“Vai?”
“Não sei, estou pensando…”
“Com direito a tudo… vai?”
“Bem, assim é diferente… mas quanto?”
“Vamos, velho… não posso ficar perdendo tempo…”
A garota era alta e magra, usava uma saia curtíssima sobre sapatos azuis de saltos longos e tortos que encompridavam suas pernas fazendo-a parecer um galgo sobre as patas traseiras, desorientado numa fantasia de puta. Se especializara em palavras lascivas e palavrões que imaginava excitar: meter, foder, enfiar, chupar, lamber. Palavras que bem combinadas faziam os clientes ceder aos desejos.
Dioguito Vilaplana cedeu, aceitou. Mulherengo, melífluo e sedutoramente infame. Era um cirurgião de larga experiência. Sempre disposto a regatear o preço, baixar as condições de uso, desvaler o material, depreciar ao desconforto quando na verdade queria muito estar com a garota que se vendia por qualquer preço. Sempre acabava comprando qualquer uma, fosse jovem, velha, feia, bonita, um monstro: tinha o jeito de um junta-cadáveres.
Com a idade que tinha, nada seria novidade ou de exótico interesse. Queria o que sempre quis, e isso nunca mudou, na forma, no cheiro, na aparência ou na geometria espacial: tudo cartesiano nas regras e vitruviano nas formas; só variante a geografia. Nada parecia valer uma escolha decente: “Vai?”. Ele ia. Gostava da conquista lasciva, da conversa idiota, tudo com dinheiro vivo, que era quando o jogo ficava a seu favor na contraluz da Frei Caneca.
Um dia era cobrado um preço regateado que acabava custando caro, lesado por uma menina, uma bandida com seios agigantados e saia diminuta. Não dava muita importância a isso, pois no saldo das contas finais, sempre ficava o gosto doce-azedo e o inominável prazer da coisa feita, mesmo que só lhe sobrasse a amargura de acordar sozinho numa espelunca de onde nem a fachada conhecia.
Dioguito era preparado nos vícios da alcova. Havia comprado na Rua dos Inválidos um jeitoso apartamento que, decorado com os adornos da lascívia, servia de apoio aos encontros de prazer. Era para lá que levava as suas meninas. Uma cama redonda sempre limpa, um espelho descascado no teto, revistas eróticas bem coloridas, fotonovelas para quando batesse o tédio na garota, esmaltes para as unhas e, vistoso na parede, o retrato de uma tal de Neide ao seu lado num bordel em Belo Horizonte, lá pelo fim dos anos 50, quando ainda era um iniciante na arte da conquista feita com os bolsos.
Em um dia chuvoso e de baixa clientela, aceitou um preço irrisório, quase liquidação, e foi direto ao apartamento carregando a morena que conquistara sua carteira e coração. Exigiu preliminares e alongou o prazer passeando pelado pelo apartamento, mostrando sem timidez os desastres dos anos. Olhou longamente o retrato de Neide na parede e teve consumadas lembranças de dias mais vigorosos. Envelhecera. Voltou à morena, trocou beijos lambidos, tossiu um pouco pela perda do fôlego, mas sabia que ali era senhor, podendo mostrar os anos de experiência: não tinha mais a sofreguidão da juventude que só atrapalhava o serviço. Achava que as preliminares eram a parte mais importante da conquista, visto que não exigiam tanto dos pulmões arruinados pelos cigarros.
Seguiram noite adentro no luxurioso diálogo do prazer, onde os fartos seios da morena eram os mais oferecidos à continuidade das demandas, sem falar do belíssimo traseiro, sobre o qual Dioguito, em momentos de maior afoiteza, quase precipitou: “Retaguarda régia nas lutas do prazer”, sussurrou após conter o fluxo que conspirava contra a largueza das preliminares. “Ancas tão bem definidas que mais parecem a garupa de uma égua.”
Não parecia chegada a hora para a morena, que trancafiava sua moita de pelos por baixo da calcinha de castidade, por tudo excitante, segura e salva das incursões venturosas de Dioguito Vilaplana.
Lábios carnudos recortados por batom vermelho e leve buço, livres de expressarem com palavras tristezas ou alegrias, sorviam por tempo quase infinito. Dioguito detinha ou afastava a morena na ânsia de não capitular ao prazer. Era uma competência que nunca imaginara e estava ali, na morena, toda sua a preço irrisório.
