EntreContos

Detox Literário.

O canto do Orixá – Conto (Fernanda Rodrigues)

“Era como se todo o tempo e a injustiça e a dor se tornassem audíveis por um
momento graças a uma conjunção dos planetas.”
William Faulkner – O som e a fúria


A noite caía lentamente revelando o manto negro pontilhado de estrelas brilhantes. No horizonte, clarões prateados anunciavam a tempestade que se aproximava, mas, apesar de toda aquela beleza, seus olhos viam apenas a luz amarelada da fogueira que ardia em frente à senzala, onde os pretos dançavam e cantavam ao som dos atabaques. Tinha sonhado com Ayaba, sua cabeça deitada no colo quente da mulher enquanto ela cantava e acariciava seus cabelos, acordou assustado, ainda ouvindo o canto suave ao seu redor, como se a voz triste e bonita tivesse escapado do sonho para ser replicada em dezenas de outras vozes que agora chegavam até ele sopradas pela brisa noturna. Um tremor frio percorreu seu corpo e ele fechou a janela com violência, tentando manter do lado de fora a cantoria que ecoava na noite.


Fortunato era um homem endurecido pela vida, contava pouco mais de trinta anos e já tinha as mãos calejadas, o rosto envelhecido e as costas curvadas sob o peso das responsabilidades que havia herdado do pai e dos incontáveis pecados que cometera por conta própria. Capataz da fazenda Cruz de Cedro assim como o pai havia sido antes dele, por muitos anos tinha sido os olhos, ouvidos e o chicote do patrão, desde pequeno percorria a fazenda no lombo do cavalo de seu pai e tinha aprendido que neste mundo absurdo, aos mais fracos cabe apenas obedecer.


Sempre muito calado, de poucos ou nenhum amigo, sua mão pesada e seu coração duro eram conhecidos por todos e, fosse na Cruz de Cedro ou nos arredores, não havia homem, nem preto, nem branco, que lhe faltasse com respeito. Apesar do jeito fechado, há algum tempo Fortunato andava ainda mais ensimesmado e quem tivesse coragem para encará-lo, veria que seus olhos revelavam algo que ele tentava em vão esconder. Vez ou outra, quando cavalgava sozinho pelos caminhos solitários que ligavam as plantações, o homem era surpreendido pela certeza de que alguém o observava e mais de uma vez chegou a disparar tiros em direção aos arbustos desafiando o que quer que se escondesse ali a aparecer e o encarar como um homem, alardeando que já tinha matado antes e que mataria de novo se preciso fosse, apenas para descobrir em seguida que não havia nada nem ninguém à espreita. Ainda assim, fosse dia ou noite, no meio das plantações ou na casa grande que agora ocupava praticamente sozinho, Fortunato sentia que havia sempre alguém de tocaia, aguardando a oportunidade para dar cabo de sua vida e cumprir uma das tantas promessas de vingança que pesavam sobre ele. Aquela sensação já o acompanhava há bastante tempo, porém, naquele início de noite, aquela presença que o assustava se tornava cada vez mais palpável. Para afastar o negrume que tomava sua alma e consumia seu juízo, Fortunato decidiu ir até a vila para beber como fazia nos velhos tempos, pois ficar ali ouvindo os pretos cantando como Ayaba cantava só piorava a situação.

Eu era muito pequena, mas me lembro bem de quando aportamos. Com passos cambaleantes e enjoados depois de tantos meses no fundo do navio, fomos levados para um lugar escuro e muito úmido mesmo nos dias mais quentes. Ali, meus olhos se acostumaram à escuridão e foi difícil enxergar na luz brilhante do dia quando saí de lá para ser entregue ao homem que havia me comprado. Fizemos o caminho de vários dias a pé, os adultos presos uns aos outros por pesadas correntes ligadas às argolas de ferro em volta do pescoço, o suor escorrendo por suas costas, os pés descalços muito feridos e acompanhados pela violência dos homens rudes que nos vigiavam noite e dia. Eu, pequena demais para ser colocada a ferros, apenas caminhava me esforçando como podia para não ficar para trás e me perder naquela imensidão verde que nos cercava. Exausta e faminta, lágrimas escorriam dos meus olhos e molhavam meus lábios, como se eu estivesse chorando, porém eu não chorava.


