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Detox Literário.

Zacarias: A Visita dos Parentes Conto (Angelo Rodrigues)

Era domingo pela manhã e eu falei pra minha Nataly: Nataly, tenho uma surpresa pra você; e Nataly deu um salto de lado, meio que assustada, e disse: Sai pra lá Zacarias, já vai fazer mais uma merda?; e eu respondi pra ela: Calmaê, querida, que não é nada disso, é que tenho que te confessar que eu tenho um lado rico na família, e é uma pena que esse lado rico não more aqui na Pavuna, porque ele mora lá em Ipanema, que é um lugar de gente bacana pra caramba; e então Nataly me perguntou: Que negócio é esse Zacarias? Lá vai você aprontar alguma merda com os bacanas da Zona Sul?; então eu fui logo falando pra ela: Né nada disso, querida, é que meus primos e meus tios estão vindo aí pra conhecer você; e ela, ainda meio assustada com as minhas origens desconhecidas e ainda por desconhecer, soltou um: Que que é isso, Zacarias!, conta essa merda direito; e eu contei pra ela, e foi assim: O meu avô José, que veio lá das Espanhas, um cara bem fodido lá dos Córgomos, do Norte da Espanha, duma terra que era só pedregulho e mato alto, que mais parecia com essa desgraça aqui da Pavuna, veio pra cá no início do século e fez um monte de filhos, todos vivendo no maior miserê, mas teve também uma filha, e essa deu sorte, e era a tia Maria, que casou com um sujeito verimportant, cheio da grana, gente fina, dez, e veio daí o lado rico da família, que agora vem no carrão deles pra imbicar aqui na Pavuna, e isso tudo só pra te conhecer, Nataly; e Nataly, que é parceirona demais, foi logo dizendo: Isso ainda vai dar merda, Zacarias, mas como eu sou tua parceirona, de fé, vou te ajudar mais uma vez nessa tua nova cagada; e foi aí que eu disse pra ela: Mas que cagada é essa que nada, querida, meu pessoal é tudo gente boa, parente do coração, e você sabe que com gente do coração não tem erro, tudo dez, bacana pra caramba; e então, foi quando Nataly me falou: Veja lá o que você vai me aprontar Zacarias; e parceirona como ela é, foi logo correndo uma vassoura pelo chão da casa que tava imundo pra caramba, parecendo uma terra de sapucaia, depois começou a lavar aquele mundo de pratos e panelas sobre a pia, que não via um pingo d’água há quase uma semana, e a casa, depois que eu troquei aquele barbantinho que segurava a porta do banheiro por uma tramela de pau, ficou um brinco de tão linda, toda arrumada, e Nataly, que tava mesmo à toa antes do meu povo chegar, sem nada pra continuar embelezando a casa, aproveitou pra meter um ferro quente com henê no cabelo, e aí ela ficou uma deusa, com aquele cabelão bonito, todo esticado, parecendo que um boi babão tinha lambido a cabeça dela, e logo depois veio me pedir maiores explicações, e eu fui logo dizendo da minha parentada: O tio Carlos, que é marido de tia Maria, irmã de papai…; e fui por aí afora, porque é tanta gente pobre que nem sei direito como isso começa ou termina, de irmão, de primo e um mundo desgraçado de tios e cunhados e sobrinhos, mas de tudo que disse a ela, sei que tio Carlos é dez, um sujeito bacana pra caramba e muito direito, respeitoso, que fez a fortuna que tem nos carteados e nos dados do Cassino da Urca e no Hotel Quitandinha, e que sempre conta pra todo mundo que sabe falar um monte de línguas e o que eu sei de verdade nesse tal mundo de línguas dele, é que tio Carlos de língua mesmo ele só usa pra fazer fiu-fiu pras garotas e lamber os beiços quando enche a cara de uísque e cerveja, mas que agora tava regenerado, sóbrio pra caramba, e logo chegaria com o primo Eduardo e a prima Cizinha, vindos do casarão que eles têm lá em Angra dos Reis, bem na praia, e de passagem pela Avenida Brasil vão dar um pulo aqui na Pavuna pra conhecer a minha querida Nataly, e Nataly, então, me olhou de canto de olho, e me falou: Zacarias, essa história tá esquisita demais, e ainda por cima vai acabar dando mais uma merda, porque esse teu tio deve ser um tremendo trambiqueiro com esse negócio de ganhar a vida em cassino enganando gente bêbada e otário; e eu, que não gosto que fale mal de parentes tão legais quanto os meus, fui logo falando pra ela, assim, de supetão: Nataly, nada disso, querida, deixa disso, que meus tios e meus primos são gente boa, bacana pra caramba, dez; e até fingi que tava aborrecido com ela, porque com parente legal como os meus não se deve pensar coisas assim, tão ruins, e foi só