Para recarregar as energias, Lokis rastejou pelo chão, exatamente por onde sentia passar a rede telúrica. No subsolo corria o nervo magnético do planeta. Ficou por um momento deitado, imóvel, absorvendo as imperceptíveis ondas energéticas do solo. Estava quase adormecendo quando viu Eve do outro lado do lago, observando os flamingos na água. O mutante expulsou a letargia, ergueu-se, dirigiu-se até ela.
─ Como você está nessa manhã explêndida? – perguntou, fazendo um floreio com as mãos e inclinando o dorso.
─ Confesso que estou desanimada e nem mesmo sei por quê.
─ Deixe-me adivinhar. Esse desanimo é por tuas limitações de conhecimento e também, por causa do confinamento nesta cúpula energética?
Eve ergueu as sobrancelhas assinalando surpresa. Ela não entendia como Lokis podia adivinhar seus pensamentos, as emoções. A frase dele não foi uma pergunta, mas uma afirmação.
─ Pode ser. – respondeu ela, deixando a dúvida no ar. Ele ignorou tal coisa, pois sabia que estava certo, não podia desprezar a oportunidade de colocar seus planos em ação.
─ Suponho que os mistérios aguçam tua curiosidade.
─ Posso ser curiosa, mas conheço as regras e obedeço às leis. Desobedecer é algo desastroso, com certeza serei condenada a sofrer algum castigo terrível.
─ Castigo é essa obrigação de cumprir as leis.
─ As leis tornam nosso convívio harmônico.
─ Temos livre arbítrio. Podemos aprender com nossos erros e planejar um futuro promissor.
Eve ignorou as palavras do jardineiro e voltou sua atenção para os flamingos.
─ Não sei o que falas – disse, sem interesse.
Lokis procurou manter-se calmo. Precisava de paciência para atingir seus objetivos. Atirou-se ao solo e rolou na lama, para chamar atenção da mulher.
─ Que brincadeira é essa?
O sorriso do mutante brilhou entre o negrume da lama espalhada pelo rosto.
─ São coisas que me deixam feliz, bem-disposto. – disse ele e mergulhou no lago, espantando algumas aves. Deu algumas braçadas e saiu. O corpo limpo, pingando água. Fez um gesto amplo.
─ Queres saber o que há lá fora? Nuvens flutuando pelos ares e se transformando a seu bel prazer em formas maleáveis, de diáfanas figuras. No vazio corre o vento, movendo folhagens e com leve sopro acaricia os teus cabelos. Acima, o aro faiscante do sol, soberano dos astros, dá à luz para que você possa enxergar o teu caminho. Cantam os pássaros, as flores exalam perfumes e os prados se estendem pelo horizonte até onde teu olhar possa alcançar. As montanhas têm seus cumes coroados de neve. Quanto mais você caminha, mais coisas maravilhosas vai encontrar.
─ Os mestres disseram que lá fora há muito perigo. Animais selvagens, feras gigantes, monstros.
─ Tudo mentira para nos manter aqui, confinados, limitados em nosso livre arbítrio. Somos considerados escravos.
─ O escudo é para nos proteger das feras.
Eve estava relutante, mas Lokis não desistiu.
─ As tais feras de que falam, estão muito longe daqui, em outro continente.
─ Como sabes?
─ Estive lendo alguns relatórios. Evidentemente, foi feito uma inspeção aérea e um mapa topográfico antes de virmos para cá. Fugindo, encontraremos um bom lugar para viver neste planeta de céu azul e verdes matas. Confie em mim.
A mulher hesitou, mas depois decidiu ajudar o mutante. Havia aceitado participar da missão no planeta azul, achando que poderia explorar o planeta, porém, Ramsés, diretor do projeto, limitou seu poder de decisão. Não podia fazer nada além de registrar o comportamento dos animais.
─ O que devo fazer?
─ Primeiro você deve convencer Adam a se juntar a nós. Precisamos dele para desligar o escudo.
***
Adam estava deitado no gramado, à sombra das palmeiras. Sentia-se aborrecido, sem ter nada o que fazer. As tarefas eram poucas e a maioria do tempo ficava vagando pelo imenso jardim. Os passos da mulher sobre as folhas secas no chão, embora leves e sorrateiros, denunciaram a sua chegada. Ele sentou-se. Eve era uma grata distração naquele marasmo. Mesmo desapontada por não ter dado um susto nele, ela sorriu e foi direto ao assunto.
─ Precisamos da tua ajuda. Lokis disse que podemos desligar o escudo e ir embora. Não precisamos voltar a Draykonar.
Adam nem precisou refletir sobre o assunto.
– Essa ideia me agrada. Já estou farto deste jardim. Como faremos para sair?
– Ele vai desligar o gerador do subsolo enquanto você desliga a rede aérea. Vou distrair Ramsés enquanto você sobe na torre para desligar a chave. Lokis recomendou que é melhor quebrar a chave com uma pedra.
– Está bem-disse Adam e sem mais questionamento, dirigiu-se para a torre ao lado do laboratório.