Quando chegamos, fui separada dos outros e levada para a casa grande onde me banharam, me vestiram e me deram de comer. A preta que cuidava da casa me fez compreender que eu estava ali para fazer companhia à sinhá Cecília, filha de Juvenal, nosso proprietário e senhor. Apesar do medo que eu sentia, logo percebi que, pela primeira vez desde que haviam me separado da minha família e me lançado naquela travessia de dor, morte e tristeza, eu estava segura. Naquela casa não me faltaria comida, nem um lugar quente para dormir, uma esteira colocada no chão ao lado do fogão de lenha e que eu dividiria com Bondade, a mulher que havia cuidado de mim quando cheguei, e com seu neto Ismael.


Sinhá Cecília e Ismael beiravam a minha idade e logo nos afeiçoamos. A menina, órfã de mãe e com um defeito de nascença que a fazia mancar, vivia na fazenda enquanto seus irmãos moravam na cidade. Nós três passávamos todo o tempo juntos e as duas crianças gostavam de me ouvir contar as histórias que eu me lembrava de ter ouvido de minha mãe – ou que talvez eu apenas inventasse. Quando eu falava sobre os espíritos da natureza e sobre o poder dos Orixás, os olhos de Cecília brilhavam de curiosidade. Ismael me ouvia atento e em seus olhos úmidos eu via algo que não era curiosidade, com o tempo compreendi que o que eu via naqueles olhos nublados era a saudade de uma vida que ele não conhecia, era a dor aguda e fria de quem não tem passado nem futuro, era a tristeza profunda que fazia o menino suspirar quando ninguém estava olhando.


Apesar de Ismael e eu sermos escravos, nossa vida na casa grande era boa e não foi difícil me acostumar. Por alguns momentos, eu quase me esquecia da vida que tive do outro lado do mar e assim, entre jogos e brincadeiras de crianças, os anos de nossa infância correram soltos até o dia em que fomos surpreendidos pelo turbilhão que mudaria nossos destinos para sempre. O filho mais velho do sinhô Juvenal chegou sem ser esperado, trazia a notícia que seu pai, que tinha ido até a cidade para cuidar de seus negócios, havia falecido. O moço de traços finos e modos educados que em nada lembrava o pai ficou conosco apenas pelo tempo suficiente para recolher os objetos de maior valor que haviam na casa, nomear Fortunato como administrador da Cruz de Cedro e partir levando Cecília consigo.


No mesmo dia, Fortunato mudou-se para a casa grande, assenhorou-se de tudo e como não via utilidade para mim ou Ismael, ordenou que nos mudássemos para a senzala e que a partir do dia seguinte fossemos para a lida com os outros pretos.



Fortunato bebeu sozinho até muito tarde e quando saiu da mercearia sem pagar a conta como de costume a lua tinha sumido encoberta por uma grossa camada de nuvens que se moviam com rapidez. Enquanto voltava para casa, os olhos pesados pelo excesso de álcool e embalado pelo trote manso e despreocupado de seu velho cavalo, deixou-se levar pelo animal que conhecia bem caminho, até que em certa altura, deu por si num lugar desconhecido. Tinha cochilado e ao acordar percebeu que estavam parados, o cavalo pastando tranquilamente. Com os pensamentos embaralhados pelo sono e pela cachaça, demorou para se dar conta de que tinha se desviado do caminho, olhou ao redor tentando se localizar, mas o céu estava encoberto por nuvens pesadas tornando a noite um negrume só, até que por um breve momento o céu se iluminou por inteiro, antes de que o estrando fosse ouvido, revelando a Fortunato um movimento estranho no alto da encosta que circundava o lugar.


“É tocaia” – pensou em meio à confusão que dominava sua mente e, não sendo homem que temesse nem vivo nem morto, puxou as rédeas do cavalo e fez o animal subir o declive. Quando estava há poucos metros, a pouca iluminação vinda das réstias de luz que espocavam no céu agora que a tempestade já se fazia sentir revelou uma figura branca que, presa a uma árvores, oscilava num movimento flácido que lembrava o abandono em que os enforcados são encontrados. 