eu terminar de falar essas coisas pra Nataly, que o meu pessoal foi chegando, batendo o portão e gritando pelo meu nome: Zacarias! Zacarias! Gente boa! Chegamos!; e meu primo Eduardo, grande cara, chegando, foi logo dizendo: Zacarias, em que porra de lugar você foi se meter! Caralho, que lugar mais feio é esse? Não tinha um buraco melhor que esse pra você se meter?; e eu tratei de dar um troco nele mostrando um sorriso sem graça, porque não tinha mesmo o que dizer, porque a Pavuna é mesmo feia pra caramba, e fui logo dizendo, meio que sem jeito: Primo Eduardo, que saudade!; e ele nem me respondeu, porque saiu me empurrando, passou por mim sem dizer mais nada, correndo atrás dum banheiro, porque tava na roubada, numa hora ruim, apertado pra caramba por conta daquela viagem tão longa, e vi que ele tinha na mão um rolo de papel higiênico bonito e gordo, branquinho feito um fantasma, e logo em seguida, atrás dele, entrou meu tio Carlos, que já tá velho pra caramba, e foi logo dizendo pra mim: Maidiar Zacarias, quanto tempo!, e foi dando uns apertos na Nataly, mas aquilo não tinha problema não, porque tio Carlos já tá tão caído que nem dá pra ter ciúmes dele, e Nataly ficou animada com a graça do velho e tacou nele um beijo na bochecha fofa que ele tem que estalou longe, depois deu um sorriso pra mim e eu falei: É isso aí, querida, que família é família, vá em frente!; e o velho pareceu ficar ainda mais entusiasmado com aquilo, e foi dando um tabefe na bunda da Nataly, e eu falei: Olha o excesso, tio Carlos, que o coração não aguenta um mulherão como esse, e todo mundo riu, e logo em seguida meu primão Eduardo saiu do banheiro e falou pra todo mundo ouvir: Que porra de papel higiênico é aquele que você usa no teu banheiro, Zacarias, parece um rolo de fita de papel pra calculadora de mesa de tão fino e estreito que é, e é um perigo pros dedos e pras cuecas de um homem desprevenido, e se um bêbado entrar no teu banheiro pode até achar que caiu numa fossa de merda quando for limpar a bunda; e então ele começou uma conversa fiada com a prima Cizinha, que quase não dizia nada, mas olhava pra tudo, e eles ficaram rondando pelo meu quintal, e todo mundo foi pro quintal com eles, ver o que aqueles dois primos queridos faziam por lá, e ronda daqui, e ronda dali, e os dois começaram a cutucar o meu abacateiro, e toma de arrancar meus abacates e botar nas bolsas que trouxeram do carro, e carregar o que recolhiam pra mala do carro, e toma de atacar a minha hortinha, de encher as bolsas com minhas cenouras, minhas alfaces, e iam dizendo sem nem olhar pra minha cara porque só estavam interessados no que arrancavam do chão e das árvores, e a prima Cizinha acabou me falando: Que beleza, Zacarias, você tem aqui uma hortinha orgânica, que legal, tão bonita que dá até gosto; e toma de arrancar meus abacates, e toma de pegar minhas tangerinas, e até tiraram do pé uma jaca que eu já tava de olho nela de tão madurinha que a bicha tava, e fui ficando desesperado com aquilo, e pra não ver o que tava acontecendo, corri pra dentro de casa, e então encontrei por lá o tio Carlos, que tava deitado na minha cama, meu santuário de amor e descanso, e de repente, sem mais nem menos, um moleque da rua chegou com uma sacola trazendo um monte de garrafas de cerveja gelada que tio Carlos tinha pedido na tendinha do seu Zaqueu, e falou pra mim, sem nem pestanejar: Que bom que tem aqui na tendinha uma boa gelada, e bota tudo na conta do maidiar Zacarias, meu pretinho, que ele é dez; e o primo Eduardo que vinha chegando com uma das minhas abóboras gigantes nas mãos, falou: Papai, pare com isso que o senhor não pode mais beber; e aproveitou a deixa pra pegar dois copos e ele e tio Carlos continuaram a encher a cara, e minha tia Maria, que tinha ficado no carro porque sentia nojo daquele lugar, do lugar que queria esquecer porque tinha passado ali a infância toda, foi chegando como uma pata velha e manca, remando, e disse pra mim: Zacarias, meu querido, como está sua mãe?; e eu falei pra ela: Mamãe tá morta tia Maria; e ela tratou de dizer que precisava muito falar com ela, que tinha uns novos pontos de tricô que queria ensinar pra ela, e eu nem falei nada, porque tia Maria parecia que tava ficando gagá mesmo, e aí ela mudou de assunto e me disse: Pede pra tua empregada fazer um chá de hibiscos pra mim, Zacarias, que hoje eu não estou muito supimpa, estou que não me aguento com essa viagem do