Perdi minha identidade em um dia infeliz, mas não foi naquele setembro chuvoso.
Há muito tempo tinha perdido minha identidade e minha dignidade. Muito tempo.
Minha dor foi que se concretizou naquela primavera…
Era uma tarde setembrina como outra qualquer, chovia. Saí de casa, com meu filho e minha enorme barriga. Eram outros tempos, outros interesses. As pessoas não me suportavam porque quis estudar, me formei professora. Casei-me com um jovem amigo de papai. Sem caráter e sem nobreza, queria para si o nome de minha família. Nome que eu não respeitava, diziam meus familiares. Contrariando minhas cruéis expectativas, fomos felizes. Acreditavam. Ele me conquistou com flores, poemas e perfumes, noites regadas de bons vinhos, saraus de músicas e encontros literários, desde que ninguém lesse nada meu, obviamente. Mas era tão pouco o que eu estava abandonando em “nome de nossa felicidade”, diziam. Só meus sonhos de fazer poesia e de ensinar alguém! Ensinar, diziam as amigas, eu poderia fazer isso por meus filhos. Filhos que eu nunca pensei ter.
Foram cinco anos felizes, para os outros, até que veio a primeira barriga, que não vingou. Senti muito. Não queria ter filho, mas uma barriga modifica uma mulher. Para bem ou para mal. Chorei meu luto, não fui compreendida. “Tantas mulheres deixam descer seus filhos”, diziam. Enterrei os sonhos que criei com minhas formas se desfazendo. Então, voltei meus olhos para novos interesses e o marido começou a pedir por um filho. Medo de uma nova gravidez frustrada, saudades dos sonhos, muitos foram os empecilhos, mas, um dia, a barriga veio. “Estado interessante”, dizia meu padrinho, que infelizmente morreu antes de meu filho nascer. Dindo era o único elo entre a mulher que eu quis ser e a que eu estava me tornando. Era o único, além de mim, que chorava por me ver abandonar meus livros e poesias.
O filho nasceu e foi a alegria dos avós, do pai e minha também, confesso. O povo dizia que mãe ama desde sempre, eu não o amei antes. Apaixonei-me por ele desde o primeiro choro. Era tão lindo, tão carente de mim, fitava meus olhos como se lesse minha alma e me entendia sempre. Nosso amor foi crescendo na mesma proporção em que o amor de meu marido esfriava. Não foi o filho, como diziam as amigas, acusando-me. Eu tinha perdido a função de esposa, o prestígio de meu nome, agora, era dele. Meus pais lhes deram o direito de usar nosso nome e o brasão da família. Ele havia dado um herdeiro para os Almay de Noronha Assis e Toledo. E eu fui sendo anulada até à invisibilidade.
E foi na invisibilidade que eu peguei nova barriga. Bem quando as más línguas diziam que eu estava perdendo meu marido para a minha maternidade doentia. As mesmas línguas, que, antes bondosas, me aconselhavam o casamento, a maternidade, o abandono da carreira, a inutilidade da leitura e da poesia.
Agora, eu ouvia aquelas vozes, como uma doença mental. Sempre um murmurinho sem rosto e sem forma pelos camarotes de teatros e pelas poucas salas familiares que se atreviam a me convidar. Eu me vestia com a mesma elegância da juventude, mesmo já tenho passado dos vinte e dois anos. Usava pó de arroz, Kohl e carmim. Não me deixei abater, mesmo quando ouvia que meu marido andava às voltas com a filha de um fabricante de carros. Eu não acreditava em nada, pois ele dizia que me amava e que estava tudo bem. Mas eu sabia, antes das vozes, que não estava. Sempre vi sua alma por baixo da cal de finesse que ele exibia.
Assim que apareci grávida de novo, o marido sugeriu que fôssemos de viagem para o Norte. Fomos. Marido, filho e eu, sem mostrar barriga, ainda. Era um complexo de casas de madeiras, isoladas por dunas artificiais, lindas. À noite, ele saiu para buscar água na casa-sede e eu acabei dormindo. Despertei com o vizinho quebrando a porta. O fogo estava já no berço… Foi um susto enorme e nada do marido. Encontrou-nos no hospital. Obviamente reclamou das instalações, mas esqueceu de perguntar por nosso filho. O vizinho preocupado, informando que estávamos bem e o marido nervoso, mostrando seu embaraço. Acabar com as férias dos outros, “onde já se viu?”. Voltamos para casa. Dias depois, as más línguas reiniciaram as difamações. Eu tinha um amante. E ele havia nos seguido, diziam. Só assim para explicar que ele surgiu, de repente, salvando-nos.
Então, sofri uma queda do cavalo. Do cavalo que eu montava regularmente, manso. Fui parar no hospital, de novo. Quando voltei, o cavalo Serafim não existia mais, sacrificaram-no. Meu marido, tão preocupado comigo e cauteloso para que mais nenhum mal me acometesse, tinha ficado revoltado com a raiva do animal. Nunca entendi o que aconteceu, porém comecei a ficar assustada. Teve a sala molhada, perto da escada. A aranha na cama…
Passei a viver alerta e, mesmo assim, era surpreendida por pequenos acidentes. Passei a ter medo de tudo e descobri que temer é ficar vivo. Estar alerta era o que me salvava, sempre. Quem queria me ferir? E por quê?
Comecei a olhar debaixo da cama, dentro dos sapatos, ficar com receio da comida. Passei até a cozinhar a comida do menino e a minha, sob as reclamações da cozinheira de que “patrãozinho não vai gostar, patroinha”. Dias depois, um estranho me parou na rua. Perguntou por um endereço e eu fui explicar. Ele me segurou pela cintura, disse meu nome e me beijou. A surpresa foi tanta que levei um tempo para empurrá-lo, e as mulheres começaram a me chamar de adúltera. Corri para a casa de meus pais. Foi lá que meu marido me achou, mais tarde. Minha mãe já havia me tratado como a uma prostituta, e, agora, ele vinha e dizia que fora desrespeitado em público. Foi um alvoroço, um turbilhão de pensamentos confundindo minha cabeça. Ninguém queria me ouvir. Ninguém para me entender.
Eu, chorando, fui com meu filho para casa. Pobre criança a entender nada. E, lá, fui mais uma vez humilhada. Eles tiraram nomes dos cachorros vira-latas e lançaram sobre mim, exatamente quando as chuvas voltaram a castigar a cidade. As dúvidas sobre a paternidade de meu filho, aquela estranha barriga, como se eu não vivesse maritalmente com um homem, por quase dez anos.