“Alma penada” – pensou enquanto fitava o fantasma branco que dançava no ar, então, zombando da imagem patética que não oferecia qualquer perigo, gritou dizendo que não temia as almas de outro mundo e, ainda  com a arma em riste, o homem apeou e deu alguns passos cambaleantes em direção à aparição até chegar perto o suficiente para descobrir que aquilo não passava de um largo pedaço de pano, talvez um lençol fugido de algum varal que levado pela ventania havia se enroscado ali e agora dançava ao sabor do vento. Apesar de toda sua bravata, ao compreender a situação, Fortunato sentiu-se aliviado, gargalhou sentindo a tensão deixar o corpo, montou seu cavalo novamente e antes de partir disparou tiros para o alto, rindo e blasfemando como um louco.


Naquele momento, o fantasma se desprendeu dos galhos da árvore e voou em sua direção, envolveu seu corpo com um abraço violento e o derrubando ao chão. Assustado pelo ataque inesperado, Fortunato lutou com desespero para se desvencilhar daquilo que pressionava seu corpo com uma força de animal, enquanto o vento formava redemoinhos assobiando ao seu redor. Duas longas faixas brancas como braços se soltaram e enlaçaram seu pescoço fazendo-o sufocar, o ar lhe faltava, a pressão em suas têmporas era insuportável, ele sentia o coração batendo em sua garganta, quase escapando por sua goela, estava perdendo a consciência, morreria ali, sozinho, assassinado por um fantasma. Quando sentiu as garras frias da morte enlaçando seu pescoço, se deu conta de que o assobio da ventania era a voz de Ayaba numa cantoria soprada pelo vento. Naquele instante, a chuva que há muito se anunciava caiu com violência, empapando o pano branco que molhado não podia mais ser movido pela força que antes o animava e se desfez em meio à lama que se formava no chão onde Fortunato chafurdava. Reanimado pela água da chuva, mas ainda sentindo o ar lhe faltar, o homem levantou-se e com grande esforço montou seu cavalo outra vez, então, sem olhar para trás, deixou aquele lugar botando a alma pela boca e tomado pelo medo.



Ayaba era bela e forte como uma tempestade de verão. Desde que a vi pela primeira vez, compreendi que seu espírito nunca seria cativo e que ela não se dobraria sob o jugo que vergava nossas costas e quebrava nossas almas. Lembro-me que quando ela chegou, tentaram dar a ela um nome cristão, porém não houve força capaz de fazê-la aceitar aquela troca, sua força era grande e sua determinação imperturbável.  Eu gostava de ouvi-la contar sobre a terra de onde ela tinha vindo, a mesma terra de onde diziam que meus antepassados tinham sido tirados à força para serem vendidos aos brancos antes de morrerem de fome, frio, doença ou exaustão. Quando Ayaba falava daquelas coisas que eu nunca tinha ouvido, e que de alguma forma eu sabia que existiam, era impossível não sentir o chamado da liberdade gritando em meu peito. Ouvindo e sonhando com suas histórias, passei muitos de meus dias sem perceber a infância me deixar até que seu Juvenal morreu, Cecília foi-se embora e Fortunato, o capataz cruel e arrogante que dominava os pretos com mão de ferro, tornou-se o administrador da fazenda e o senhor de todos nós. No mesmo dia, nossas vidas despreocupadas tiveram fim, fomos mandados para a senzala e para a lida da terra, assim como todos os outros.


Apesar do sofrimento que se abateu sobre nós dois, Ayaba não se deixou vencer, suas mãos finas logo ficaram forradas de feridas e bolhas, porém isso não a impedia de trabalhar tão bem quanto os outros escravizados. Nada parecia capaz de abalar sua força, especialmente depois da noite em que ela cantou e sua voz agradou aos orixás. Foi naquela noite de gira que percebi Fortunato escondido na penumbra, uma sombra cinzenta com seus olhos famintos observando Ayaba. Estremeci diante daquele olhar cujo significava eu conhecia. Foi então que decidi que tínhamos que fugir, eu levaria Ayaba para longe, para um lugar onde pudéssemos ser só nós dois e a mata, o rio e a natureza, sem feitor, capaz ou senhor, onde Ayaba, minha irmã de alma, estaria segura.