Estava perto, bem perto, quase tudo conquistado, mas a morena houve por bem dizer não. Não queria ir adiante, nada mais consumar. Partiu deixando o infeliz em desespero a sonhar com a parte que não houve. Uma infeliz imprevisão, uma realidade profissional que desconhecia, enfim, uma ousadia que só cabia na morena que conhecia seu potencial.
Não esquecera da morena. Era coisa que não se resolveria enquanto não fosse vencida: se apaixonara. O desgraçado caíra de profissional a aprendiz quando sucumbiu à paixão. A coisa se acelerou e foi crescendo sem domínio. Procurava a morena por todo canto que conhecia: alcovas, bordéis e ruas, até que um dia: “Vai?”. Olhou apertando os olhos míopes e viu que era a sua morena.
Tudo era diferente, se conheciam, tinham as intimidades que facilitavam, e na cabeça de Dioguito, a morena já vivia livre e feliz, transitando pelos caminhos do pleno conforto. O acerto era com direito a tudo, e deitou-lhe as duras e desejadas nádegas. Passeou as mãos pelo dorso da morena e o trabalhou com carícias quando, por fim, depositou seus desejos até consumar-se o intento com a fúria que os anos permitiam e os pulmões tisnados pelos cigarros podiam aguentar.
Mas é certo que as coisas não param aí, agora, com mais intimidade, as mãos de Dioguito desprenderam-se das ancas da morena e caminharam roçando seu seios, seu ventre, seus pelos e, encontrando pernas relaxadas, tocou a morena com intimidade até encontrar o que nunca imaginara.
“Agora foi feito”, disse ela enquanto deixava o apartamento, carregando nas mãos sapatos vermelhos de saltos finos.
Dioguito Vilaplana corou. Uma exceção às regras mais rígidas, enfim, quebradas sem culpas, ou pela culpa de um desejo enceguecido. Mas que diabo, essas coisas não acabam assim. Aquelas curvas, aqueles lábios, aquele jeito atrevido e toda aquela poesia feita de carne morena haviam despertado segredos até então desconhecidos na alma de Dioguito. Ele se apaixonara por um homem, e com isso quebrara a regra mais relevante. Voltou a perambular pelas ruas e bordeis em busca da morena.
“Vai?”
“Vim oferecer meus serviços”, disse Dioguito Vilaplana à morena.
Primeiro veio a anestesia geral, que apagou a morena em direção ao túnel escuro e incerto dos sonhos de uma nova vida. Depois veio o corte emasculante, como se dela tirasse um apêndice, causa de dúvidas e espantos. O resto ficou por conta do agrado: separou as partes sensíveis, criou lábios, armou um longo repositório e estava tudo ajeitado. Era agora uma morena de verdade, posta em conformidade com a pele que vestia pelas ruas para viver de prazer. Preparava seu futuro amoroso fazendo e refazendo tudo a seu modo e gosto, um artista esculpindo em carne a musa de seus desejos.
Coisas pequeninas estavam ainda por resolver e organizar, pois não se passa assim, de um instante para o outro, por baixo da curva do arco-íris. E assim foi feito por algum tempo, onde tudo eram cuidados, esmeros e recursos. Dioguito remoçara. Não havia mais o que esquecer no passado. Era uma bela morena de verdade e era sua, pronta e acabada para se instalar no apartamento da Rua dos Inválidos, lugar de apenas uma mulher, a sua morena esculpida.
Jogou fora seus cadernos de encontros, tirou o espelho do teto e a cama redonda ganhou quatro ângulos retos. Sumiram as revistas que distraíam e o retrato da tal de Neide foi posto atrás de uma cômoda, virado em direção à parede para que não presenciasse a felicidade que chegava. O local de perdição e luxúria era agora o santuário de Dioguito Vilaplana e senhora, a mulher do cirurgião, escultor de corpos e felicidades.
Tudo correu bem por um tempo, como planejado. Mas as coisas não se ajustaram tanto assim: a morena nunca estava em seus melhores dias. Dizia que os ângulos retos da cama a intimidavam, sentia falta do espelho no teto, e chegou a dizer que a moça Neide do retrato era quase da família; queria-o de volta, queria olhá-lo de vez em quando, lembrar de um tempo que não viveu.
A morena tentava inúteis gentilezas: deitada na cama com Dioguito sobre ela, olhava o teto enquanto ele se divertia em solavancos ralando seu cóccix no colchão. Piscava em direção ao nada com repugnância enquanto mantinha dele uma certa distância empurrando seus ombros para que não a beijasse na boca. Ganhou um colar de ouro, um broche com camafeu e até uma medalhinha de são Judas Tadeu, o santo das causas perdidas, só para ajudar. Dioguito definhava sentindo a distância de sua morena escultural.