E foi assim que eu me tornei a Pecadora. Saí pelas ruas, segurando uma barriga enorme e puxando um menino pela mão. “Um suplício merecido para uma meretriz e seu fruto do pecado”, diziam. Faltava pouco para que, os melhores que Jesus, jogassem pedras sobre mim. A chuva impiedosa foi tomando conta do dia e eu não encontrava apoio em nenhum lugar por onde passava. Meus filhos sofriam. Um fora, que eu já não conseguia segurar, o outro na barriga. O garoto chorava. Com o rosto sujo, tinha fome e fazia muitas horas que comera o último pedaço de pão que eu havia conseguido colocar no embornal. Eu sei que chorava, embora não sentisse mais nada além do desespero. Nem meu dinheiro valia por um pedaço de pão ou um copo de água. Os santos não mercantilizam com pecadores. Santos que nem criam em Deus e que agora me repudiavam.
Não sentia meus pés, só o cansaço. Não sentia mais as mãos, minhas costas, a alma, tudo era uma massa disforme. Estava por minha sorte, e sorte de vagabunda era o prostíbulo, que nem tinha na cidade. E, mesmo que tivesse, eu não iria. O que eles fariam com uma mulher nas minhas condições?
Inconsciente da minha vergonha, bati palmas na casa de meus pais e fui enxotada. Alta e clara era a voz de minha mãe, que nem se dignou a dar as caras, enquanto me amaldiçoava. Maldições que não doeram tanto quanto o desprezo com que se dirigiu ao seu herdeiro, que lhe chamava, sem nada entender:
– Não tenho filha ou netos! – Era sua voz de sempre, firme, inflexível, mordaz.
Aquele foi meu momento de dor definitivo, o auge do sofrimento. A alma, o corpo e a memória trêmulos, ferventes, insensíveis à água que não acalmava e nem irritava. O desespero se acumulou sobre meus ombros exatamente no momento em que o sino bateu dezessete vezes. Cada badalada, uma lembrança…
Um. Dois. Três. Quatro. Cinco. Seis
O fogo na casa de madeira. A escada molhada. O tombo do cavalo. O remédio errado. A água de gosto estranho. O estranho seguindo-me na rua. O tiro na casa de chá. O escorregão do menino na estrada, exatamente quando a charrete ia passando. O bonde… A pessoa estranha na cozinha…
Meu corpo foi voltando a responder. O medo começou a fazer tremer meus dentes. O rio, no fim do caminho, era a solução. Alguém me quer morta? Morrerei! Mas com dignidade, de meu modo, os céus que me perdoem. Não há saída. Eu mereço isso. Nem minha mãe me quer. Sou culpada. E o menino chorando. Meu filho, Jeremias, morreremos juntos. Nem sabe o que é a vida. Pobrezinho, ainda chora esperando uma salvação, que não virá… Tem fome, eu sei. Não tenho nada para lhe oferecer. Só lágrimas, dele e minha, e isso nos iguala. Ele inocente, eu pecadora.
É por ali o rio. É só seguir o pôr do sol. Sim. Chove e faz sol. Foi assim desde o momento em que a vergonha desceu sobre nós. Posso ir sossegada. Com essa chuva, as lavadeiras certamente nem apareceram e, se ainda se arriscaram, uma hora dessas, já se foram. As raparigas, mulheres da vida, também já devem ter se banhado. Daqui a pouco, começa a lida da noite. Tenho que pensar tudo, direitinho, não quero testemunhas. Dizem que as águas dos rios acalmam as almas. Deve ser por terem recebido muitas pessoas desiludidas, assim como eu.
Já é quase noite. O sol reluta com as águas, quer ficar no céu. Cansada. Pés e alma sujos, as pedras dificultam meu caminho, a barriga pesa demais. Pobre criança, nem verá a luz do sol. E para quê? Para sofrer?
Mais alguns minutos, tudo acabará. A cidade, há muito, está distante. Não há viva alma pelo caminho. Tudo perfeito. Já ouvindo a queda d’água, comecei e pedir perdão ao pequeno Jeremias. Hoje, fazendo jus ao nome, não cessa o choro. Antes alto, enquanto acreditava encontrar apoio, agora entregue, quase soluços.
– Fique em paz, querido. Logo estaremos juntos para sempre. Nós e os anjos. E seus irmãozinhos. O que se recusou a nascer e o que jamais nascerá, Jeremias. Obrigada a você, meu filho, por ter vindo ao mundo para me dar alegria. Sem você, os últimos anos teriam sido piores. Desculpe esses beijos de dor.
E o barulho da água, nossa salvação, se aproximava mais, nos chamando…
Lembrei-me, enquanto me aproximava das pedras do rio, do dia em que, por brincadeira, me afastei da margem. Era o mesmo rio, mas a margem era outra. Os tempos também. Dindo vivia e eu era feliz. Eu era pouca coisa maior que meu Jeremias. Nadei para longe e acabei afundando. Desespero e água me levando para o fundo, como mãos poderosas. A mente tentando me salvar, porém o corpo não obedecia. Desisti de lutar e me entreguei. As águas invadindo meu corpo, pequeninos peixes multicores vindo em minha direção e então um Tritão surgiu. Sem garfos e sem calda. Abraçou-me e subiu comigo para fora das águas. Dessa vez, ele não surgiria. Ele e nem mais ninguém. Ele já se foi, faz tempo, meu Dindo…
Fui entrando nas águas revoltas do rio com a lembrança do Dindo. E, então, estanquei. Não tinha deus do mar. A mulher que surgiu das águas era uma deusa. Talvez a protetora das almas dos afogados. Escura como canela, de uma beleza que até para mim, que pensava na morte, era difícil de passar despercebida. E era um erro em meus planos. Ela não deveria estar ali. Todos os meus planos ficaram suspensos. Ela se ergueu mais uma vez, os muitos cabelos escondendo seu corpo, que eu adivinhava nu. Saiu das águas, sem vergonha alguma, e, assim, sem palavras, ofereceu-se para nos acompanhar. Eu soube que ela era a guia para o meu desterro.
…
Eu sei que você acredita que estou viva. Não estou. Mas não morri naquele dia. Fui viver no morro. E não era a única branca desterrada. Lá, lecionei. Lá, fiz poesia. Lá, conheci o meu José e me amancebei com ele. Tivemos filhos. Nossas raízes se multiplicaram.
Hoje, estamos juntos de novo. Em outro plano.
O texto dá a entender que tudo foi uma armação do marido. Um cara que apenas quis se aproveitar do nome da família da mulher. O fogo na casa, (Ele não queria mais um filho) o beijo na rua pelo desconhecido; uma casinha, bem feita, onde até os seus próprios familiares à caluniaram. Texto bem construido . Parabéns
Sim, Erlon. O marido é um criminoso socialmente aceito. Grata pela leitura.
Um conto de grande profundidade e tristeza. Fiquei um pouco confuso para entender em que tipo de mundo se passa. Num outro planeta? Na idade média? Nos dias atuais? A meu ver, essa dúvida é pertinente para avaliar a verossimilhança dos fatos e da reação das pessoas.
