Ismália estava em um estado de semiconsciência, mas naquele pesadelo podia ouvir pastosa e lentamente:
– O valor é este. Cuidaremos de tudo, não se preocupe.
– Tem certeza? Não terei nenhum imprevisto?
– Absoluta! Recebemos várias assim, não se preocupe. Sabemos o que fazer.
Quando acordou estava amarrada a uma cama em um amplo dormitório. A cabeça doía terrivelmente e a boca amargava. Era dia alto, e diante de sua cama, do outro lado da parede, havia um crucifixo de madeira a encarando. Tentou se sentar, mas não podia devido as amarras. Resolveu chamar:
– Alguém! Por favor, alguém!
Forçando a vista pôde ver uma enfermeira de uniforme azul no final do corredor. A mulher lia uma revista, e se deteve alguns segundos para olhar em sua direção. Ismália pediu:
– Água, por favor!
A mulher voltou a olhar a revista, jogada preguiçosamente em sua cadeira. Ismália insistiu e insistiu, a mulher continuava ignorando. Por fim, incomodada levantou e voltou com um médico:
– Vejo que acordou. Como se sente? – Perguntou o alto homem de jaleco
– Que lugar é esse? Por que eu estou aqui?
– Ora, você sabe… Andou causando problemas para sua família e, preocupados com a sua saúde eles resolveram te enviar para repousar…
– Preocupados? Saúde?! Só pode estar brincando!
– Não grite, senhorita!
– Eu não estou gritando!
– Desse jeito teremos que lhe aplicar outro sedativo.
– EU NÃO ESTOU GRITANDO!
– Peggy, mande chamar Irene imediatamente!
– Sim, doutor Avaro! – a pálida enfermeira saiu arrastando os pés.
Ismália tinha a impressão de já ter ouvido a voz do médico antes, mas não se recordava de onde. Resolveu tentar arrancar algo dele:
– Quem é você?
– Meu nome é Avaro Médici e eu sou o dono do Hospital Santa Saligia. Aqui pessoas com a saúde debilitada vêm para se recuperar.
– Mas minha saúde não está nada debilitada!
– Não foi o que seu pai me disse, mocinha! Ele disse que a senhorita estava muito doente.
Ismalia ia argumentar, tinha certeza absoluta que aquilo não passava de um mal entendido e a clareza de seus argumentos conseguiriam resolver a situação. Sempre fora uma moça muito inteligente e astuta, tivera aulas de latim, retórica e etiqueta, sabia se sair bem em qualquer situação social. Mas algo retirou-lhe completamente o prumo da argumentação naquele momento: uma enfermeira anormalmente alta e forte entrara arrastando tiras de couro com espinhos metálicos, golpeando o chão com estardalhaço.
– Pois não, doutor? Quem é a de hoje? – disse exibindo os dentes para Ismália como em um rosnado silencioso.
– Calma Irene, guarde seu entusiasmo para amanhã! Para hoje eu quero apenas uma dose de Litium intramuscular para nossa nova hóspede!
– Não! Por favor, deve haver algum engano, meu nome é Ismália Du-Pont e eu exijo que chamem alguém da minha família agora mesmo!– gritou em pânico Ismália, enquanto a corpulenta mulher pegava algo em um armário trancado à chave.
O médico gargalhou e a enfermeira lhe fez eco, se aproximando com a enorme agulha. Enquanto a substância nublava novamente sua mente, Ismália achou ter visto o crucifixo lentamente virar de cabeça para baixo, enquanto a voz lenta e pastosa do médico ecoava em seus ouvidos:
– Você será minha hóspede… Acostume-se!
***
– Por que você está aqui? – uma voz lhe perguntou.
Ismália voltava lentamente de seu torpor, e mesmo sem saber de quem era ou de onde vinha a voz, respondeu:
– Eu não sei…
– Vamos, tem que ter um motivo! Eu estou aqui porque traí meu marido.
Agora, ao lado de Ismália, a voz ganhava contorno: uma moça branca e muito magra, com olhos encovados, porém muito lúcidos, e uma bem composta trança no cabelo. A mulher continuou:
– Berenice está aqui porque raspou os próprios cabelos. Medéia está aqui porque abortou os próprios filhos.
– Que horror!
– Raspar os próprios cabelos ou abortar os próprios filhos?
– As duas coisas, eu acho.
– Então, o que de horrível você fez? A propósito, sou Helena! – disse a mulher, lhe desamarrando as mãos e os pés. – Se você seguir meus conselhos não vai precisar disso aqui, confie em mim. Poderemos até mesmo passear no pátio pelas manhãs. Do gradeado pode-se ver o mar. Mas então, o que de horrível você fez?
