Deve ser normal associar os pais à morte. Afinal, eles vão primeiro, é o curso natural da vida. Digo isso porque outro dia eu estava pensando na morte quando de repente lembrei do meu pai. Decidi ligar para ele na mesma hora. Graças a Deus, tudo bem. Não gosto nem de pensar que um dia vou ter que ir ao velório, ver o cadáver, carregar o caixão e essa coisa toda. Eu gosto muito do velho, ele é meio esquisito, mas me mata de rir. Aquele lance do relógio, por exemplo, aquilo foi impagável. Um dia eu estava na casa dele, falando qualquer bobagem, quando de repente ele pegou um relógio e disse: “Toma isso para você. Alguém me deu de presente, mas eu não uso.” Era verdade, nunca vi meu pai com um relógio no pulso. O problema é que quem deu a porra do relógio fui eu. E no dia dos pais! Perdi tempo e dinheiro comprando um presente para o velho, e alguns meses depois ele mesmo me dá o presente de volta, como se eu fosse outra pessoa. Coitado, não deve ser de propósito. A idade fode com a cabeça das pessoas.
Outra coisa que me fez lembrar do velho foi uma conversa que eu ouvi na fila do supermercado. Uma criança estava falando com a mãe que não queria mais ficar com a babá, simplesmente porque ela era muito feia. “Ah, é? Mas seu pai também é feio, e eu casei com ele, não casei?” Eu fingi que não ouvi, e me segurei para não rir. Depois pensei no meu pai e fiquei me perguntando por que será que minha mãe divorciou. Será que ela também o achava feio? Mas então casou por quê, porra! Tá certo que o velho não é nenhum modelo, mas não devia ser tão feio na juventude. Me deu vontade de olhar umas fotos antigas para ver se ele era, sei lá, meio charmosão, meio boa pinta. Mas logo desisti da ideia. O pessoal da minha família vive dizendo que sou a cara dele, e não quero descobrir que eles têm razão. Tentei pensar em outra coisa, paguei os ingredientes e subi para a casa da Marcela.
Minha namorada vivia dizendo que achava lindo homem que sabe cozinhar. Ela falava assim mesmo: meu sonho de consumo é um homem que sabe cozinhar. Então lá fui eu procurar receitas e vídeos no Youtube. Descobri que a coisa mais fácil de fazer é o tal do risoto, que é apenas um arroz empapado com ervilha e alguma outra coisa. Por exemplo, risoto de abobrinha, de nozes, de camarão, etc. Fiz uns testes lá em casa e descobri que eu conseguia fazer, porque ficou quase igual ao do Spoletto. Então marquei um dia com a Marcela, comprei os ingredientes e parti para a casa dela.
Quando cheguei, notei que ela estava meio estranha. Daí foi aquele pingue-pongue: – O que aconteceu? – Não é nada. – Pode falar. – Mas não é nada. – Fala logo. – Depois eu falo. – Fala agora. – Depois.
Fui botando as coisas na panela, e me perguntando se eu tinha feito alguma bobagem, olhado para alguma amiga dela ou esquecido alguma data especial, mas não consegui lembrar de nada. Quando ficou pronto, a gente sentou para comer, e ela ficou muda como uma girafa. Perguntei se estava gostoso, ela hesitou um pouco e soltou de repente: – Amor, não sei como falar isso de outra forma, mas eu quero terminar. – O quê?! Assim, do nada, você quer terminar? – Não é do nada, eu já vinha pensando nisso há mais tempo. – Mas você não pode fazer isso comigo. Se você terminar agora, vou passar o resto da vida com a impressão de que eu não sirvo para cozinhar. Ela deu uma gargalhada gostosa: – Ha, ha, ha, não é nada disso. O risoto está uma delícia. – Está mesmo? – Está, sim. – Fala sério. – Estou falando sério. – Pode falar numa boa. – Eu juro que está uma delícia, vou até pegar mais, ó! Está vendo? Estou pegando mais!
Foi um momento tão gostoso que tive a intuição de que ela não ia terminar. Aquilo devia ser uma loucura passageira. No dia seguinte ou na semana seguinte ela ia me ligar, ia falar que nunca quis terminar, que estava confusa e não sei mais o quê. Fiquei um tempo em silêncio, curtindo meu risoto e notei que ela ficou distante, introspectiva. Lembrei novamente do meu pai. Ele não sabia nem fritar um ovo. Será que isso pesou na decisão da minha mãe? Lembrei ainda que, quando meus pais divorciaram, eu era criança, e perguntei toscamente por que eles estavam se separando. Meu pai deu a mesma resposta que ele dava para tudo: “Pergunta para sua mãe.” Perguntei à minha mãe, ela abanou a cabeça, disse que eu era muito novo para entender. Anos depois, minha namorada estava ali, na minha frente, falando em terminar. Pensei em procurar minha mãe e fazer a mesma pergunta novamente. Agora eu tinha vinte e dois anos, talvez já tivesse idade para entender a resposta. Mas, subitamente, percebi que não era preciso perguntar coisa nenhuma. Uma voz falou na minha cabeça, com uma clareza absurda, e essa voz era da minha mãe, e essa voz dizia: “Deixei seu pai porque ele fazia tudo para me agradar.” Quase engasguei. Devo ter ficado pálido, porque a Marcela perguntou o que estava acontecendo. Nada, eu falei. Não é nada. Mas era tudo. Era a resposta que eu havia procurado nos últimos dez anos.
Muito bom Ronaldo! Narrador sincero com as próprias convicções, ainda que contraditórias e traumáticas.
Grande abraço!
❤
Uhau!
Parabéns!
Leve, elegante, marcante como a presença pais em nossas vidas.
Valeu, gente. Vocês também escrevem muito bem. Estou sempre de olho nos contos de vocês.
Direto, objetivo, coerente e firmemente ligado no dia a dia de um esperançoso… achar que a vida é só se esforçar para dar certo… que nada, mas com uma gargalhada, indecisões e algum sofrimento vale a pena, muito a pena mesmo, até para agradar leitores atentos a detalhes que os fazem sorrir e agradecer… ótimo!!!
Sensacional. Gostaria de ter escrito.
Muito bom! Parabéns!