EntreContos

Detox Literário.

Ciclo Lúcido – Conto (Fernando Kracheski)

— Ahh, e pensar que tenho um monte de coisa pra fazer hoje — diz Ricardo a si mesmo enquanto está se sentando na cama, se espreguiçando. — Ué, quem trancou a porta?

Se levanta um pouco preocupado, uma vez que mora sozinho. A porta está trancada. O celular exibe horário de atraso. — Como é que vou ir trabalhar hoje? — A porta é do tipo que abre em direção ao seu próprio quarto, para dentro. Não tem como arrombar. A menos que se puxe com muita força para o sentindo interior.

Vagando pelo seu quarto nem organizado nem bagunçado, refletindo um evento esotérico…

— Mano — estendeu a nasal —, tô assustado… Não ventou nada essa noite que eu sei. Se tivesse ventado e a porta tivesse fechado sozinha, eu ainda abriria, porque não estaria trancada; tsc, óbvio. Puts, a chave sempre fica do lado de dentro, e agora sumiu. E a porta tá trancada. Quem entraria aqui e pra quê? Mas que porra é essa…? — lançou uma risada irônica e cogitou — Talvez eu esteja num sonho lúcido.

Impossível, como ele sabe?

— Quem é?

Oi…

— Oi…? Eu tenho arma aqui seu filho da puta.

Isso nunca aconteceu antes. Não consigo entender. Seu nome é Ricardo, estou certo?

— O que é que nunca aconteceu antes? E como você sabe meu nome?

É… agora adquiri a confirmação. Ricardo, isso não era para ter sido desse jeito, e não consigo dizer porque está sendo desse jeito.

— Aonde você tá e que merda você tá falando?

Você é o protagonista de um conto. Eu sou o narrador. Você está dentro de um sonho lúcido. Na realidade, parece que a partir do momento que me surpreendi com o fato de você ter analisado tal possibilidade, você acabou se tornando consciente da minha presença.

— Como assim, cara? Você tá dizendo que eu sou um personagem? E porra, tu fala muito igual professor!

É o que parece. E depois disso, sou um narrador; o que mais você poderia esperar de mim?

— Mano, que se foda essa porra. Abre a porta porque eu preciso trabalhar!

Não posso fazer isso. Isso é contra as regras.

— Que regras?

As regras de um conto.

— Como assim, mano?

Um conto é uma narrativa onde, a grosso modo, tem apenas um conflito. É rápido; objetivo. Funciona como a surpresa de um lampejo iminente, o efêmero de uma centelha discernível, o pulsar imprevisivelmente padronizado e sequencial de um monitor cardíaco. Obviamente, tudo que se baseia na arte possui muitas interpretações, principalmente subjetivas. Normalmente, têm algumas limitações por conta de sua rapidez. Se eu abrir a porta para você, você terá um mundo pela frente que estará fora dos limites do conto. Me desculpe, mas esse é o seu destino.

— Que bosta de conto, hein? Quer dizer que vou ficar trancado aqui? E eu devo tá ficando doido, não acredito que tô conversando com o chão, ou parede, sei lá.

Um narrador. Não me compare com tais trivialidades. Eu havia planejado algo diferente para você, mas a eventualidade das circunstâncias evidentemente causou uma mudança repentina.

— Espera! Você pode fazer o que quiser, né? É… por exemplo, se você quiser fazer algo diferente nesse quarto, você tem o poder!

Contanto que esteja dentro das regras.

— Se eu não posso sair desse quarto, então trás as coisas aqui, ué. Olha, foi mal aí, acho que fui mal-educado antes. É que tipo… tem uma cantora que sempre achei uma gostosa. Acho que é meio clichê, mas curto demais a Rihanna.

Esqueceu que a porta está trancada pelo lado de fora? E quem deveria abrir não era a Rihanna.

— E daí, cara? Pensa comigo, esse vai ser o melhor conto da sua vida, porque tudo vai ser imprevisível. Pensa que nós dois tamo decidindo aqui o que vai ser, entende?

De fato, considerando que até o momento você é o único personagem existente, a inclusão de um novo estaria dentro do protocolo predeterminado.

“Ricardo se senta na cama e ali permanece”.

— Que droga foi essa mano? Do nada não sei o que aconteceu comigo…

Interessante. Parece que consigo enviar ordens irrefutáveis por meio das aspas duplas.