– Eu não sei, eu faço tudo certo, eu estudo…
– Horrível!
– Horrível o que?
– Estudar! Pelo menos é estudar para ser professora?
– Não, eu estudo as leis.
– Horrível!
– Estudar direito?
– Sim, coisa dos homens. Não pode!
– Isso é um pensamento absurdo que colocaram na sua cabeça, Helena!
– Já colocaram muita coisa absurda na minha cabeça, mas essa não é uma delas. Confie em mim. Eu sei como sobreviver aqui.
– Acredite, quando pudermos votar pelos nossos direitos tudo isso vai mudar.
– Votar? Inutilidade!
– Como assim?
– Meu pai era carvoeiro, ele podia votar. A vida dele como carvoeiro nunca foi melhor por causa disso!
– Isso não é verdade, o movimento trabalhista dos carvoeiros é forte e tem conseguido muitos avanços.
– Tudo bobagem! – continuou a mulher, quando de repente ouviram um som de pesados passos no corredor. Alerta como um coelho ela foi até a cama ao lado e se deitou, fingindo dormir. No escuro dormitório Ismália a imitou, sem saber ao certo por quê.
Um homem corpulento de cabelos escuros e sobrancelhas muito grossas entrou e foi até uma das camas. Olhou em volta, como se a conferir que não houvesse testemunhas. Havia uma mulher loura e pálida amarrada à cama, e ele silenciosamente a desamarrou e a jogou no ombro, saindo.
– Esse é o enfermeiro Lúcius. Nunca, de jeito nenhum, deixe que te apaguem à noite. Se não ele vem. – disse Helena, ainda deitada e com os olhos arregalados de terror.
– E o que ele faz?
– Ora, você sabe…
De repente elas começaram a ouvir, vindo do fim do corredor, sons de choro e gritos de mulher. Um som de tapa seguido de xingamento os calaram, sendo progressivamente substituídos por gemidos de prazer masculinos e um urro. Depois um som baixo de choro por alguns minutos, e o silêncio. Nos olhares de Ismália e Helena, iluminados por um filete de lua, o mais profundo pavor. Depois de alguns minutos que pareceram horas, os passos pesados voltaram, trazendo sua vítima aos ombros. A deitou na cama e a amarrou novamente. Lucius assoviava tranquilamente durante o serviço, e saiu levando consigo seu nefasto pio para longe.
***
Ismália não conseguira dormir. Varou noite em claro até ouvir os primeiros cantos dos pássaros. Lembrou da canção de ninar da mãe “Dorme, dorme rouxinol…“ e fechando os olhos quase adormeceu, quando o terrível barulho do chicote de Irene irrompeu no ambiente:
– Levantem, suas imundas! Pro banho! AGORA!
As mulheres se levantaram em polvorosa, se amontoando na saída para o corredor, onde eram impiedosamente golpeadas aos gritos:
– Insetos! Corja! Meretrizes imundas de dois dólares! Pro banho agora! Eu não agüento mais sentir o fedor de vocês aqui!
Ismália se amontoou junto às outras, passando pela terrível mulher e torcendo para que as chicotadas a esmo não lhe acertassem. Como um rebanho elas seguiram para o fundo do corredor para uma espécie de banheiro coletivo. Uma mulher com uma grossa mangueira de alta pressão as aguardava, liberando a água de uma vez só em um jato tremendamente gelado. A pressão da água lhe machucava a carne e mais tarde deixaria hematomas. Ao terminar aquele tormento, seguiram para outra sala onde receberam uma roupa limpa. A mulher da mangueira começou a falar.
– Hummm roupa limpa! Mas que sorte a de vocês, sabia? Lá embaixo elas não recebem banho nem roupa limpa. Elas apodrecem no próprio mijo e suor!
Olhando diretamente para Ismália, dessa vez, ela prosseguiu:
– Du-Ponts! Lamarcks! Bismarcks! Aqui vocês não são nada. Aqui vocês são menos do que eu! –disse, em meio a um riso debochado.
Se aproximando de Ismália pegou-lhe forte o rosto e abrindo- lhe a boca disse:
– Dentes perfeitos! Sabe, conheço um protético que me fará uma boa dentadura com eles! – a mulher gargalhou e Ismália viu que ela não tinha dente inteiro que restasse naquela fétida boca a poucos centímetros do seu rosto. Soltando rispidamente Ismália, gritou para o grupo: – PRO REFEITÓRIO!