Numa história calcada na realidade, nos dias atuais, uma família não viraria as costas para sua filha, com uma criança, depois de tantos atentados contra sua vida, as atitudes e decisões das pessoas seriam questionáveis, e isso afeta a minha noção de acreditar na história.
Agora, talvez, na idade média, atitudes assim seriam compreensíveis.
A autora aprofunda muito nos sentimentos da protagonista, e em alguns momentos, me pareceu repetitiva. Não houve uma evolução no que ela sentia, ela começou como uma mulher derrotada pela vida e terminou como uma mulher derrotada pela vida, se mudanças. Essa linearidade do personagem não me agrada (claro, apenas meu gosto pessoal) porque não há evolução ou progressão nem na história, nem no personagem.
Se a ideia da autora é manter o cerne da história, talvez pudesse fazer a protagonista passar por uma jornada de aceitação de sua condição e abraçar o seu final triste, mais decidida, não sei… estou apenas elaborando idéias…
A escrita é excelente, e a narrativa é muito boa, as partes que eu mais gostei foram as desconfianças dos atentados, que acabou ficando de lado, dano azo às dúvidas e sentimentos da protagonista (de novo)
Apesar de tudo o que eu falei, um conto como esse me faria bocejar e mal ter vontade de terminar, mas a autora tem bastante habilidade com as palavras para manter a narrativa interessante até o final.
Um bom conto, mas a meu ver, carente de desenvolvimento de personagem e de enredo.
Um abraço!
🗒 Resumo: garota casa por arranjo e tem filho com seu marido. Perde o primeiro, tem o segundo e está grávida do terceiro. Uma série de fatos estranhos acontecem e acabam com a fama dela, que passa a ser vista como pecadora, sendo renegada pelo marido e família. Ela decide se matar numa cachoeira, mas acaba sendo “resgatada” por uma deusa dos rios que a leva para outro plano.
📜 Trama (⭐⭐▫▫▫): achei um tanto brusca a mudança dela para pecadora. De repente todos começaram a chamá-la assim, meio que sem uma justificativa mais forte. Sei que cidade pequena é assim e isso não é inverossímil, só faltou uma transição melhor no texto.
Alguns pontos que não entendi muito bem:
▪ Quem estava querendo o mal dela? Alguém armava para que ela fosse vista como pecadora?
▪ Quem era o vizinho que a salvou? Por que ele fez isso?
A aparição da deusa também foi muito repentina. O conto caminhava numa linha real, sem uso de fantasia ou magia e de repente tudo mudou, justo no fim. Essas reviravoltas geralmente exigem uma citação anterior, uma memória no início do texto, etc. Assim ficou parecendo, literalmente, um Deus Ex-Machina.
▪ prostíbulo, que nem tinha na cidade (Será que existe cidade sem prostíbulo? 🤔 brincadeira… 😆)
📝 Técnica (⭐⭐⭐▫▫): é bastante funcional. Não apresenta erros importantes, mas ainda acredito que pode evoluir um pouco mais nas figuras de linguagem e no trabalho da linguagem.
▪ Faltava pouco para que *sem vírgula* os melhores que Jesus *sem vírgula* jogassem pedras sobre mim (não separa sujeito e verbo)
🎯 Tema (🆓️): estigma social 🤰🤱
💡 Criatividade (⭐⭐▫): na média.
🎭 Impacto (⭐⭐▫▫▫): pelo excesso de dúvidas que acumulei e pela forçada final na trama, acabou que meu impacto ficou reduzido.
Leo Jardim
Olá. Tudo bem?
Vamos lá.
Você diz: “Ela decide se matar numa cachoeira, mas acaba sendo “resgatada” por uma deusa dos rios que a leva para outro plano.” Porém, Não há deusa. Ela tem uma percepção messiânica de uma mulher que ela encontra no rio e, ela não vai para outro plano ainda. Sobe o morro e lá tem uma nova oportunidade de viver e realizar seus sonhos. Está posto no parágrafo final que ela até casou-se e teve filhos.
Bem, quanto a sua interpretação da trama, a mudança é brusca porque ela não percebe quando acontece. Nesse momento da escrita usei minha experiência em cidade pequena, na verdade, bairro dormitório, lugar em que as pessoas que estão sob acusação não percebem o início do problema. porém respeito sua percepção, obviamente. Ela assume sua condição de pecadora como a identidade imposta e declara nas suas primeiras palavras: “
Agora os pontos que você não entendeu bem:
1 – Quem estava querendo o mal dela? Alguém armava para que ela fosse vista como pecadora?
O marido. Não sei sua idade, porém há muitos marcos na História de homens que destruíram a imagem das mulheres para continuar vivendo livremente suas farras. A rainha louca não era louca, os parentes só não queriam que ela exercesse seu direito de sucessão após a morte do marido, assim, manipularam a opinião pública para justificar a internação da soberana. Na Literatura temos Capitu…
2 – Quem era o vizinho que a salvou? Por que ele fez isso? O vizinho é um desconhecido, já que o lugar onde aconteceu o primeiro crime era fora de seu habitat, as más línguas atribuíram conhecimento, ela deixa claro: “
3 – “A aparição da deusa também foi muito repentina. O conto caminhava numa linha real, sem uso de fantasia ou magia e de repente tudo mudou, justo no fim. Essas reviravoltas geralmente exigem uma citação anterior, uma memória no início do texto, etc. Assim ficou parecendo, literalmente, um Deus Ex-Machina.”
Bem, como já disse, não há manifestação divina. Só seu desespero muda sua percepção sobre a mulher que está se banhando. Aqui foi algo proposital quis que seu salvador fosse mulher, tia Branca, embora no texto não apareça seu nome, é uma personagem recorrente de minha escrita no que se refere a criação dos morros e subúrbios paulistanos. A ideia de deusa não deixa de ser uma alegoria…
4 – prostíbulo, que nem tinha na cidade. Para sua informação, há sim cidades sem este tipo de estabelecimento, porém, no texto é só para mostrar a pretensa assepsia da cidade. É uma Ironia implícita, justamente trabalhando com a idéia geral ou preconcebida da inexistência de uma cidade sem “pecadores”.
Sobre a Técnica você diz que apesar de ser “ bastante funcional” e deveria ou poderia “evoluir um pouco mais nas figuras de linguagem e no trabalho da linguagem”, porém, é uma opção de escrita minha usar um texto enxuto quando na primeira pessoa. Embora, como mostrei em alguns pontos, tenha trabalhado figuras internas, já que é praticamente impossível escrever sem utilizar as figuras de linguagem. Mas vou continuar tentando…
5 – “Faltava pouco para que *sem vírgula* os melhores que Jesus *sem vírgula* jogassem pedras sobre mim (não separa sujeito e verbo)”
Verdade, não separa sujeito de verbo, porém, a frase entre as bichinhas pode ser suprimida sem prejuízo para a narrativa, porém estão aí para evidenciar a Ironia, sendo classificada, segundo Bechara, como Aposto. Na oração analisada foram usadas para desenvolver o intertexto com a passagem bíblica sobre a mulher que não foi apedrejada em frente a Jesus porque seus acusadores foram lembrados de seus próprios pecados. No ambiente de fala usamos, para justificar Aposto de ironia, usamos aspas marcadas com as mãos…
Espero ter diminuído suas dúvidas e com isso.
