Nasceu humano? Bem-vindo ao Inferno.
Sim, vou matá-lo. Sugarei seu sangue até a última gota e jogarei seu corpo sem vida no lixo. Monstro, eu? Não, é apenas minha natureza. Estou em paz comigo mesmo, pois sou o que deveria ser. Sua morte é minha vida e mato apenas para sobreviver. Ah, claro, há um prazer intenso em me alimentar… mas não é a causa primeira e sim um maravilhoso complemento.
Ah, não me olhe assim, minha deliciosa vítima. Você é a aberração aqui. Nasceu anjo e vendeu sua condição celeste por algumas tolas sensações de prazer e ilusões de poder. Muitos de vocês são assassinos, mas a morte é apenas uma consequência de seus desejos e medos insanos; não é seu destino. Até posso tentar entender. Contudo, sua crueldade é inadmissível…! Matam seus irmãos em vida. Destroem seus sonhos e a possibilidade de vida deles. Sentem uma gratificação imensa em tirar a vida do outro em plena vida e transformá-los em zumbis andantes, com olhares vazios, a tristeza e a indiferença como guias numa existência sem esperanças.
Chamam-me de Vampiro, enquanto sou apenas uma criatura na jornada da existência, cumprindo meu propósito. Os humanos são os verdadeiros vampiros, pois sugam a tudo que tocam, sedentos eternos em sua finita vida.
Sente medo de mim… Há também raiva. Natural. Todavia, só se faz máscara a verdade, meu amigo, a inveja que nutre de mim. Até isso é uma falácia. Jamais poderá ser como eu. Não preciso olhar-me no espelho para saber quem sou. Tenho o tempo sem fim nesta condição, enquanto você despreza o seu, que é divino.
Encare-me e prepare-se para fechar os olhos para sempre, sabendo que possuía toda uma eternidade de felicidade aqui e agora, lá e depois e deu-lhe as costas de livre, espontânea e consciente vontade.
Você me decepciona. Todos vocês. Mas, quem sabe, um dia encontro um anjo transvestido em humano? Então, no último momento de sua vida, ele me olhará e nada temerá, pois terá sido o que foi destinado a ser e eu o honrarei como um deus que ele é.
O fantástico usado para refletirmos sobre nossa própria condição humana. A imortalidade, o pecado original, a finitude, e todas invenções que criamos para justificar nossa mediocridade e violência na boca de um Vampiro, morto biologicamente, porém muito mais consciente da sua existência do que nós.
O conto poderia ficar apenas no embate e no escancaramento das nossas falhas como espécie, como sociedade, mas vai além disso e termina com esse encantamento, uma ponta de verdade sobre nossa potência.
Parabéns!
Demorou um pouco, mas acabei lendo seu continho, Bibi! Pequeno em tamanho, porém, gigante em conteúdo!
Enquanto eu lia, imaginava um monólogo: uma criatura na penumbra, o gotejar ao fundo, ecoante, como se estivesse numa caverna. Um demônio? Um obsessor? O lado obscuro e cruel do próprio ser humano? Adorei essa versatilidade. Gosto quando o escritor não subestima seu leitor, deixando-o a vontade para apreciar e interpretar como quiser.
Vemos um discurso que abomina a hipocrisia, que busca reconhecer sua natureza sem qualquer pudor, caçoando da sua contraparte que segue o caminho da perdição quando a iluminação está tão perto.
Foi uma leitura prazerosa, Bibi. E não tenho sugestões, de verdade. Achei o texto completo, fechado em si, sem necessidade de retoques. Parabéns e muito obrigado pelo presente!
O texto me lembrou uma música da qual gosto muito e que sempre imaginei compor a trilha sonora de alguma adaptação de Hannibal. “Mosquito Song”, dos Queens of the Stone Age.