Algum tempo depois, eu estava deitado em minha esteira no chão poeirento da senzala e, enquanto buscava pelo sono que teimava em fugir, percebi um movimento estranho na penumbra, uma sombra que se movia na escuridão esgueirando-se por entre os corpos ressonantes estendidos no chão e que foi se achegando a mim sem fazer qualquer barulho. Seus olhos brilhavam como fogo e eu senti grande medo, meu sangue gelou, minhas entranhas se embrulharam, e uma estranha paralisia tomou meu corpo me impedindo de me mover. Acreditei que aquele era um espírito da noite que estava ali para roubar minha alma, porém, quando o ser disforme cruzou uma faixa de luz que atravessava o teto de palha e mal iluminava o interior da senzala, reconheci Bondade, minha avó que  ajoelhou-se ao meu lado e sussurrou em meus ouvidos: “A vida de fugido é dificê demais meu fio, sem angu pra encher a barriga, sem pouso certo, sem teto em cima da cabeça e co risco de escravizarem ocê otra vez, o risco de pegar um sinhô pior ou de matarem o fugido de tanto bate. Aquieta o coração fio, não seje iguar sua mãe…”.


Sem que eu tivesse tempo de responder, Bondade foi-se embora me deixando sozinho com as lembranças e o medo que é como a broca-de-café, quando se enraíza no coração do homem ele se perde para sempre.



Era difícil respirar com o rosto coberto pela placa de metal. O cheiro nauseabundo de minha própria podridão me sufocava e o peso do cadeado de ferro que pendia atrás do meu crânio não me deixava levantar a cabeça. A dor que eu sentia cada vez que tentava mexer os lábios e o fedor que minha boca exalava eram torturantes, eu estava a ponto de perder os sentidos depois de tanto tempo sem comer nem beber e a única coisa que me mantinha viva era a presença de Ismael ao meu lado. 

 
Me lembrei do primeiro dia em que trabalhei na plantação, minhas mãos ficaram em carne viva, todo meu corpo doía depois do trabalho pesado e meu estômago, antes acostumado às fartas refeições da casa grande, gemeu a noite inteira sentindo o vazio deixado pela rala porção de angu. Naquela noite, depois de conhecer a vida dos escravos da fazenda Cruz de Cedro, chorei pela primeira vez desde que tinha chegado ali e foi assim durante todas as noites até que a sexta-feira chegou. Era noite de gira e eu, sem saber direito o que fazer quando todos se reuniram em torno da fogueira e começaram a cantoria fiquei em silêncio apenas assistindo ao que acontecia. Sem perceber, fui envolvida pelo som dos atabaques, suas batidas se comunicavam perfeitamente com as batidas do meu coração, então, impulsionada por uma força irresistível, comecei a cantar baixinho, primeiro, apenas um murmúrio, uma melodia melancolia que transbordava de dentro de mim, mas, pouco a pouco, um canto belo e forte foi brotando dos meus lábios, uma canção que eu não conhecia, mas que nascia de mim como se eu parisse um filho.


Um a um os outros se calaram enquanto minha voz ecoava, senti meu espírito voar para longe, levado pela minha voz que vagava na escuridão da noite, meu corpo não doía mais e, enquanto eu cantava, eu era livre outra vez. No final da noite, muitos vieram me falar que minha voz tinha grande poder e que eu tinha agradado aos orixás, desde então, minha vida era trabalhar e esperar que a noite de sexta-feira chegasse, para que eu pudesse cantar para os orixás que me fariam livre por alguns momentos. 

 
Apesar de todas as dificuldades, havia naquela nova vida algo que me afligia muito mais do que o trabalho pesado, a fome e o cansaço, era o medo que passei a sentir de Fortunato assim que deixei a casa grande. Logo percebi que agora que eu não era mais uma protegida de dentro de casa, ele não temia me olhar daquele jeito sujo e onde quer que eu fosse, sentia sempre seu olhar pegajoso escorregando sobre a minha pele. Aqueles seus olhos de cobiça anunciavam algo ruim e não demorou para que o mal presságio se concretizasse. Era domingo, dia em que podíamos ir até o rio para nos banhar, eu voltava para casa sozinha, como sempre acontecia, aproveitando os últimos raios de sol. Parei para observar uns pássaros coloridos que faziam ninho numa árvore grande no meio do caminho e, de repente, senti a mão calejada agarrando meu braço e o cheiro de álcool e alho quando ele aproximou boca do meu ouvido dizendo que naquela noite eu cantaria de prazer. Apesar do susto, logo recuperei a presença de espírito e lutei para me libertar, porém ele era muito maior e mais forte do que eu, foi muito fácil para ele me dominar e me jogar no chão com brutalidade. Sem qualquer pudor, Fortunato levantou minha saia, colocou um de seus joelhos entre minhas pernas forçando-as a se abrirem até que não tive mais forças para resistir.