Passar bem.
Elisabeth Alves
RESUMO:
Mulher tem um casamento arranjado, por interesses pela influência da família. Demora a ter filhos, e quanto tem o primeiro não demora a engravidar outra vez.
Começam então a ocorrer situações estranhas, atentados em que poderia morrer parecendo acidente. Um estranho a beija na rua, ela é tachada como adultera e cai em desgraça.
No final, vai se matar afogada junto com o filho (e o outro na barriga), mas há uma intervenção divina.
COMENTÁRIO:
Esse conto é muito pesado, em todos os sentidos. Há frases muito bem construídas e o conto tem o mérito de passar muita angústia, mas isso é embalado numa escrita que não fluiu muito bem, ao menos para mim.
Eu não entendi o final. Não captei se é alguma metáfora, loucura da personagem ou realmente algo sobrenatural. Enfim, infelizmente não gostei.
NOTA: 3
Olá.
Não foi uma intervenção divina.
Grata pela leitura.
Resumo: a narradora conta a história de sua vida, depois de ter casado jovem com um amigo do pai e ter-se formado professora. O marido só queria o status do nome da família dela, e foi seduzida e até mesmo feliz, pelos presentes, poemas e noites românticas. Mas ela sentia que estava abandonando sua vocação. Em cinco anos, veio a gravidez que não vingou e a exigência de um filho pelo marido. Finalmente, engravidou e apaixonou-se pelo filho que tinha medo em ter. Mas com isso o amor do marido foi se distanciando, já que tinha o herdeiro que precisava. Na segunda gravidez começou a perceber que o marido a traía, e a ouvir vozes. Foram para o norte, em viagem, e acordou entre as chamas na hospedagem, junto com o filho. O marido não estava e parecia alheio ao drama. Na volta, foi difamada e ainda caiu do cavalo que tanto amava, e que foi sacrificado. Pequenos acidentes se repetiam, até a paranoia. E acabou se tornando uma pária, acusada de traidora, incompreendida até pelos pais. Decide se matar, com o filho, no rio, até ser salva por uma divindade, uma deusa que a resgatou. Ela permaneceu viva e foi morar no morro, onde conheceu José e foi feliz até mesmo depois da morte.
Método de avaliação: “Análise Jacquiana”
Receita: uma história sabrinesca, com pitadas de drama e salvação.
Ingredientes: mulher boazinha, homem ambicioso, criança inocente, dúvidas e traições, desejo de morte e redenção.
Preparo: a história é muito linear e simples, só que padece do deus ex-machina para justificar a redenção da heroina. O final é apressado, quase cru.
Sabor: não é meu estilo de leitura preferido, mas o autor fez com simplicidade a sua narrativa. Só achei meio forçada a redenção pelo sobrenatural e a vida alternativa no final abrupto.
Frases motivacionais (quase aleatórias) do Eric Jacquin (ou coisas ele possivelmente diria) : “Tem macarrão instantâneo mais gostoso.”
Quem é Eric Jacqui? Algum teórico recente?
A pecadora (Emma Boavary) (4.0)
Resumo: Uma alma aprisionada, a sobrevivência num mundo hostil, a redenção de uma mulher.
Apesar da redundância do setembro chuvoso do inicio, achei muito interessante o fato do autor narrar a história na primeira pessoa, mas sempre pela perspectiva dos outros tipo: “Nome que eu não respeitava, diziam meus familiares. Contrariando minhas cruéis expectativas, fomos felizes. Acreditavam.” Ou, “Mas era tão pouco o que eu estava abandonando em “nome de nossa felicidade”, diziam. Só meus sonhos de fazer poesia e de ensinar alguém! Ensinar, diziam as amigas”. Essa construção é sensacional pois diz muito do ambiente sufocador que a personagem vive, sobrevivendo. Sua gradativa anulação, até atingir a invisibilidade,
O relato é crível, sincero, não é difícil enxergar a angustia da personagem. Sua escravidão dentro do patriarcado das aparências, onde tudo que não é necessidade do homem fica em segundo plano. As elipses foram muito bem empregadas, gerando vigor e ritmo para a história contada de uma vez só, de um único folego. Algumas construções são boas e causam reflexão, trazem um pouco da atmosfera que cerca a personagem, “Eles tiraram nomes dos cachorros vira-latas e lançaram sobre mim, exatamente quando as chuvas voltaram a castigar a cidade. “.
O final é bom porque traz um simbolismo muito grande. A ressureição da personagem quando se conecta mais uma vez com o feminino. A sua fuga do ambiente mendaz de uma sociedade que usurpou sua personalidade e o reencontro consigo no morro, onde poderia ser mais uma vez ela mesma.
Em suma, um conto que explora a devastadora usurpação da vida de uma mulher quando se vê obrigada a se dobrar para sobreviver. As pequenas mortes da autoestima, o curso óbvio da depressão, a apatia profunda e o recomeço. Um belo texto.
Como eu gosto deste comentário!
Mulher, filha de família importante, casa-se com homem interessado nas pompas de ostentar seu sobrenome. Ela vive, inicialmente, uma felicidade moderada, condicionada ao papel subalterno. Após alguns eventos, amplificados pela maldade das pessoas, ela se torna difamada, acusada de adúltera – quando, na verdade, o marido era quem estava envolvido com amantes. Um desconhecido beija a mulher em local público e o clima se torna insustentável. Abandonada por todos, a mulher parte em direção à morte, grávida e com um filho pequeno. Uma divindade vinda das águas, porém, muda seu destino e a salva da morte.
O texto tem ideias interessantes. Gosto das questões que ele levanta, como a dinâmica de supressão da mulher na sociedade e a crueldade dos comentários difamatórios. Acho isso importante, o autor pensar seu texto como hábil para, a partir das sensibilidades que ele toca, gerar discussões.
Uma revisão mais apurada seria importante. Não tanto pela gramática, mas pelo estilo. Me incomoda, no início, aqueles parágrafos frasais, a repetição de elementos descritivos (“setembro chuvoso”, “primavera”, “chovia”). Reconheço que Emma Bovary se esforça em construir frases bonitas, sensíveis, mas o texto é confuso. Os eventos vão desencadeando de forma embolada, em ritmo acelerado e, na parte final, quando a personagem vai em direção à morte, desacelera. Acho que o controle de climax deixou a desejar, sobretudo no final.
O derradeiro parágrafo, resumindo o que aconteceu com a personagem foi um desfecho abrupto. Explícito demais, enquanto, ao longo do texto, várias pontas de mistério eram lançadas (o marido tinha amante?, quem foi o desconhecido que sabia o nome dela e a beijou?). Faltou equilíbrio.