A porta se destranca lentamente pelo lado de fora, como se houvesse dificuldade em girar a chave no trinco velho. Quando a porta se abre, Ricardo está absolutamente perplexo e estupefato com a pessoa que aparece no quarto; a sua angelical e desejada Rihanna. Ela o ataca com sua boca sem qualquer aviso prévio, e não pretende recuar em suas investidas graduais. Não foi necessário muito tempo para que ambos estivessem se divertindo dentro do que era esperado por Ricardo. Estranhamente, não houve interação linguística. Ricardo havia pensado nas dificuldades linguísticas, mas acabou esquecendo do fato de que está dentro de uma história e que conseguiria se comunicar com sua deusa, de algum modo.

Foi o melhor dia da vida de Ricardo, e nem precisou sair de seu quarto. Da mesma forma súbita que Rihanna entrou, também saiu do quarto e trancou a porta novamente pelo lado de fora. Ricardo não se importou com esse fato. Afinal, como é bom quando a vida decide entregar as coisas mais facilmente; de bandeja, observou Ricardo.

— Não pensei nada dessa bosta aí, não.

“Ricardo subitamente decide dar um soco em sua própria cara”.

— Aí! Porra! Tá bom cara, se prefere acreditar que eu pensei naquilo, beleza! Ah… mas foi louco, hein, parceiro? Nem acredito que peguei a Rihanna, hahahaha! Foi muito louco! Mas aí, que tal você deixar eu sair do quarto?

Não posso fazer isso.

— Por quê?

Regras são regras.

— Quem criou essas regras, mano? E cara, vou te dar uma dica da hora: quebrar as regras também é importante! Quando você quebra as regras, demonstra que você compreende elas, mas não aceita! E é quebrando as regras que o mundo muda, tá ligado?

Se eu fizer isso, não vou necessariamente sair dos limites do conto, mas não são boas práticas. Por outro lado, tenho que admitir que o que está acontecendo agora é diferente do que já fiz.

— Já te falei, mano! Quebrar as regras. Além disso, você precisa aprender a lidar com o momento. Não é só planejar. Às vezes acontece alguma coisa aqui e ali e você acaba tendo que agir diferente do que foi planejado!

~Teletransporte~

— Que… lugar é esse…?

Dojima, Osaka. 1712. Ricardo, você está exatamente onde daqui alguns anos surgirá a famosa Bolsa de Arroz de Dojima, o primeiro mercado futuro do mundo. Basicamente, é onde os japoneses negociam arroz.

— Mano, não tô entendendo nada! E os caras tão usando umas roupa muito zuada e correndo que nem louco. Tem uns com uns roupão de banho, outros com uma capa de bujão. Me tira daqui, maluco!

Não gostou?

— Me tira daqui logo!!

~Teletransporte~

— Droga! De novo no meu quarto?

Sou um Ser extremamente metódico e sistemático. Deixo de lado as regras e as boas práticas, e você apenas desfere reclamações em relação a minha pessoa? Quanta ingratidão.

— Vai se fuder, porra. Eu só quero ir trabalhar e você fica aí falando de regras. Quem vai pagar minhas contas? E por que você trocou a porta do meu quarto pra um… cofre? O que é aquilo e o que aconteceu?

Uma certificação necessária de que você não vai tentar nada imprudente.

— Se você pode fazer o que quiser comigo, por que ainda colocou uma porta de aço daquelas?

Nunca se sabe.

— Você é doente, mano! Fica preso demais em regras, planejamentos. Acho que o que você tem mesmo é medo do que a galera vai pensar de você! Seu cagão! Isso que você é: um bosta!

Ótimo. Você me irritou. Não me importo com absolutamente mais nada a partir de agora.

~Teletransporte~

Ricardo, agora fascinado, não consegue acreditar no que está vendo. Nunca ousou imaginar tocar seus pés em tal lugar: Castelo Neuschwanstein, Alemanha. O interior possui uma atmosfera luxuosa, medieval, religiosa, mas com uma alteração curiosa, também possui uma perspectiva de bordel: janelas com cortinas blecaute e luzes de baixa luminosidade e cores fortes, como vermelho, roxo e dourado, meticulosamente espalhadas pelos cantos, embora na penumbra existente entre elas formasse cores mais escuras e matizes confusas. Após muita contemplação, Ricardo está observando com curiosidade as montanhas pela janela após ter empurrado o lado esquerdo da cortina com as mãos, segurando-a, deixando muita luz externa penetrar o ambiente, alterando-o com demasiada intensidade. A porta principal do quarto se abre, e três mulheres seminuas invadem o quarto com delicadeza e ousadia. Ricardo solta a cortina e o ambiente retoma sua luminosidade e forma original.

