I – Praça
As amoreiras sujavam o caminho da praça. Sujavam as calçadas, os carros estacionados na esquina da padaria. As amoreiras incomodavam os moradores do bairro, apenas os desgostosos, os enclausurados em casarões e prédios de câmeras e grades. Cercas elétricas zumbiam de noite, enquanto as amoreiras farfalhavam seus galhos e derrubavam seus frutos pendurados num bombardeio colorante: roxo e vermelho.
O praguejar dos moradores raiava junto com o dia diante da melequeira na calçada. Punham as empregadas lamuriosas a lavar e a varrer. Elas, ocultamente, colhiam os frutos para uma geleia futura ou adocicavam o paladar num escape do labor.
II – Poeira
O pó do cansaço, acumulado ao longo do dia, da existência, repousa magnânimo nos ombros deste homem. Ainda que se empenhe em girar a chave do portão, que sacuda a casaca, que suba os degraus batendo os sapatos, nada disso basta para que o pó se dissipe de seu corpo adestrado.
Seu andar arrastado não deixa rastros. É como um fantasma na cidade que insiste em refazer os caminhos costumeiros em vida, mas está vivo, é sabido; algo pulsa, mesmo que apagado e sem vigor, em seu interior. Uma seiva escorrerá, se cortarem sua carne, e a face se tornará rubra, caso alguém lhe esbofeteie.
Contudo, ele passa ileso por homens, máquinas e armas, no ir e vir de seu ofício, ralentando, sozinho, o ritmo quase imperceptível das batidas de seu peito frio, emperrando o ponteiro dos dias que ainda lhe restam.
Os dois microcontos são bem delicados, bem delineados, e soam como um dístico sobre o trabalho e suas relações.
Nem tenho o que criticar, muito pelo contrário: são histórias inventivas, principalmente a segunda, cuja força e inventividade me faz ficar com invejinha.
Abraços, amigo!
Júlio, muito obrigado pelos surpreendentes comentários. Esses dois minis estão em um livreto que lancei junto do meu Remoenda. Vou te enviar uma cópia em pdf, como agradecimento pela disposição!
Grande abraço!
Menino, só vi sua mensagem agora! Eu tinha falado que leria, e em breve lerei mais. Abraços!
Praça
O Brasil nunca saiu do colonialismo. Do escravagismo. Fortunas fruto de corrupção e exploração. Remédios estragando nos hospitais, como amoras.
Poeira
Os operários não vivem, sobrevivem. Para aguardar o ponteiro final. Quando o pó ao pó retornará.
São bons textos, como não poderiam deixar de ser vindos de quem vieram. Mas notei aqui (pareceu-ME, na verdade – realce na primeira pessoa, no subjetivo, no pessoal), pareceu-me, enfim, estar diante de um certo excesso de “palavras fortes” (adjetivos, palavras de pouco uso e outros empregos que parecem tentar imprimir intensidade ao discurso, mas acabaram por sobrecarregá-lo, torná-lo solene, pesado ou antinatural; perdendo, inclusive, em fluidez narrativa). Por exemplo, “labor”, aqui, substitui trabalho. Sendo o trabalho de quem é (das empregadas), o emprego não me soou bem. Para falar de gente simples, para falar do “povo”, o melhor me parece ser o emprego das palavras simples, usuais, corriqueiras, cotidianas.
Outras palavras fortes: “magnânimo”, “seiva”, “rubra”, “esbofeteie”, “ralentando”.
Gostei dos textos, gostei mesmo, mas mais na segunda, terceira e, a cada vez que os relia, que tentava apreender seus sentidos, mais ia gostando deles, menos as ditas “palavras fortes” me incomodavam. Ainda assim, não posso negar que a primeira (as primeiras) leituras me causaram estranhamento. Eu tentaria simplificar o vocabulário e o esforço para tentar empreender certas impressões no leitor. Eu prezaria pela leveza, pela sutileza, pelo não dizer ou pelo dizer simples.
Valeu Anderson, são experimentações com as palavras, principalmente quando lidas em voz alta (acho labor uma palavra tão bonita!). Seguimos tentando.
Obrigado lá leitura amigo!
Oi, Thiago.
Dando pitaco em lugar que não me chamaram, trocaria labor, que é uma palavra que também amo pela elegância e sonoridade, por labuta. Labor tem pompa e circunstância porque tem boa procedência certa e labuta tem origem incerta, mas ambos significam a mesmíssima coisa. Labor, do latim, LABOR, “trabalho, fadiga, exigência física, dor”, e está ligado ao verbete LABERE, “oscilar sob uma carga”.
Agora sobre os textos.
Gostei. Apesar da roupagem meio de cal e cimento, conta bem as histórias propostas.
Poeira, quando você apreende os sentimentos guardados abaixo dessa película, cria uma sensação de desassossego que esfria a alma. Até reli de novo as das mulheres para ter o conforto da geleia, mas não funcionou tão bem como da primeira vez.
Explico-me: procuro sempre fazer primeiro uma leitura inocente, gosto de ver o texto com os olhos comuns, só depois é que olho com crítica.
Assim, em temporada Off prefiro só comentar textos que gosto ou que, mesmo que não goste, eles dialoguem comigo. Seu texto um gostei e reconheci neles boas recordações. Seu texto dois me incomodou porque tem muita gente vivendo assim, só indo e vindo, enquanto o coração funciona, quase sem sonhar.
Elisabeth