Sugiro, em futuros desafios, desenhar primeiro um esquema, a estrutura do texto, antes de começar a escrita. Pensar melhor nos elementos do texto, ver o que realmente é necessário (será que o personagem Dindo somou mesmo algo ali?). A história do texto, acredito eu, tem méritos e possui potencial para cativar muitos leitores. Entretanto, mais do que contar, é importante fazê-lo de uma forma agradável. Boa sorte no desafio!
Um conto de uma beleza singular, mas com um final tão decepcionante…
Resumo: Ela é uma pecadora. Se dizem que é, então é. Por que questionar o que os outros definem de você? Se, no final, somos o que somos por estamos em sociedade. Ou não somos? Mergulhamos no mundo dela, em seus sofrimentos, em como todos a julgam por algo que, de fato, não tem culpa alguma. Ou tem?
Querida autora, que conto espetacular. Há tanta beleza nessas linhas, na forma como você constrói a personagem, colocando-a como a pecadora dos pecadores e entregando, para o leitor, a verdade por detrás das palavras iludidas dela, que realmente acredita que é uma pessoa terrível, mesmo sem entender isso.
É um conto que fala muito sem transparecer.
A hipocrisia das pessoas. A forma como criamos ovelhas negras ou bodes expiatórios. A capacidade que temos de fazer uma grande crueldade quando não temos escrúpulos. Todas essas questões são levantadas de forma sutil, sem moralismo, demonstrando como todas essas ações podem levar uma pessoa a procurar a destruição.
Você é extremamente sensível, num bom sentido, claro. A única coisa que me incomodou na história foi seu final. Brusco, violento de forma negativa, sem acompanhar a qualidade do conto. Eu queria que algo acontecesse, nem que fosse algo místico, que quebrasse o ritmo do sofrimento dela. Mas, sinceramente, eu preferia a tragédia ao final açucarado e rápido que ofereceu.
Admito: fiquei até com raiva depois da leitura.
A parte técnica me pareceu impecável. Não tenho o que somar nesse caso, apenas te parabenizar pelo talento e habilidade!
Se puder, no futuro, melhore esse final, haha.
Resumo: A história de uma mulher, contada por ela mesma, que se vê obrigada a desistir de sonhos para ser apenas mãe e esposa. Depois de muitos anos de casada, descobre que seu marido a trai e vê sua vida correndo perigo, a vida de seu filho também. Grávida e com o filho pequeno, ela é abandonada pelo marido e família, e decide se matar no rio. Uma divindade aparece a ela, fazendo-a mudar de ideia. Ela vai viver no morro onde se casa novamente e tem mais filhos.
É um conto bem diferente, apesar de falar de um assunto bem comum. Inclusive, fiquei uns bons minutos pensando no que o fez ser tão diferente e não cair na mesmice. Cheguei numa conclusão óbvia: a forma como o conto foi narrado e por quem foi narrado. É diferente quando escutamos a voz da mulher, quando ouvimos os lamentos da “pecadora” e não do homem, do marido, da sociedade. A experiência foi única porque foi a voz da mulher que grita no seu conto, que resiste aos preconceitos e injustiças, que vê sua própria essência ser ignorada para seguir certo padrão a ela imposto, que vê seu destino fatídico bater à sua porta. E mais uma surpresa: não houve tragédia além da evidente e cruel postura da sociedade. E que agonia eu vivi como leitora, vendo-a se aproximar do rio, a ponto de se matar, matar o filho que ela trazia no ventre, matar o Jeremias. No entanto, ela segue outro caminho, ela vai para um lugar onde consegue viver, ser ela mesma. Parabéns, seu conto tem uma beleza única. Muito bonito. Eu amei.
O que entendi: Uma mulher vê seus sonhos, de lecionar e escrever poesia, enterrados pelo casamento e maternidade indesejados. Conforma-se, mas o marido deseja livrar-se dela ao difamá-la. Grávida, abandonada pelo marido e os pais, pensa em se matar junto com os filhos jogando-se no rio. Desiste, conhece um cara legal, realiza seus sonhos e é feliz para sempre.
Técnica: Sabrinesca com doses cavalares de drama. Embora lento, o texto flui bem e gera empatia com a personagem.
Criatividade: Gosto de contos que evoluem como uma saga. Todos os elementos de uma estão neste.
Impacto: Positivo ao não finalizar o conto com uma tragédia, já anunciada desde o título.
Destaque: “Perdi minha identidade em um dia infeliz, mas não foi naquele setembro chuvoso.” Simpatizo contos que começam com uma boa frase de impacto.
Sugestão: Refazer o último parágrafo. Ficou com caráter meramente explicativo, o que não combina com a qualidade do texto.
Resumo: uma mulher larga seus sonhos para entrar numa espécie de casamento arranjado. Com o passar dos anos tem um filho e fica grávida do segundo, mas um mal entendido faz com que seja expulsa de casa e humilhada pelos outros, como se fosse uma prostituta. Ao final, ela encontra a salvação nas águas e recebe uma nova vida.
Um conto que retrata a situação de muitas mulheres que acabam deixando de lado seus sonhos e anseios para viverem um casamento que nem sempre era uma prioridade. Uma das minhas personagens favoritas, Laura Brown de As Horas, também traz uma mulher assim: larga sua carreira na biblioteca e sonhos de independência para casar com um veterano de guerra; mas que durante a gravidez de seu segundo filho resolve agir e largar tudo para ser feliz. Temos esses arquétipos, principalmente do “homem bom”, que a mulher não pode reclamar do casamento, que é vista pelo outros como alguém que não pode reclamar da vida que leva. Alguns trechos do conto (e também pelo final) me fizeram entrar um pouco num viés mais fantástico, principalmente quando vemos a “estranha barriga”. A escrita está boa, ocorre fluidamente e traz um vocabulário fácil de ler, com exceção de uma setembrina aqui ou embornal ali.
O final traz uma mensagem de salvação. A água, de maneira geral, está sempre associada à purificação ou renascimento (como o batismo). Então foi interessante ver a protagonista se encontrando com uma entidade das águas, uma deusa (seria Iemanjá ou Oxun?) e também entregando uma outra linha de interpretação: ela foge da culpa e do pecado cristão. Nesse outro plano, sua vida é diferente, mais feliz e plena, deixando ao leitor interpretar se é delírio, realidade ou morte. Um conto interessante, que traz uma visão legal sobre o pecado. Achei alguns trechos corridos, mas nada que afetasse a trama.
Resumo: contra os interesses de sua família bem posicionada economicamente, mulher se casa com um homem simples; contudo, vê-se acusada de traição e sente-se perseguida; mesmo com filhos, sente-se deprimida, a ponto de querer afogar-se num rio. No fim, é salva por uma visão, mudando-se anônima para uma comunidade simples, onde termina seus dias resolvida consigo mesma.