— Você que é o Ricardo? — perguntou a loira do grupo. Havia um tom de doce liderança e firmeza em sua voz, mas bem posicionado em si mesma; como se não desejasse ser agressivamente invasiva ou categórica. O reflexo da verdadeira autoconfiança.

— Opa, eu mesmo!

Uma asiática já estava retirando as roupas de Ricardo. Em nenhum momento disse se quer uma palavra. Uma moça misteriosa. Um mistério que causa vontade de descobrir o que há por trás. Assim que separou os botões da camisa de Ricardo, acariciava seu abdômen com delicadeza e lentidão, como se estivesse estudando-o com cobiça.

— Eu nem acredito que tô aqui com O Ricardo! A gente vai cuidar direitinho de você hoje, tá? — sussurrou no ouvido a terceira mulher. Sua voz era bem fina e delicada; era natural sentir uma serenidade muscular com tal sussurro. Seu cabelo era castanho-escuro encaracolado; sua pele era meio termo entre clara e escura.

Pode-se dizer que, embora Rihanna fosse seu fetiche pessoal, Ricardo teve, mais uma vez, um momento único na sua vida. Todas as três garotas eram bastante liberais. Inclusive, precisaram sugerir algumas coisas para ele (com exceção da oriental), visto que ele se comportava de maneira muito previsível e dentro dos padrões; não era tão interessante para elas, e como era três para um, Ricardo sentiu-se na posição de simplesmente aceitar o que precisaria acontecer. Passou por várias experiências novas num curto espaço de tempo.

— A gente tá indo agora, tá? Depois vem conversar um pouquinho com a gente. Nós vamos tomar um banho no Grande Salão.

— Ah… tá. Vou lá sim, deixa comigo! — Ricardo só concordou e esqueceu de tudo que estava acontecendo de fato. Estava com um sorriso bobo deitado na cama olhando em direção a grande porta amadeirada para ver elas saindo. Talvez pela última vez.

Ricardo, preciso dizer algo para você.

— Ah, você de novo…

Nesse mundo, você já deve saber que tudo tem um fim, certo? Você acabou de ter um momento esplêndido e fervoroso, e agora elas foram embora.

— Onde você quer chegar?

Isso é um conto; uma narrativa. É necessário um fim.

— Ah, não! Mas tava tão bom!! Me manda pra mais alguns lugar, sei lá. Quero conhecer Paris, Egito, aquela torre torta, o Coliseu, alguma praia de rico. Não termina agora não, pô!

Eu já passei dos limites, Ricardo. Eu só estou te avisando porque quero dar a você a possibilidade de decidirmos juntos o que vamos fazer. Escolha um lugar que você quer ir e o que deseja fazer.

— Ah… cara… tô lembrando de um episódio do Simpsons, sabe? Aquele que dizem pro Homer que ele vai morrer, e ele faz uma lista do que quer fazer antes de morrer. Se bem me lembro, um dos desejos dele foi plantar uma árvore. Quando você fala assim parece que vou morrer.

Essa é a realidade da existência que não podemos negar, Ricardo. O fim é o fim. Você pode interpretá-lo da maneira que quiser, mas fatos são fatos. O fim faz parte da realidade e é inevitável.

— Aff, que bosta. Bom, fazer o quê, né?

E então?

— E então o quê?

O que quer, onde quer ir, precisamos estabelecer um fim.

— Ah, verdade! Hmm… bom, já tô cheio de sexo por hoje. E visitei um lugar de ricão. Sei lá… Deixa eu pensar. Ah! Vai ser meio estranho, mas é isso: eu sempre achei muito legal a ideia de cidades subaquáticas. Até o momento não existe nenhuma. Me manda pra um futuro distante que exista alguma e… eu quero ser o prefeito da cidade! Hahaha. Não! Melhor, quero ser algum famoso lá. Pode ser artista, cantor, empresário foda, qualquer coisa. E eu quero viver minha vida com muitas mulheres e dinheiro, e… acho que é isso.

Ok, se prepare para a sua última grande viagem.

~Teletransporte~

— Opa, Livermore! Como é que vão as coisas?

— Daquele jeito, Henry!

— Faz um tempo que não te vejo por aqui, hein? Por que você não senta com a gente? Queria aproveitar e discutir uma daquelas ideias interessantes em Morristown-

— De novo você com imóveis… Você sabe que não gosto muito desse ramo. Demora demais! E além disso fiquei sabendo que você só tem perdido dinheiro nisso aí. Comigo tem que ser rápido e com lote bem “carregado”, por isso estou onde estou. Enfim, quero ficar um pouco sozinho. A gente se vê, Henry.