Chegaram ao limite do tédio quando foram passear em Caxambu. Queriam beber da água ferruginosa para ver se aquilo ajudava e não ajudou. Passearam pelos parques, tomaram sorvete e comeram pipoca e ao final de uma semana de impotente volúpia, retornaram ao Rio de Janeiro como se de lá não tivessem saído. Dioguito Vilaplana entristecia e a morena morria de tédio.
Dioguito levou a morena para ver as amigas pelas ruas e foram juntos aos bordeis. Experimentaram a três, a quatro, a cinco, a seis e nada adiantou. Dioguito só queria a dois, só a morena. Já via aquilo tudo como licencioso, pecaminoso, sentia que em meio àquele turbilhão de mulheres de sua vida só havia encontrado uma mulher, porque todas eram iguais, uma fila de repetições; e disso só se deu conta pela sutil diferença de sua morena, a mulher que não era. De todas que experimentara, a melhor, a única, a verdadeira mulher que procurava. Nada resolvia e a felicidade de ambos não conseguia ficar de pé. Um dia, enfim, a morena sentenciou:
“Quero meu pau de volta!”
Dioguito quase enlouqueceu, pois sabia que isso não se devolve, não há jeito. Sentou a morena no sofá, trouxe um café quente que dividiu com ela bebendo junto e explicou com detalhes as variantes da contrafação, que eram muitas: havia a imitação, a paródia, o fingimento, a mímica e a dissimulação. Havia outras das quais nem quis falar. Mas arremedo de mulher, depois de cortado o apêndice malquerido, não tinha jeito, não que soubesse; talvez a ciência, um dia… mas por agora, tinha que ficar assim, um côncavo, um vazio, uma impossibilidade, que aproveitasse como pudesse.
A morena pegou uma garrafa de grapa e foi ficando pelo sofá, caída, bebendo, entristecida. Tomou uma, depois outra e mais outra. Dioguito Vilaplana botou na vitrola um disco ao gosto da morena. Em total silêncio, só pigarreava entre as faixas do disco para não incomodar os devaneios da sua escultura, que parecia pensar profundamente em coisa alguma, no nada que a grapa lhe permitia. Ouvia o silêncio com atenção e sentiu que a morena gostara do brilho úmido e transparente da garrafa.
Brotaria a esperança, a compreensão do fato irrevogável, diziam seus desejos e os olhos tristes da amante, fixados no insondável, no côncavo e no convexo das lembranças. Virou algumas vezes o disco, que alternava seguidamente entre o lado A e o lado B, como se tentasse iludir a morena com seus dois lados em luta. Entre um copo e outro da grapa, ela soltava um “Quero meu pau de volta!”, recorrente e inamistoso, pastoso e reticente. Dormiu por ali mesmo, jogada no sofá, amolecida pelo álcool e pelo brilho luminoso da garrafa.
“Que seja assim, que durma e se recomponha em sua roupa de mulher”, pensava ele, que não sabia que uma noite é apenas um suspiro que separa em dois um grande desespero, e logo pela manhã deu-se conta da verdadeira pele que vestia a morena, pois nem tudo que ela possuía da antiga vida lhe fora tirado, sobravam os músculos e os tendões que não se pode retirar de um corpo. Com a força de um homem que sempre fora, deu nele uma porretada com o rolo de macarrão, apenas uma, certeira. Quatrocentos quilos de força bruta vagando em curva no espaço vazio em direção ao crânio de Dioguito.
“Vim oferecer meus serviços”, disse a morena.
Enlouquecida e com o marido nu deitado sobre a mesa de jantar, deu nele um único corte que os colocou em obliqua igualdade de gênero. Terminada a cirurgia, a louca da Rua dos Inválidos correu até a janela e jogou-se abaixo, cinco andares de puro nada, levando preso à mão o que julgava seu por direito, que lhe fora roubado por Dioguito Vilaplana num momento de estupidez e fraqueza.
Na sala ficou só o marido, e de seu corte não jorrava uma gotinha de nada: a força da morena fora tanta que já o havia matado com o único golpe que dera. Morto em definitivo e no conforto do frio eterno e sem volta, por expressa e incomum concessão divina, Dioguito continuava pensando sobre os segredos que existem acerca do arco-íris e das artes do bisturi que bem manejava.
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