Impressões: O conto é, definitivamente, a sinopse de um bom romance. A história da mulher que enfrenta adversidades — primeiro da família e depois da sociedade — é bastante instigante e merece muitas e muitas páginas. Como resumo que é neste espaço, carece de aprofundamento, já que as situações se desenrolam rápido demais, como num roteiro apressado. Não dá tempo para nos identificarmos com a protagonista, sentir suas dores (que certamente estão lá), vibrar com sua superação. Estou certo de que bem desenvolvida essa história se tornará maiúscula.
Em todo caso, algo que me chamou a atenção, mesmo neste curto fôlego, foi a maneira como ela, a narradora, encarou as situações em que sua própria figura foi atacada. Não dá para saber ao certo se essa difamação de fato ocorreu ou se tudo se trata de sua imaginação, da maneira como ela enxerga tudo, num papel de vítima. Achei essa dubiedade inquietante e, por isso, o que há de melhor no conto. Poderia encarar a reação da sociedade em relação a ela — as acusações de traição, por exemplo — como algo maniqueísta, artifício típico para nos apiedarmos dela; mas não, a mim pareceu algo produzido por uma mente perturbada, já que seria difícil todos voltarem-se contra ela pelo simples prazer de vê-la sofrer. Por isso eu apostaria na segunda hipótese, de que essa sensação de perseguição é algo que ela mesma concebeu em seu desvario.
Enfim, mesmo curto e clamando por aprofundamento, o conto está bem escrito e conduz o leitor por corredores que despertam o interesse. Parabenizo o(a) autor(a) e desejo boa sorte no desafio.
O conto é bem escrito, mas tenta espremer muitos acontecimentos num espaço curto. No final das contas, muita coisa fica bastante obscura, como a motivação de quem tentava de alguma forma matar a protagonista e a identidade da mulher que surgiu no rio. A personagem é muito interessante, mas me parece que o conto carece de desenvolvimento tanto dela quanto do próprio enredo, que fica com muitas pontas soltas.
O primeiro elogio vai para a narrativa, em que destaco dois elementos, o uso da primeira pessoa e a estrutura do conto, que leva o leitor por uma sucessão de eventos em que o artifício da narradora personagem serve para colorir a leitura com um comovente espectro de sentimentos. Foi como assistir a uma série de flashs em que se pode ver a usurpação de uma vida, a da protagonista. Não houve um momento de início dessa usurpação, pois já o seu sobrenome implicava em perda. O casamento, o esvaziado e absurdo moralismo coletivo e a própria família serviram de algozes para a mulher, tirando dela os seus sonhos, a própria liberdade e qualquer vestígio de paz, que logo se tornou em temor generalizado e paranoico, não sem razão. Sei que a autora não quis explicitar se ela corria perigo de vida efetivo ou não, mas é inegável que a mulher sofria e esteve sendo atacada durante toda a vida. O final escolhido foi redentor, esperançoso, uma outra vida iniciada no fim de algo que não se pode mesmo chamar de vida. Talvez, um renascimento ao fim de um suplício seja o mais apropriado. Além da escrita impecável, com cadência que prende e emociona, alguns aspectos do enredo merecem destaque por suscitar temas interessantíssimos: o matrimônio como roubo de identidade; a origem do amor materno e a própria maternidade romantizada e mascarando intentos de censura e controle; a falsa moralidade escondendo machismo e patriarcalismo.
Parabéns.
Grata. Comentário perfeito. Interpretação grandiosa e percepção afiadíssima. O texto foi gerado para passar exatamente estas verdades da personagem. Obrigada pela leitura excelente.
Elisabeth Alves
Sinopse
Uma mulher tinha sonhos de se realizar, era professora, tinha o que ensinar. Mas quando certo homem entrou em sua vida, ele se resumiu a casar e ter filhos. A família a gradece por dar continuidade ao seu nome. A sociedade lhe reconhece, presta-lhe honrarias por seguir o fluxo da alma pátria. Mas o que deveria ser um romance de amor, acaba por se tornar um breve conto de terror.
Comentário
Acho que a maior violência do mundo, é quando uma pessoa tem a sua autonomia cerceada. Numa família conservadora, o papel da mulher tem algumas limitações. É uma autoimposição que vocifera preconceitos. Há medo e frustração em seu caminho. O patriarcalismo que faz das filhas produto de uma mercancia social (troca-se nomes e influência por amores, muitas vezes doentios), produz relações conflitantes e casamentos arruinados. Mulheres frustradas com sua dupla jornada, de mães de família atuantes e profissionais sem atuação.
Se num primeiro momento há amor e cumplicidade, logo o marido mostra suas garras. Não é preciso erguer a mão para violentar. A ausência do lar, a frigidez, a traição, o maltrato aos filhos, a violência psicológica e emocional, as tentativas de assassinato silenciosas, tudo conflui para dor e sofrimento da mulher. Por incrível que pareça, é o ato do casamento que muitas vezes destrói famílias inteiras. O amor dos primeiros anos logo cede ao antagonismo. Há posse. Usa-se o outro como um produto, que quando não pode mais desempenhar sua performance como antes (como uma mulher ao engravidar ou adoecer) é substituído sem nenhum pudor. O que resta a uma professora execrada pela sociedade quando sua família a renega, a sociedade a rejeita e o marido a abandonou? O suicídio.
Não farei nenhum juízo de valor. Mas há que nível de desespero uma mulher pode chegar ao ver como solução final extinguir a própria vida e a de seus filhos? Quando sobreviver é um estilo de vida, a morte parece mais uma salvação do que uma punição. Os conflitos dessa mulher (síntese de muitas outras, encarnação de milhares de biografias, infelizmente) foram mostrados de modo cru, com uma linguagem bem aplicada. A narrativa em primeira pessoa foi assertiva, a vítima nunca é instada a falar. Existe uma violência simbólica e conivência social e familiar com a violência contra a mulher que beira ao consuetudinário, ao ponto de alguém n]ao saber mais o quem é. Perder a identidade é só o primeiro passo do processo. Esse é aquele conto que nos chocamos ao ler, mas essa realidade é muito necessária. Que mais contos como esse sejam escritos, que trabalhem a violência contra a mulher com a criticidade necessária e não demonstrem qualquer tipo de aceitação ou romantização da violência. Parabéns colega entrecontista, por tratar desse tema e de modo tão competente.