Enquanto ele lutava para desafivelar o cinto que prendia sua calça, puxei o pedaço de madeira que tinha esculpido até se tornar pontiagudo e que levava comigo por toda parte escondido na saia, com toda a força que eu pude reunir lancei a mãe em direção ao seu pescoço, porém, ele conseguiu desviar a tempo e acabei golpeando apenas seu rosto. Um risco vermelho como uma boca escancarada e sem dentes se abriu acima de sua sobrancelha fazendo o sangue escuro escorrer. Ele tocou a ferida, olhou o sangue que havia manchado a ponta de seus dedos e, em seguida, me olhou com seus olhos frios e vingativos, então senti um forte impacto contra meu rosto e uma dor que me fez perder os sentidos.


Quando voltei a mim, estava no pátio da casa grande, Fortunato estava me colocando naquela máscara de flandres que até agora cobria meu rosto, pressionava meu crânio e me impedia de dizer uma palavra sequer. 



A tarde já fugia quando eu soube que Ayaba estava sendo castigada. Corri para a sede da fazenda e a encontrei abandonada no terreiro. Quando vi o corpo de Ayaba caído no chão do pátio com seu rosto coberto pela máscara de flandres, fui tomado por sons e sensações que estavam há muito tempo esquecidos no fundo de minha memória. Lembrei-me de minha mãe e do que tinha acontecido com ela e a tristeza fez minha garganta se fechar num nó firme. Naquele momento, todas as lágrimas que eu nunca tinha permitido que caíssem, transbordaram num tão de repente que não me importei se os outros pretos me veriam chorar. 


Tentei erguer Ayaba, mas ela gemeu de dor. Ela tinha apanhado e seu rosto devia estar muito ferido, pois sangue escorria de sob a máscara e descia por todo seu pescoço. Falei com ela, mas não houve resposta além de um choro abafado, então me sentei ao seu lado e ali fiquei por muito tempo, até que o dia se fez noite e a noite se fez dia outra e outra vez. Continuei ali sem temer que Fortunato ou qualquer outro viesse me arrancar à força, estava decidido que morreria ao lado de Ayaba se fosse necessário e quando percebi que ninguém sequer se importava com nós dois, compreendi que o momento de nossa fuga tinha chegado. Então, carreguei o corpo magro de Ayaba nos braços e caminhei em direção à mata protegido pela noite escura. 

 
Enquanto caminhava, eu podia sentir a pele de Ayaba queimando em febre, seu corpo exalava um forte cheiro de sangue velho e podridão e mesmo que ela não fosse mais pesada do que uma criança, senti o cansaço dos dias sem dormir e sem comer e a fraqueza começou a dominar minhas pernas, meus passos se tornaram mais pesados e lentos, acreditei que não conseguiria continuar até que pude ver o rio brilhando ao longe, senti a presença da água e aquilo reanimou minhas forças. Só quando chegamos na margem do rio é que tirei a máscara de flandres do rosto de Ayaba e a visão que tive foi assustadora. O cheiro que emanava da massa disforme que sua boca havia se tornado era horrível, a pele antes acobreada agora tinha uma tonalidade verde-arroxeada e a carne de seu maxilar destruído e em decomposição misturada a pedaços de ossos e dentes quebrados servia de alimento para vermes brancos e gordos que se moviam no espaço onde antes estava sua língua. O luar iluminou seu rosto dando-lhe um aspecto de sonho e mistério e fazendo a escuridão ao nosso redor mergulhar no silêncio, Ayaba abriu os olhos e tentou dizer algo, contudo de sua boca apenas um grunhindo incompreensível escapou. Naquele momento, ao compreender que não tínhamos escolha, senti uma dor profunda e, apesar do fedor que começava a se espalhar pela noite, empesteando tudo e se sobrepondo até mesmo ao aroma fresco das madressilvas, abracei-a, acariciei seus cabelos empastados de suor e sangue, beijei sua testa, então, tomei-a novamente em meus braços e entrei na água fria sentindo a pureza do rio limpar meu corpo e alimentar meu espírito. 