– É a Invídia – disse Helena baixinho perto de seu ouvido – ladra, mas não morde. Você se acostuma.
Mas Ismália não queria se acostumar. Acostumar-se nunca foi para ela.
***
O refeitório era composto por uma longa mesa de madeira com bancos. A cozinheira derrubava em cada prato uma porção ínfima de mingau frio de aveia, sem sal nem açúcar, enquanto comia um enorme e açucarado sonho. Ismália não tinha vontade de comer, revirando a massa acinzentada em seu prato enquanto observava a enorme mulher comer sonho após sonho, lambuzando-se de creme e açúcar, mastigando ruidosamente de boca aberta.
– Não vai querer, não? – Helena perguntou.
– Não estou com fome.
– Eu se fosse você, comia. Se a gente parar de comer eles dizem que é melancolia e apagam a gente com remédio de noite… Ou coisa pior. O choque é bem pior!
A cena da noite anterior lhe causava repulsa maior do que o ruído da mastigação da cozinheira.
-Quem é ela?
– É Gilly. De todas, nem é a pior.
– Como ela pode comer desse jeito?!
– Se eu tivesse outra coisa pra comer além de mingau de aveia acho que eu também comeria desse jeito… – concluiu Helena.
***
Depois da refeição saíram para tomar sol no pátio. Como Helena dissera, uma brisa marinha soprava vinda da direção onde um gradeado alto separava o pátio de um penhasco.
– Vou te ensinar como andar – disse Helena.
– Como assim? Eu sei andar!
– Andar no pátio, sua boba! Tem que andar igual a todo mundo.
– Como assim?
– Tem que parecer um pouco louca.
– Eu não sou louca!
– Eu sei. Todo mundo sabe. Ninguém se importa!
– E como é parecer um pouco louca?
– Tem que sorrir um pouco. Só um pouco! Se sorrir muito é maníaca, se sorrir pouco é melancólica! E tem que andar meio devagar, como se estivesse em um delírio.
– O que?!
– Sim, porque se você andar lúcida eles te apagam com remédio de noite.
– E por que eles fazem isso?
– Uma mulher lúcida, aqui dentro, é perigosa. A gente então finge que está louca, pra eles nos deixarem em paz.
– Isso tudo é um pesadelo!
– É porque você é muito nova, com o tempo você acostuma.
– Eu não sou de me acostumar.
– Bobagem! Sorria um pouco, ande meio devagar, incline a cabeça como se fosse num delírio. Vamos!
E passaram pelo pátio, onde havia dezenas de mulheres a mais do que as de seu pavilhão. Quantos pavilhões haveria ali? As mulheres todas sorriam, andando devagar, com a cabeça levemente inclinada. Ao passar umas pelas outras, se cumprimentavam com uma breve reverência:
– Mademoiselle…
-Madame…
A maioria, ao passar e se cumprimentar, evitava olhar nos olhos da outra. Porém se Ismália insistisse um pouco conseguia receber uma olhadela. No fundo daqueles olhos havia distintos sentimentos, a maioria de pavor e vergonha. Em apenas uma delas ela percebeu revolta.
Ismália percebeu também que realmente algumas eram bem mais sujas e repugnantes que outras. Essas ficavam sentadas em um canto, sem se incomodar com aquele ritual todo.
– Quem são elas?
– As do andar de baixo. – disse Helena.
– Porque elas não estão caminhando?
– Ah elas desistiram.
– Desistiram do que?
– De fazer parte.
– Elas me dão medo…
– Sim, e se você não caminhar sorrindo toda manhã é isso que você vai virar. Você quer ir pro andar de baixo?
– Não, jamais!
Nesse momento Ismália viu uma moça ao longe no saguão, muito bem vestida e espartilhada, com um chapéu de pluma azul. Era Solange, sua prima. Tinha uma esperança, enfim. Correu até ela em disparada, atravessando o pátio. Helena ainda tentou a segurar, em vão.
– Solange?! Sou eu, Ismália. Por favor, fale com minha tia que eu estou aqui, houve um terrível engano!
A expressão da moça foi de espanto e lividez. Olhou em volta, envergonhada, e falou:
– Tirem essa mulher daqui.
– Do que está falando? Sou eu, sua prima!
– Eu jamais seria da mesma família que a escória. Eu sou infinitamente superior a você! Sabia que eu estou noiva do Carlos?