nosso casarão de Angra dos Reis até Ipanema; e falou isso tudo enquanto olhava pra minha Nataly, e Nataly me chamou num canto e me disse com toda delicadeza do mundo: Zacarias, me segura antes que eu encha essa velha de porrada, ou faça pra ela um chá de picão com urtiga, e me segura senão eu dou uma vassourada nela, escolhe logo o que eu devo fazer que a coisa tá ficando preta; e eu disse pra ela, com toda calma: Calmaê, Nataly querida, que é tudo família; e ela, que já tava pelas pontas, me disse: Você escolhe, ou você acerta o passo dessa gente ou chuto esse povo filho da puta da minha casa; e eu, sem nem saber muito bem o que dizer pra ela, só conseguia dizer: Tenha calma, Nataly, tenha calma; mas isso não adiantava muito porque a prima Cizinha, que o povo dizia que vivia dando pra todo mundo, tava zanzando pelo quintal, enchendo as bolsas de tudo que a gente tinha, e a cervejada rolando na minha varanda e as bolsas deles estavam ficando cada vez mais cheias, e a mala do carro cada vez mais abarrotada com as coisas da minha horta, e o moleque do seu Zaqueu retornou da tendinha com outra sacola de cervejas, e me disse: Seu Zacharias, teu tio Carlos tá botando tudo na tua conta lá na tendinha, e agora ele me mandou trazer uns bolinhos de bacalhau que ele pediu pra seu Zaqueu fazer; e Nataly, que já tava desesperada, começou a empurrar a tia Maria pra fora da casa dizendo a ela: Sai pra lá velha maluca, e leva embora esse bando de cupins; e tia Maria sem entender bem o que tava acontecendo, coitada, do alto dos seus setenta e tantos nas costas, caduca pra caramba, meteu o dedo na cara da Nataly e foi logo dizendo: Zacarias, vê se dá um jeito nessa tua empregada que ela é uma tremenda duma grossa, uma maluca sem educação, essa pretinha, que não vale nada; e meu tio Carlos aproveitou aquele bate-boca e começou a rir, e aproveitou também pra novamente meter um tabefe na bunda da Nataly, e foi logo dizendo, tentando apaziguar os ânimos: Teiquirisimaidiar Maria, tenha calma que aqui todo mundo é gente boa, né mesmo meu Zaca?; e aproveitou pra encher o copo de cerveja que tava vazio na sua mão, e eu não sabia mais o que fazer, e os pés-de-tudo, de couve, de abacate, de tangerina, de alface e tal, já tavam todos pelados, sem nenhuma fruta ou folha, e aquela doideira toda acontecendo, com meu tio e meus primos bebendo, e tia Maria emburrada chamando a Nataly de pretinha sem educação, e a prima Cizinha, que pude ver que já estava alisando o peito do moleque do seu Zaqueu de um jeito cabreiro, e Nataly, a minha parceirona, muito safa, foi empurrando todo mundo pra dentro do carrão deles, e foi quando o primo Eduardo ainda gritou lá de dentro, pela janela: Belo carrão, primo Zacarias! Achou aonde?; e eu fiquei pensando que ele pudesse querer me sacanear, um pecado contra meu Fuca 64, mas eu não podia acreditar que ele fosse capaz de fazer aquilo, não, não com o meu Fucão 64, queridão, de jeito nenhum, porque parente não faz essas coisas, é sempre dez, e foi quando eles se mandaram direto pra Ipanema, e Nataly, que já tava com uma tremenda cara de bode, me pediu explicações: Que porra de gente doida é essa que você me arrumou, Zacarias, um bando de malandros, tudo Amigo da Onça; e eu, sem saber o que dizer, só disse a ela: Que que eu faço, Nataly, é parente, e parente a gente respeita; e ela fez um tremendo bico e falou: Zacarias, tu é um tremendo otário, sabia, esse povo rico deve ter jogado o ramo pobre da tua família nessa miséria em que vive, por isso eles têm dinheiro; e depois de dizer isso ela ficou me olhando, esperando que eu dissesse alguma coisa, mas eu não tinha nada pra dizer porque eu sabia que, no fundo, eles todos eram dez, bacanas pra caramba, parente, e parente a gente respeita e tem toda consideração, mas ela não aguentou que eu não falasse nada e ela mesma acabou falando: Você fez merda outra vez, Zacarias, e esses teus parentes são um bando de escrotos, e aquela tua tia maluca ainda ficou me chamando de empregadinha, dizendo que eu era uma pretinha sem educação; e eu, que não sabia mesmo o que devia falar pra ela, acabei dando um pulo no banheiro pra dar uma calibrada nas tripas, e quando voltei de lá, já meio que recuperado, refeito e tranquilão da silva, disse pra Nataly: Nataly, que bom que o primo Eduardo deixou lá no banheiro aquele papel higiênico que é da melhor qualidade, tão macio que é uma beleza, que dá até gosto dar uma aliviada.