 
Minha avó dizia que quando os pretos se jogam no rio para fugir da sina de ser escravo, o espirito do afogado permanece na margem observando o corpo desaparecer na escuridão da água barrenta. Não foi assim que aconteceu. No momento em que a água tocou o corpo de Ayaba, ela voltou a abrir os olhos por alguns instantes e após me olhar aprovando meu intento seus olhos se esvaziaram do medo e da dor, da tristeza e da saudade, e ficaram em paz. Quando chegamos à parte mais funda do leito, nossos corpos submergiram, paramos de respirar e a água nos envolveu completamente mergulhando toda nossa existência num silêncio profundo e sereno enquanto nossos espíritos se fundiam à água do rio.  


Agora, Ayaba cantaria para sempre, pois o murmúrio da água correndo entre as pedras era seu canto e nós estávamos livres. 



Fortunato acordou sem saber se os acontecimentos da noite anterior eram reais ou se não passavam de mais um sonho vindo para atarantar seu juízo. Levantou sentindo as pernas fracas, seu corpo todo doía como quando era pequeno e apanhava de seu pai, com passos trôpegos caminhou até o banheiro e olhou-se no espelho, por um instante não reconheceu a si mesmo, a calva já adiantada, a barba totalmente branca, os olhos fundos rodeados de grandes manchas escuras.

  
“Quantos anos já haviam se passado?” – questionou-se – “Dez? Quinze? Porque aquelas lembranças voltavam depois de tanto tempo para assombrá-lo?”. Jogou água fria no rosto e foi até a sala tateando nas paredes. A casa era um mar de escuridão, silenciosa e solitária. Chamou por Bondade duas ou três vezes, sem receber resposta, irritado, gritou prometendo inúmeros castigos caso a mulher se demorasse, mas, depois de algum tempo, foi Ayaba quem apareceu para atender seu chamado. 

“Diga o que cê qué, Fortunato” – falou a mulher de lábios grossos e cintura fina, com sua voz melódica, mas ele não respondeu. A mulher saiu dizendo que não tinha a noite toda e que tinha mais o que fazer além de ficar olhando para a cara dele. Assombrado, Fortunato cambaleou até a velha cadeira de balanço que tinha sido de seu Juvenal, sentou-se e ali ficou ouvindo o som do caminhar sonolento dos pretos que seguiam para as às plantações. “Bando de preguiçosos” – pensou. Então, em meio ao som abafado de pés batendo contra o chão de terra, ouviu um som distinto, cadente, que foi aumentando pouco a pouco. Estranhou aquela música, não era noite de gira, Ayaba só cantava nas noites de gira, tinha prometido seu canto aos orixás e só a eles entregava sua bela voz. Ele desejou fazê-la cantar de prazer, mas ela não quis, então ele arrancou a língua daquela preta orgulhosa, mas isso tinha sido há muito tempo. Então, o homem levantou-se e espiou pela fresta da janela, porém só o que viu foi vento balançando a folhagem da mangueira no quintal. 

 
“Vai chover” – disse para si mesmo voltando para a cadeira de balanço. Depois de algum tempo, sentiu que ia pegar no sono. Foi despertado pelo barulho de passos e risadas, levantou-se assustado e outra vez chamou por Bondade agora ordenando que ela fizesse com que as crianças ficassem em silêncio, porém, Bondade não respondeu. Ele espiou o corredor e viu sinhá Cecília, Ayaba e Ismael vindo em direção à sala onde se puseram a correr à sua volta, deixando-o atordoado com aquela ciranda, enquanto catavam, de da boca de cada um deles apenas a voz de Ayaba saia. De repente, as crianças começaram a cirandar em uma velocidade vertiginosa, sangue começou a escorrer de suas bocas até que eles pararam e, sorrindo com os dentes alvos em meio ao sangue vermelho, cuspiram suas línguas que caíram no chão, aos pés de Fortunato e ali continuaram se debatendo como peixes fora d’agua. As três crianças continuaram cantando e rindo, girando ao redor de Fortunato como pequenos diabos vindos do inferno até que Bondade os chamou para o jantar, então cada um abaixou-se, pegou sua língua e a devolveu para dentro da boa antes de correrem para fora dali. Fortunato estava novamente dozinho, contudo, a cantoria de Ayaba continuou na sala, o som cada vez mais alto, se infiltrando em cada partícula de seu corpo, dilacerando sua mente e terminando de corroer seu juízo.