***
Eve entrou no prédio principal.
– Então, como estás nessa explêndida manhã? – indagou, imitando Lokis.
Ramsés mal olhou para ela e voltou a atenção ao que estava fazendo.
– Estou bem. Se veio conversar, me desculpe pois não poderei te dar atenção. Estou muito atarefado hoje.
– Não te sentes aborrecido com esse trabalho?
– Não. Não tenho tempo para ficar aborrecido, além do mais, qualquer trabalho é gratificante. Deverias voltar a cuidar dos flamingos.
– Já cumpri meus deveres. Pensei em te convidar para dar um passeio, pois ficas o tempo todo nesse laboratório. Como você não quer, então, irei com Adam.
– Isso. Vá passear com teu colega.
Eve ficou pensativa por um momento e disse: – Pena que não podemos ir lá fora.
– Sair da estação está fora de questão. Não insista.
Com o canto dos olhos, ela percebeu, através da vidraça, que Adam já estava no alto da torre. Ficou ainda um tempo olhando o trabalho do cientista. Ramsés dissecava um javali. Ele começou a se enervar com a presença dela.
– Não ias sair? Vá!
Ela se foi. Correu por uma trilha entre o pomar. Esperou por Adam nos limites do escudo. Quando a cortina elétrica que protegia a biosfera desapareceu, Adam e Lokis surgiram correndo.
– Vamos embora – disse o jardineiro e correu para a floresta. Adam e Eve o seguiram. Lokis corria e ria como um louco, desaparecendo entre as folhagens. Adam e Eve o perderam de vista. A única coisa que ele queria mesmo, era a liberdade.
***
Lokis distanciou-se de Adam e Eve. Não precisava mais deles. Agora tinha que fazer contato com os nativos gigantes, ganhar a confiança deles e treina-los para atacar a estação. Seus instintos o levaram ao vale onde moravam os Zahara. De estatura alta, compleição robusta, usavam como armas, arco e flechas, lanças e machados de pedras. Não conheciam o fogo e foi exatamente com o fogo que Lokis se apresentou a eles.
Sua aparição no meio da noite causou espanto e medo. O primeiro que o viu, foi o vigia, que mantinha guarda enquanto os companheiros dormiam no interior da caverna. Ele viu a claridade da tocha se aproximando e afastando a escuridão, depois notou a criatura que segurava um pedaço daquele que iluminava o dia. Um ser quase igual ao seu povo, com braços, pernas, cabeça olhos e pele clara, mas que parecia possuir poderes sobrenaturais. Imediatamente ele acordou os outros, que se juntaram ao seu espanto e temor.
Não tinham coragem para atacar a criatura, pois desconheciam suas habilidades de contra-ataque. Estavam acostumados a caçar e a se defender de feras, mas aquela criatura era diferente. Como ele carregava a luz do sol, foi tomado como um ser superior.
Lokis permaneceu em frente ao acampamento até ganhar a confiança deles. Quando foi acolhido, mostrou o poder do fogo e se tornou líder. Deram-lhe o nome de Conan- Moloch.
Quando estavam aptos, para a batalha, Lokis liderou os nativos no ataque a estação. Seu intuito era tomar o controle da astronave e da tecnologia para se apoderar daquele mundo selvagem.
Ramsés estava tentando restabelecer o campo de força, quando viu aquela multidão de nativos armados se aproximando da estação. Ao ver Lokis a frente, logo percebeu que ele não tinha boas intensões.
Desceu da torre e correu para a astronave. Antes de partir, acionou o botão de autodestruição da estação.
A explosão atingiu uma grande área, queimando e transformando em pó, árvores e animais
Naquele lugar, nada mais germinou. Com o passar dos anos tornou-se um deserto chamado Saara.
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Lokis sentiu o impacto da onda de choque causada pela explosão e perdeu os sentidos.
Quando abriu os olhos, viu-se numa vala cheia de lama. Ouviu explosões, disparos, gritos. Ao lado estavam dois homens caídos. Um deles estendido no chão, o outro, encostado no barranco, semi-inconsciente.
Tentou sair da vala, subiu o barranco e viu um cenário de guerra. Bombas explodiam, balas voavam por todo lado. Se saísse, seria morte certa. Voltou e examinou o homem ferido. Ele não resistiria por muito tempo.
Colocou as mãos na cabeça do sujeito. Com seu poder de mimetismo, transferiu as feições dele para o próprio rosto. Adquiriu suas memórias, seu conhecimento e através deles, descobriu que estava no futuro. A explosão da estação havia criado um redemoinho temporal. Ele havia sido jogado em algum lugar no futuro daquele mundo.
Vestiu as roupas do soldado, pegou um dos rifles e esmagou as faces, desfigurando o rosto do homem.
Lokis sentou-se no chão e se encostou no barranco. Meteu a mão no bolso e pegou a identidade do soldado. Ele era agora, um alemão chamado Adolf Hitler, de 29 anos.