Notas de Leila Carmelita
– A Gata de Luvas – 4,0
– A Hora da Louca – 4,5
– A Onça do Sertão – 3,6
– A Pecadora – 5,0
– App Driver – 1,0
– Estantes – 5,0
– Famaliá – 3,5
– Festa de Santa Luzia: Crônica de uma Tragédia Anunciada – 5,0
– Lágrimas e Arroz – 1,0
– Muito Mais que Palavras – 1,5
– Na casa da mamãe – 3,5
– O Legado da Medusa – 4,5
– O que o Tempo Leva – 1,8
– O Regresso de Aquiles – 4,0
– O Vírus – 2,5
– Suplica do Sertão – 5,0
– Trilátero Ourífero – 4,5
– Uma História de Amor Caipira – 1,0
Contos favoritos:
Melhor técnica – Estantes
Mais criativo – Festa de Santa Luzia: Crônica de uma Tragédia Anunciada
Mais impactante – A Pecadora
Melhor conto – Suplica do Sertão
Grata.
Elisabeth Alves
A Pecadora (Emma Bovary)
Resumo:
A história de “Emma Bovary” (???), relatada por ela. Saga infeliz. As personagens não possuem nomes, excetuando-se: Dinho (padrinho), José (segundo companheiro) e Jeremias (filho). Narrativa feita “de outro plano”.
Comentário:
Imagino que o pseudônimo “Emma Bovary” tenha relação intrínseca com a personagem de Gustave Flaubert. O texto “A Pecadora” retrata exatamente uma mulher sonhadora, que gosta de ler, que sonhava com uma vida repleta de amor, tal qual via nos romances. O enredo aborda o adultério e a crítica da sociedade moralista, o que não combina com o perfil romântico da personagem. Percebe-se que este moralismo exacerbado perturba a personalidade da protagonista. Neste conto, a mulher abandona os sonhos e segue caminhos outros, não desejados. Tão comum em tempos antigos e ainda recorrentes nos dias de hoje. Um belo conto. Denso, amargurado, carregado de mágoa, de rejeições. No texto, nada é suave. Até mesmo o amor e o convívio com o filho trazem nesga de incompletude. Interessante que os personagens são (quase todos) inominados. A narradora diz: pai, mãe, marido, vizinho, eu… É um texto que gira em torno da morte, do fim, do desfecho. São várias as tentativas de homicídio contra a protagonista, nunca tratadas dessa maneira, apenas insinuadas pela narradora. Não vi deslizes de escrita, apenas erro de digitação. A válvula de escape, para que o leitor se conforte, vem no desfecho, quando a protagonista encontra José. Pode, enfim, amar, lecionar, escrever… E ela nos conta tudo isso de outro plano. Em questão de profundidade de texto, de conteúdo, acredito que este conto esteja entre os mais completos desse desafio. É triste, reflexivo, maduro, sofrido. Fala muito do sentimento de aflição que se aninha no interior da pessoa abusada. Confesso que precisei de um tempo para digerir toda essa amargura. E fiquei feliz quando vi que ela já fez a passagem. Sofrimento também tem fim. Há, no texto, frases que tocam o leitor de maneira mais contundente, frases sempre carregadas de significado:
“Passei a ter medo de tudo e descobri que temer é ficar vivo.”
“Os santos não mercantilizam com pecadores.”
“A alma, o corpo e a memória trêmulos, ferventes, insensíveis à água que não acalmava e nem irritava.”
“Não tenho nada para lhe oferecer. Só lágrimas, dele e minha, e isso nos iguala. Ele inocente, eu pecadora.”
“Dizem que as águas dos rios acalmam as almas.”
“O sol reluta com as águas, quer ficar no céu.”
Parabéns, Emma Bovary!
Boa sorte no desafio!
Abraços…
Resumo: Mulher de família rica e poderosa se casa com um sujeito simples e muito ambicioso que tenta de todas as formas matá-la para ficar com seu dinheiro e nome, não conseguindo, arma um escândalo e uma falsa traição da esposa e então expulsa-a de casa com um filho na mão e outro na barriga. Ela pensa em se matar no rui levando as crianças junto mas é salva e encaminhada a uma comunidade fora da cidade onde vive o resto de sua vida feliz.
Olá, Emma!
Eu gostei bastante do seu conto! É bem poético e tem um ritmo próprio bem envolvente. O conto lembrou mesmo uma Madame Bovary ao contrário e me doeu ver que a pobre coitada via tudo acontecer sem forças ou condições de se justificar ou se vingar. Confesso que o final não me agradou, apesar de ir contra meu gosto e expectativa, eu preferia que ela tivesse mesmo se afogado com as crianças, seria mais consistente com o resto do conto. O final, apesar de feliz, foi abrupto demais e anticlímax, mas isso é um gosto meu e não afetará a sua avaliação. O conto está extremamente bem escrito, os personagens bem delineados, o tom lúgubre só quebrado no final, tudo bem arquitetado e executado. Parabéns e boa sorte!
Resumo
O conto é narrado pela protagonista, uma mulher de família importante, rica, que tem como objetivo escrever suas poesias e lecionar. Mas ela acaba abandonando seus sonhos em nome da sociedade, casando-se e tendo filhos que ela, de início, não desejava. Sempre julgada pelas pessoas por suas opções, mesmo quando ela decide em favor do desejo dos outros, a protagonista acaba sendo envolvida em situações estranhas que dão a entender que alguém queria tirar sua vida. Abandonada por todos e julgada como traidora, ela se entrega à depressão e a uma frustrada tentativa de suicídio. No final, ela acabou não se matando e teve uma vida boa até morrer.
Comentário
Parabéns pelo belíssimo conto. A escrita é fluida, agradável e envolvente. Trama interessante, boa técnica, ótima mensagem.
Só não gostei muito do final, achei um pouco morno, um pouco desconectado de todo o restante deste belíssimo conto.
o sino bateu dezessete vezes – nunca ouvi dizer que sino batesse dezessete vezes, mas vai saber.
Gramática
Regadas (a) de bons vinhos
Meus pais lhes (lhe) deram o direito de usar nosso nome
Bom dia/tarde/noite, amigo (a). Tudo bem por ai?
Pra começar, devo dizer que estou lendo todos os contos, em ordem, sem saber a qual série pertence. Assim, todos meus comentários vão seguir um padrão.
Também, como padrão, parabenizo pelo esforço e desafio!
Vamos lá:
Tema identificado: drama, época
Resumo: relato da vida sofrida de mulher que, traída pelo proprio marido (imagino q era ele que queria se livrar dela, uma vez que só queria seu sobrenome), acaba sendo marginalizada por sociedade machista. Ao fim, encontra nova vida e realiza seus sonhos.
Comentário:
O conto possui uma forte carga dramática, e me manteve, como leitor, num estado de tristeza e pena (pela mulher) do início ao fim. Está muito bem escrito, e possui um enredo sólido e uma temática pesada. Gostei! Vamos por partes.
Pra começar, senti uma forte crítica social por parte do autor (a). Tive a impressão de que a ambientação numa época antiga foi apenas um pretexto para expor uma sociedade atual machista e misógina. Acho que a frase-chave do conto, que resume praticamente todos os acontecimentos da vida da protagonista é: “Faltava pouco para que, os melhores que Jesus, jogassem pedras sobre mim.”