Agora ao comentário. Achei que foi um bom uso da primeira pessoa, num discurso que aponta para um interlocutor que só pode ser humano e, justamente por isso, pode ser qualquer um de nós. Um recurso muito inteligente para nos arrastar para a atmosfera sombria das palavras do personagem. Mas, sabendo que, ainda bem, não é um vampiro que nos escreve e sim a autora, dou a ela meus cumprimentos pela extrema sutileza com a qual faz transitar os sentimentos por detrás dessas palavras. A princípio parece desdenhar de nós, enquanto também reconhece a própria natureza quase como se visse uma maldição. Mas há no fundo um pedido de desculpas, uma espécie de promessa de que encontrará um humano, um anjo, o qual ele possa honrar verdadeiramente.
Parabéns pela sutileza.
Oi, Pedro!
Não conhecia a música e fui procurá-la. Sim, ela é perfeita para Hannibal!
Se você gosta do gênero terror e horror e busca músicas que te inspirem, te sugiro Rob Dougan – ele é um gênio. Furious Angels é minha preferida (se escutá-la, verá que ela é conhecida… pegaram a versão instrumental para Matrix). Usei essa música como inspiração de um personagem em um outro inscrito antigo meu.
Quando eu tinha 20 e poucos anos, adorava o tema vampiro, pois tinha lido Anne Rice, a saga do Vampiro Lestat (fantásticos os primeiros livros dessa saga). Juntando isso à temática médico-monstro dentro de nós, escrevi o conto. Sou apaixonada pela questão de que, dentro de nós, há a quimera e Belerofonte e todos as nuances cinzas entre os dois pólos. O monstro dentro do humano e o humano dentro do monstro e como somos responsáveis por nós mesmos em nossas escolhas. Que sempre há escolha. E por isso no conto há as entrelinhas na fala do monstro, que no fundo havia algo de humano e no humano, que vivera como monstro.
Muito obrigada, Pedro, pelo comentário. É maravilhoso ter retorno do que a gente escreve.
Oi, Anderson!
Que comentário fantástico!
O conto é curto (30 linhas em formatação padrão), pois era o limite máximo de linhas que o concurso exigia. Tive que enxugá-lo e enxugá-lo…rs para entrar nos padrões exigidos.
Sim, você captou muito bem! Há acusação e desculpa por parte do Vampiro, bem como até um certo desalento. Também a inveja do “anjo caído” para a criatura divina. Raiva pela criação de Deus se transformar em monstro.
O Vampiro cumpre o que lhe cabe, no seu propósito, com satisfação e, paradoxalmente, tristeza.
A motivação primeira com a qual escrevi foi uma crítica social, a queda do humano para monstro. E o ex-humano, monstro, sendo destruído pelo monstro que, na verdade, não era um monstro e sim apenas uma criatura que cumpria seu propósito.
Adoro temas psicológicos, místicos, míticos e filosóficos.
Muito obrigada, de coração, pelo seu comentário!!
Abraços
Que texto curto, Bibi! Deixou com gosto de quero mais! Ainda assim, apesar de curto, ele é repleto de significados! Ele é, na verdade, uma acusação e um pedido de desculpas! Sabe que nesse segundo parágrafo é possível tecer umas reflexões bem interessantes sobre a natureza dos seres e das coisas?! A fala que você atribui ao vampiro poderia, facilmente, ser atribuída a um carnívoro qualquer: “Sim, vou matá-lo. […] é apenas minha natureza”. Poderíamos até refletir sobre vegetarianismo, veganismo e outras opções de vida. No terceiro parágrafo, você passa a elucubrar sobre alguns cânones do cristianismo, a começar pelos conceitos de pecado original e expulsão do paraíso. O texto termina com a manifestação de um desesperado anseio por perdão: “ele me olhará e temerá, pois terá sido o que foi destinado a ser e eu o honrarei como um deus que ele é”. Adoro assistir, na Netflix, uma série documental sobre caçada chamada MeatEater, em que o caçador, depois de abatido um animal, lhe presta uma espécie de ritual de gratidão. Em algumas culturas, especialmente nas mais ligadas ao natural, é bem comum a ideia de que os seres vivos todos comungam de uma mesma essência e, por isso, não haveria mal algum no que a ciência chama de cadeia alimentar. Enfim, acho que já comecei a divagar um pouco aleatoriamente a partir do seu texto! O que não deixa de ser mérito seu! Parabéns!