****
A doutora Evelyn Carter, era arqueóloga em Marrocos. Ela e uma equipe de cientistas examinavam ruinas de construções antigas perto de cidade de Aousserd, no nordeste do Saara Ocidental.
Evelyn se afastou dos companheiros e desceu para uma cratera, onde havia observado a disposição estranha de um conjunto de rochas.
Andando no meio dos blocos, avistou um brilho estranho no meio das pedras. Parecia uma bolha de sabão pouco maior que uma bola de tênis. Repousava no chão, entre as rochas.
Evelyn agachou-se e viu sua imagem refletida na superfície brilhante. Com um dedo, ela cutucou a coisa.
O dedo pareceu ter atravessado a superfície e ela sentiu ser sugada para o interior da bolha. Viu-se num redemoinho vertiginoso. Rodopiou e perdeu os sentidos.
****
Quando acordou, estava sentada no gramado, as margens de um pequeno lago cheio de flamingos. Não sabia se tinha adormecido e sonhado. Se sonhou, não lembrava mais do sonho.
A voz de Lokis soou ao seu lado.
─ Como você está nessa manhã explêndida? – perguntou o mutante, fazendo um floreio com as mãos e inclinando o dorso.
─ Confesso que estou desanimada e nem mesmo sei por quê.
─ Deixe-me adivinhar. Esse desanimo é por tuas limitações de conhecimento e também, por causa do confinamento nesta cúpula energética?
Eve ergueu as sobrancelhas assinalando surpresa. Ela não entendia como Lokis podia adivinhar seus pensamentos e emoções…
Antônio, já tinha lido, mas não parei para comentar. Conto elíptico, cheio de simbologias e que caberia perfeitamente no desafio atual, não é?
Parabéns!
Eu li o conto durante o final de semana, até teci um comentário, mas acabei perdendo ele (celular sacana, WordPress, então, nem se fala, haha).
Eu costumo gostar desse tipo de história. Acho um ótimo exercício fazer releituras, ainda mais de algo tão rico quando a gênese bíblica. Apesar de ser algo sem ineditismo, onde já sabemos o que vai acontecer, o prazer está no acompanhamento da nova visão para um história já conhecida. E achei a premissa muito boa, assim como a leitura, que fluiu naturalmente pra mim. Adoro esse toque FC.
Não sei se é um defeito, mas o ritmo ágil me deu a sensação que o conto precisava de um pouco mais de desenvolvimento, senti isso durante alguns pontos do conto, mas pode ser uma implicância minha. Gostei da leitura, então alguns pontos queria ler mais, queria ver quem era Adam, por exemplo, ele aparece tão pouco e simplesmente aceita a sugestão de Eve tão fácil. A distração de Eve, também, pareceu-me meio deslocada, sendo que Ramsés já estava focadíssimo no seu trabalho. Por isso fiquei com a sensação que alguns pontos poderia ter um desenvolvimento mais amplo.
E eu admito que não gostei muito do destino de Lokis. Eu gostei muito do personagem e queria que ele permanecesse um mistério. É a cobra que envenenou as ideias de Adão e Eva. Acredito que ele não deve ter acabado como Hitler, tendo essa habilidade de mudar a fisionomia é fácil escapar da morte, e talvez todos os ditadores e loucos do mundo foi ele, num certo ponto, mas eu acharia interessante criar essa imagem desde cedo, não mandá-lo numa viagem do tempo.
De resto, é um bom conto, de verdade. Acredito que pode ser melhorado (como a maioria dos contos daqui, né, incluindo os meus, claro), mas ele está bom do jeito que está, gostei da leitura.
Que viagem fascinante no tempo, no espaço e no imaginário! Parabéns, Antônio!
Trabalha-se a ideia de liberdade e condicionamento ao mundo, o qual nos limita por amarras ‘invisíveis’, ‘submersas’. E também o conceito de viagem no tempo, o qual parece sempre o mesmo.
Usa-se de paralelos modernos em conjunto com os adâmicos, vide os nomes dos personagens e o local. Entende-se, a meu ver, um ciclo fechado.
As repetições do cenário, reforçam a ideia do ciclo fechado dentro do ciclo fechado (com o decorrer do texto), as coisas re-acontecem.
Essa passagem ficou estranha: “brilhou entre o negrume da lama espalhada pelo rosto”, faltou especificar entre o que. “Ele sentou-se”, creio que seja somente: ele sentou. “– Não ias sair? Vá!”, creio que seja: não ias sair? Vás (ou ‘vai’ se usar imperativo)!, devido a concordância verbal com a segunda pessoa do singular.
Repetição, a meu ver, tem muita de ‘como’ e ‘mas’, os quais podem ser substituídos por sinônimos para leitura ficar fluída.
Pronomes: ‘ares e se transformando’, ‘tocha se aproximando’, devido o gerúndio é ênclise. ‘Poderei te dar’, devido o infinitivo é ênclise. “lokis sentou-se (se sentou) no chão e se encostou (‘e encostou-se’, devido à oração coordenada, é ênclise).”
No todo, não me agrada o assunto, porém reconheço os cuidados do conto e a reelaboração do mesmo.