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3 comentários em “Zacarias: A Visita dos Parentes Conto (Angelo Rodrigues)

  1. Elisabeth Lorena Alves
    18 de abril de 2019

    Zacarias é azarado.

  2. angst447
    17 de abril de 2019

    Ai, esse Zacarias é um pândego! A narrativa apresenta um fluxo veloz, acelerado pela pontuação peculiar e a emenda de frases e pensamentos. Lemos com a pressa de quem desliza por uma ribanceira, sem se dar conta do que é lama, do que é água, do que é terra ou excremento. Pode-se dizer tudo desse conto, menos que ele é morno ou lento. Achei bem divertido o enredo apresentado aqui com um tema tão familiar aqueles que têm família seja ela pobre ou rica, tem sempre uns encostados e outros desaforados. Fiquei na dúvida se Nataly quis dizer que eles eram um bando de cupins ou de chupins. Cupim também devora o que é dos outros, né? Enfim, gostei do conto que me fez sorrir e pensar na importância de um bom papel higiênico. Abraço.

  3. Sidney Muniz
    17 de abril de 2019

    Ah, sinceramente, Ângelo, me perdi na leitura várias vezes, a culpa ainda pode ser minha. Até amanhã prometo dar o veredicto.

    Sinceramente, estou achando chato, mas esse sou eu.

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Publicado às 10 de abril de 2019 por em Contos Off-Desafio e marcado .
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