Ismália lembrou-se do jantar em que Carlos lhe pedira em casamento diante de toda a família e ela lhe negara. Queria estudar, ser livre, não planejava se casar tão jovem. Lembrou-se de cada expressão naquela mesa como se fosse uma pintura renascentista: o choque da mãe, a vergonha de Carlos, a ira do pai, a repulsa dos sogros… E então ela entendeu o porquê de estar ali.
– Eu vim trazer o restante do pagamento. Saiba que a família está fazendo um grande sacrifício para apagar seu nome dela!
Ismália sentiu uma mão forte pegar seu braço e em seguida sentiu a ferroada de uma agulha. O enfermeiro Lúcio estendeu seus tentáculos e a arrastou para longe dali, assobiando seu macabro pio.
***
Quando Ismália acordou estava em sua cama novamente. Estava desamarrada, mas não se moveu. Ficou ali repassando cada fato dos dias anteriores até que decidiu: Não iria se acostumar. Ela não era de se acostumar. Aguardou o calar da noite e se esgueirou para fora da cama. Não havia ninguém de guarda e a cama ao seu lado estava intocada.
Andou descalça pela pedra fria do corredor, sem fazer nenhum ruído, deslizando tal qual aparição em sua longa camisola branca. Seguiu até a porta no fim do corredor, que abriu facilmente, se deparando com uma pequena sacada para o mar. Olhou a vista, era incrivelmente bonita! A lua cheia dominava o céu apagando as estrelas e derramando sua prata sobre o mar. Ismália cantarolou a canção de sua mãe: “Dorme, dorme rouxinol, lá fora a doce lua brilha, brilha, toda tua…” E então, subindo no parapeito de mármore repetiu uma última vez “… brilha, brilha, toda tua… deixa minha menininha dormir calma e segura…”
Ela não se acostumou. Acostumar-se nunca foi para ela. Deu um passo à frente. Despencou para a eternidade.
oi, Dyaanne. Desculpe, não vou comentar o seu conto, estou sem tempo e sem disposição. Mas deixo uma observação: se tirar a última frase, que é muito explicativa (“Despencou para a eternidade.”), o final fica muito melhor e mais impactante. Pelo menos, para mim. Um abraço.
Olá, a loucura e a prisão em manicômio tão comuns no passado – e ainda hoje, por mais difícil que possa parecer, é um tema que me desorienta. Vivi com uma tia louca, mas que tinha consciência que muitas das outras internadas não estavam enlouquecidas, ficaram pela detenção.
Mesmo nós sendo ainda muito novas ela tinha o costume de nos dar “choques de realidade” porque em sua experiência manicomial ela sabia que os “clínicos” feriam mais que meia dúzias de verdade. Por isso mesmo ler sobre o tema ou assistir filmes que abordem tanto o enlouquecer real quanto o produzido por violentos, como o retratado no Conto, me tocam profundamente.
Famílias tóxicas geralmente possuem aparência de normalidade e clínicas de loucos podem parecer fora de moda, mas existem muitas exatamente como a que o texto nos mostra. O médico e dono aceita “resolver o problema” mediante uma contribuição (in)decente e sua equipe, geralmente composta de meliantes – porque gente honesta não vai trabalhar na “informalidade” – aceita fazer da vida de inocentes um inferno que justifique ao fim o diagnóstico.
Pobre das muitas Ismália que ainda vivem por aí, debaixo das garras de “amores” violentos.
A ideia de recontar o poema Alphonsus Guimarães foi magnífica porque trouxe outro movimento ao texto sem perder a musicalidade, denúncia e força. Ver Ismália mais uma vez se lançar ao mar em busca de liberdade nos faz ver que a dor ainda gera o belo e ainda chora e rasga a alma.
Parabéns!
Alphonsus Guimaraens … Corretor besta
Oi Elisabeth! Fico feliz que tenha gostado do conto, ainda que ele seja trágico e o tema, pesado. Porém certos temas merecem denúncia para gerar a reflexão.
O conto surgiu da reflexão de como situações socialmente terríveis corroem lentamente a sanidade e a dignidade. Partiu da inspiração de um fato real, embora infinitamente mais bárbaro, que foi a criação manicômio de Barbacena No início do século XXI.
Grande abraço, obrigada pela leitura e comentário!
Oi, Dayanne!
Gostei muito do seu conto!! Amo contos sobre manicômios, tenho alguns também…
Infelizmente retrata a realidade de muitas mulheres, num passado não tão passado assim, que precisa ser lembrado.
Parabéns!
Oi Priscila, manicômio é um tema forte. Aqui trouxe de uma forma mais lírica, mas para mim é um verdadeiro cenário de terror.
Gratidão!