Livermore se senta numa mesa isolada, no grande Hotel Sherry-Netherland em Nova Iorque, e pede dois old-fashioneds. Começa a falar sozinho. Todos estão muito ocupados com suas vidas e discussões a respeito de seus negócios lucrativos.

— O que você fez comigo? Esse hotel é bem foda, mas eu não conheço aquele cara e nem sei o que eu tava falando de verdade, é como se tivesse saído da minha cabeça. E não vejo nenhuma cidade subaquática. E por que eles me chamam de Livermore?

Calma. Por que tantas perguntas? Nem tudo precisa ser na ordem. Fique calmo em seu lugar e aguente mais um pouco aí. Tome sua bebida, por favor.

— Bom, você fez várias coisas pra mim hoje, então vou ficar aqui esperando. Até que o lugar é da hora.

“Livermore decide ir ao banheiro pequeno com espaço apenas para uma pessoa. Não se sente muito bem. Ele tranca a porta e se senta na privada. Começa a chorar.”

— Ei… o que é isso…? E por que tô chorando, cara? Tô sentindo como se tivesse um peso enorme nas costas… Falta de ar…

Tem uma pequena carta no bolso interno esquerdo do seu terno. Pegue e leia.

— Ok… — Livermore, todo desajeitado, com uma mão na cabeça, limpando o suor frio, e a outra procurando a carta dentro de seu terno fino, começa a lê-la.

Meu amor, Nina: está fora do meu alcance.

Tudo tem dado apenas errado comigo. Estou cansado de tanto lutar.

Não consigo mais seguir em frente. Essa é a única saída.

Não possuo a dignidade de seu amor. Sou uma falha mesmo. Eu realmente sinto muito, mas não há outra escolha. Sinto muito.

De seu amor, Livermore.

— Ô, quem é Livermore? O que tá acontecendo, cara?

“Livermore chora enquanto olha para a carta que acabou de ler. Suas lágrimas escorrem de seu nariz e queixo e se deslocam em direção da carta, manchando algumas partes e distorcendo a configuração de algumas palavras.”

— Por que você tá fazendo isso, cara?

Você esqueceu que sou um narrador? E que ainda estamos num conto?

— Sim, mas e a cidade subaquática? Eu queria muito ver. Cara tô me sentindo meio pra baixo, faça que eu pare de chorar pelo menos.

Um conto precisa de um clímax, Livermore.

— Meu nome é Ricardo, caralho!

Você acha mesmo que alguém se interessaria em um conto cujo desfecho seria um final tão sem graça ao qual você sugeriu, tudo dando certo depois de tudo ter dado certo? Obviamente, ninguém iria sugerir um final diferente de um final feliz e agradável a si mesmo. De qualquer forma, eu sou o Narrador! E cabe apenas a mim tomar decisões aqui. Até parece que seria possível nós dois decidir o que vai acontecer. Aprenda uma coisa antes do que está por vir: o previsível é por definição, desinteressante.

“Livermore saca sua Beretta 418 importada do bolso frontal esquerdo de sua calça. Analisa um pouco sua pequena forma. Sua calça tem alguns pingos de suas lágrimas. Ele aponta a pistola debaixo do queixo, com seu gatilho apontado para o teto. Sente um frio na barriga e um arrepio na pele dos braços e costas.”

— Mano, foi mal, sério! Foi por que eu te xinguei antes? Foi mal mano, na moral. Para com isso, cara! Eu…

Sinto muito Livermore, mas regras são regras; um clímax é necessário.

“Livermore decididamente puxa o gatilho. O rastro foi debaixo de seu queixo até o outro lado de seu crânio, e o projétil se alojou na parede. Após seu sangue ter criado uma arte abstrata na parede atrás dele, seu corpo se inclinou indeliberadamente em direção a porta em sua frente, até que encostou sua testa na porta, escorregou para o lado direito, e caiu repousadamente no chão”

Sinto muito, Livermore… É assim que as coisas devem ser.

— Puta que pariu, que sonho do Satanás foi esse? — Ricardo acorda assustado, olha para os lados, ainda deitado na cama, e volta a olhar para o teto. — Ahh, e pensar que tenho um monte de coisa pra fazer hoje. — diz Ricardo a si mesmo enquanto está se sentando na cama, se espreguiçando — Ué, quem trancou a porta?

E Então? O que achou?

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Informação

Publicado às 22 de abril de 2019 por em Contos Off-Desafio e marcado .