Enfim, concordo plenamente com a crítica, que foi bem construída, de forma sutil, mas presente.
O enredo, como falei, é triste e deprimente. Acompanhar a trajetória da mulher foi uma tarefa árdua, pois a forma como você escreveu nos coloca, com muita habilidade, no lugar da personagem. O fim, chega quebrando o clima de tristeza e traz uma mensagem positiva. Gostei muito do trecho final.
A escrita é hábil, tecnicamente e gramaticalmente.
Enfim, bom trabalho! Parabéns e boa sorte!
Car(x) autor(x)
Estou aproveitando esse desafio para desenvolver um sistema de avaliação um pouco mais técnico (mas não menos subjetivo). No geral, ele constitui nas três categorias propostas no tópico de avaliação: técnica, criatividade e impacto. A primeira refere-se à forma, à maneira com a qual x autor(x) escreve, desde o uso de pontuação, passando por ortografia e mesmo escolhas de estruturação. A segunda refere-se ao conteúdo, ou seja, a que o conto remete e quais as reflexões que podem ser levantadas a partir disso. Por fim, a terceira refere-se ao estilo, quais as imagens construídas e as emoções que elas evocam. Gostaria de pontuar, também, que, muitas vezes, esses critérios têm pontos de intercessão entre si, sendo que uma simples palavra pode afetar dois ou mesmo três deles. A pontuação final é dada, portanto, pela média dos três critérios, sendo que uma nota elevada em um deles pode elevar a nota final. Dito isso, prossigamos à avaliação.
Resumo: A história de uma mulher que tem sua vida destruída em um lugar onde a moral conservadora e hipócrita reina. À despeito dela própria não quebrar quaisquer das “regras” estabelecidas, sofre as consequências.
Técnica: Senti, na maior parte, que os parágrafos e períodos do texto foram demasiadamente longos, prejudicando a cadência do texto. Isso, somado a alguns problemas de paralelismo, prejudicaram a leitura no início. X autor(x), no entanto, melhorou a narrativa conforme o conto foi avançando proporcionando, inclusive, algumas construção frasáticas muito interessantes. O parágrafo final, no entanto, é extremamente desnecessário, arrancando pontos cruciais do conto.
Criatividade: A discussão proposta pelo texto é, ao mesmo tempo, bastante atual e atemporal. O estabelecimento de padrões de comportamento baseados em papeis de gênero é um problema sério que gera graves consequências na sociedade. O texto apresenta esse tema aos poucos, construindo a trama lentamente em direção ao clímax. Uma vez lá, a leitura atrai quem lê, fazendo mergulhar nos dramas da personagem principal.
Impacto: A construção da empatia para com a personagem principal é muito bem feita. Ela é apresentada como uma pessoa comum, e, pouco a pouco, as injustiças orquestradas contra ela são apresentadas. O narrador faz isso de forma neutra, deixando o julgamento à responsabilidade de quem lê (como deve ser). No final, no entanto, acho que x autor(x) falha em dar um final feliz, já que o fechamento da trama no absoluto abismo faria mais sentido ao considerar a direção que o conto parecia tomar assim como traria um sentimento catártico muito mais intenso a quem lê.
RESUMO:
Mulher apaixonada por leitura e poesia, estuda, mas ao se casar, acaba por desistir de sua paixão. Perde um filho ainda por nascer, mas depois engravida novamente e nasce o filho Jeremias. Pouco depois, mais uma gravidez. Surgem boatos de uma provável traição do marido. Acidentes inesperados começam a acontecer, levando a jovem mãe a temer pela sua vida. Uma armadilha provoca a maledicência das pessoas a sua volta, que a chamam de pecadora, e ela é enxotada pela própria família. Se vê na rua, com um filho pequeno na mão e outro ainda na barriga. Resolve que o melhor destino é a morte no rio. Ao tentar se afogar junto ao filho, acaba encontrando um ser fantástico, uma santa talvez, que lhe socorre. Vai morar no morro, onde leciona e conhece José, com quem tem mais filhos e cria raízes. No final, sabe-se que está morta e que encontrou seus amados em outro plano.
AVALIAÇÃO:
A narrativa é bastante simples, mas nem por isso falta-lhe atrativos. Muito pelo contrário, a história prende a atenção do começo ao fim.
Há poucas falhas de revisão, como em:
– Meus pais lhes deram > Meus pais LHE deram
– Sem garfos e sem calda > Sem garfos e sem CAUDA
Há uma mescla de realidade crível com fantasia, seres fantásticos como o Dindo que era um ser Tritão, que a salvou quando menina no mesmo rio. Não sei se havia a necessidade de dar aquela explicação no último parágrafo. Tudo bem que acalmou meu coração saber que a protagonista/narradora teve um final feliz, mas tirou o impacto do final da narrativa.
O ritmo é constante, e a leitura flui como um rio que convida a sonhar e não a se afogar.
Parabéns pela sua participação no último desafio do ano. Feliz Natal e um 2020 cheio de alegrias. 🙂
A Pecadora
Resumo:
Espiral de desespero. Mulher que parece tudo ter, entra numa espiral de desespero e acaba morrendo afogada – ou parte para outro plano, como quis o autor. O desespero é a tônica do conto, o desamparo e a falta de proteção.
Comentários:
Cara Emma Bovary,
Fiquei buscando em seu conto durante a leitura, uma virada qualquer, só que não. Durante todo o conto subleva-se a ideia de que a personagem deve sucumbir solenemente a tudo e a todos. E todos são maus, perversos, desamorosos.
Busquei um propósito a isso e não encontrei. Não há a fórmula da salvação, da redenção ou do recomeço. Seu conto traz consigo a ideia definida de que a personagem sucumbirá, e você assim o faz, dando a ela uma segunda chance apenas em outro plano.
Fico em dúvida se isso estimula a leitura, uma vez que o leitor vai sendo lentamente jogado, frase a frase, no desespero da personagem, sem perspectiva de salvação.
Não a vi como a Senhora Bovary, que tem uma vida simples, depois de fausto e amores, é vítima de suas próprias trapaças, e acaba no desespero da morte por envenenamento, praticada por ela mesma. Com a sua personagem central, ao contrário, em nenhum momento há o suspiro, o gozo, a vida, que há na Bovary de Flaubert.
Minha análise está, neste ponto, baseada puramente na repercussão do conto diante do leitor, não do conto em si, como foi escrito, que está correto quando cumpre o desejo de lançar a todos numa longa espiral de desespero.
Se posso recomendar alguma coisa, diria que o conto deveria ser trabalhado no sentido de dar à personagem central algum sentido de luta contra aquilo que a faz sucumbir. Ela sucumbe, não luta, aceita e vai descendo, descendo em direção à morte. Creio que faltou o estímulo certo que faria o leitor se apaixonar pela personagem, que tão fraca, torna-se sem estímulo.
Boa sorte no desafio.