Torturado por aquele canto que pulsava dentro de si, Fortunato correu até armário, pegou sua carabina, sentou-se na velha cadeira de balanço e se colocou em alerta. Ele não se entregaria facilmente, se aqueles demônios viessem atormentá-lo outra vez, seriam recebidos à bala, e ali ele ficou sentindo a respiração suspensa, enquanto seu coração batia apressado e ao seu redor tudo rodava. 

 
Começou a chamar por Ayaba, primeiro baixinho, num murmúrio que foi aumentado até se tornar um grito. Chamava-a para que viesse ao seu encontro, e pela força de tanto invoca-la, viu surgir o vulto diáfano em meio a escuridão enquanto a cantoria se tornava tão profunda e aguda a ponto de fazê-lo sentir que seu cérebro estava prestes a explodir. Enlouquecido, Fortunato se pôs a atirar para todos os lados, sem nada acertar, quando não havia mais balas a serem disparadas e fez-se silêncio, ele caiu de joelhos no chão. Pela primeira vez na vida, sentiu uma incrível vontade de chorar. Queria rezar, contudo não se lembrava de nenhuma prece, seu peito era um oco vazio e sem fundo, seu o coração estava pesado de medo e culpa e como se sua alma tivesse deixado o próprio corpo, viu-se a si mesmo sentado naquela cadeira velha que ele tanto cobiçara, a arma que havia pertencido ao seu pai estava em seu colo e seus os olhos estavam mergulhados no vazio. 


 
Um sol amuado se despedia no poente quando o som dos estampidos espantou os pássaros que haviam pousado no terreiro em busca de migalhas, o barulho seco continuou pairando no ar por alguns instantes assustando os pretos que voltavam da lida. Poucos minutos depois, um grito longo e abafado ecoou vindo da casa grande. O capataz e alguns pretos correram até lá para ver o que tinha acontecido, ali encontraram Fortunato caído no chão da sala com um tiro perfurando sua testa. Donata, a preta que tinha assumido o cuidado da casa depois da morte de Bondade há vários anos, estava ajoelhada ao lado do corpo de Fortunato, em transe, como se nunca tivesse visto um homem morto antes. Apesar da agitação do momento, logo se percebeu que nada havia a ser feito, então alguém decidiu que o corpo deveria permanecer onde tinha sido encontrado até a chegada das autoridades.

Os que entraram na casa grande logo deixaram o lugar para contar o que tinham vistos aos que ficaram esperando do lado de fora e, em pouco tempo, todos voltaram aos seus próprios interesses, sem qualquer pesar por aquela morte que não seria sentida por ninguém. 

 
A chuva que se anunciava desde o dia anterior caiu de repente, lavando, sem que ninguém notasse, o sangue que, saído da ferida aberta na testa de Fortunato atravessava toda e ia desaguar aos pés do tronco que ficava no terreiro dos fundos, onde tantos pretos tinham sido castigados ou mortos por suas mãos. 

 
Na casa grande, o cheiro de pólvora e sangue se espalhava por todos os cantos, impregnando para sempre móveis, paredes e cortinas, enquanto lá fora, no pátio vazio, o espírito de Fortunato vagava sob a chuva fria, atormentado pelo eterno canto de Ayaba.

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2 comentários em “O canto do Orixá – Conto (Fernanda Rodrigues)

  1. thiagocastrosouza
    30 de junho de 2021

    Fernanda, conto longo, bem enredado, variando os pontos de vista para contar a história. Há uma abordagem histórica importante, que, por mais que a tratemos na ficção, não deixa de ser chocante e revoltante. Acho que notei um ou outro deslize na revisão, coisa pouca, que pode ser arrumado numa versão futura.

    Os personagens são memoráveis e críveis, e o uso do canto ao longo da trama amarrou bem os acontecimentos.

    Parabéns!

    • Fernanda Rodrigues
      2 de julho de 2021

      Agradeço muito a leitura e confesso que sempre deixo passar alguma coisa na revisão… vou reler e tentar enxergar os erros!!

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Publicado às 30 de junho de 2021 por em Contos Off-Desafio e marcado .
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