorros quando esta sua missão de lealdade se completar…

6 comentários em “Nos Umbrais (Anorkinda Neide)

  1. Fabio Baptista
    6 de maio de 2015

    Acho que esse foi um dos seus contos que eu mais gostei, Anorkinda.

    Achei a “voz” do narrador bem diferente da habitual. Ficou algo bastante denso. No decorrer da leitura, lembrei de um desenho muito bom que saiu no cinema recentemente “Festa dos Mortos”, ou algo assim, que o personagem também percorre um tipo de limbo.

    Faço coro com a Santino, queria um pouco mais dessa vez. Até me surpreendi quando rolei a barra e vi que o texto já estava no final.

    Tecnicamente só fiquei em dúvida se em “andar comigo dá um sentido a sua morte” não haveria crase no “à sua morte”.

    SPOILER:
    A surpresa foi realmente muito bacana, no estilo “Livro de Eli”. Mas tem um detalhe que poderia ser melhorado, ou talvez eu tenha entendido errado: no começo você diz que os corvos devoraram os olhos dele, o que dá a entender que não era cego a vida intreira. Acho que teria ainda mais impacto se Antonieta fosse um cão guia (ou que ao menos isso ficasse mais claro, caso tenha sido a ideia).

    Ótimo conto, parabéns.

    Abraço!

    • Anorkinda Neide
      7 de maio de 2015

      Que bom que gostou!
      Bom vc falar na voz diferente da habitual…vou pensar nisso no próximo conto. Pq naõ tenho acertado a mão faz tempo!

      Eu acho, e a crase sempre nos deixa em dúvida…oh ceus oh vida… que antes de ‘sua’ nunca vai crase.só acho. rsrsrs

      Não, não pensei em cão guia. Interessante a sua ideia…
      Na verdade me inspirei num conhecido q faleceu e a cachorrinha dele morreu no dia seguinte de forma misteriosa! :O

      Valeu pela leitura! Abração

  2. vozesfemininas
    5 de maio de 2015

    E ai? Eu vim.

    O final é muito bom. O conto tem um clima de LIMBO que é bem interessante e você induz usando poucas palavras. Acho que é um grande defeito meu querer sempre mais. Pois é… queria mais 😉

    • Anorkinda Neide
      5 de maio de 2015

      Hehehe é o defeito do bom leitor, ávido por literatura!
      Obrigada, gosto muito deste texto e sempre tenho medo de esticar e estragar tudo… inseguranças…

      Valeu, Maria Santino pela presença e por me lembrar do Vozes femininas, fui lá e já li um mini conto bem interessante! 🙂

      Abração

  3. Anorkinda Neide
    7 de março de 2015

    Obrigada por não dar spoiller…kkk

    Que bom que gostou, Jeff! Abração

  4. JC Lemos
    7 de março de 2015

    Caramba! Muito bom!

    Gostei, e gostei principalmente da surpresa do final. Toda a narração tomou uma ternura maior após a revelação final. A escrita surreal me remeteu às obras de Neil Gaiman. A passagem pelo inferno, ou purgatório, ou seja lá o que for… O ato da companheira ter percorrido aquilo tudo apenas para protegê-lo… Muito bom mesmo.

    Parabéns!

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Informação

Publicado às 5 de março de 2015 por em Contos Off-Desafio e marcado .