Numa manhã, ao lado do Mercado Municipal, na cidade de Carinhanha, extremo norte do estado da Bahia, às margens do Rio São Francisco, presenciei a cena brilhantemente iluminada pelo sol causticante do semi-árido Sertão Nordestino. No asfalto de paralelepípedo a quentura faiscava nas pedras. Ali iria ocorrer o abate de um boi. Essa imagem brutal ficou guardado na memória e registrado nesses rabiscos que agora transcrevo. É para isso que serve e deve se escrever: seja relatando os esplendores da vida, seja delatando os estertores da morte, da vida, do homem, do boi.
Assisti entorpecido o homem, de gestos secos e certeiros moldados a “arte” de matar. Sua função, atingir num só golpe a nuca do animal. A faca-peixeira de 24 polegadas é tirada da bainha, afiada, capaz de cortar até o silêncio que se estanca diante à morte. Num movimento largo e com destreza fia o vinco na pedra mó.
Após o golpe o boi desmorona no chão, mas estrebucha e tenta resistir. A respiração ofegante. Os olhos arregalados agora choram antes da paralisação derradeira ao olhar o infinito que se esvai, ou para dentro de si como se fora o espectador de sua própria morte. Aos poucos perdendo as forças, mas o brio da vida ainda presente no corpo ferido faz-se ainda vivo, e num último impulso e ato de coragem tenta inutilmente se levantar. O homem se arma para o próximo ataque, e agora com a destreza do gesto definitivo sangra a jugular do animal, que não mais reage.
O sangue é amparado por um grande alguidar de barro. Como um exímio cirurgião o homem inicia a operação de retalhar o couro, desnudando o corpo do boi, quando aparece ainda quente a carne e seu tecido muscular à mostra e ainda trêmulo pelos espasmos dos nervos vivos e das veias mortas. Em seguida o esquartejamento. O machado de ferro para romper os ossos e a faca limada para manter o fino fio da navalha. A cabeça decepada se junta aos miúdos do corpo jogados em um canto. Os olhos continuam esbugalhados a observar suas próprias partes separadas da matéria, da vida. O ar impregnado do cheiro nauseabundo de sangue.
A faca afiada corta e recorta o boi em pedaços. Em poucos minutos o corpo morto é apenas fragmentos que serão expostos e vendido no próprio mercado e nas bancas da feira. Ali a compra é feita por peças; cada um da assistência já tem seu pedaço escolhido. Atando-o à ponta de um arame numa espécie de gancho, ou até mesmo numa carriola quando saem a carregar seu naco de carne pelas ruas da cidade, destino à mistura do almoço, do banquete. Da festa sobre o cadáver cozido do boi morto.
Chega hóspede amigo, serve-te!… O boi já não chora mais.
Olá, Paulo! É um texto bastante forte. Eu, de estômago fraco e que sou contra algumas coisas, foi bem difícil de se ler. Por se tratar de crônica, há algo além da alegoria do boi morto, de se baquetear às custas do animal abatido a facada. Em relação ao estilo, as descrições são o destaque, tudo muito bem narrado, criando figuras muito vívidas e detalhadas em nossa mente. Também, a nível estético, foi legal utilizar de um só ambiente, uma só sequência, curta e direta.
Olá Fil,
grato pela análise tão bem posta. E o senso de análise aguçado.
Foi o que realmente tentei passar: a ideia com uma descrição fria, detalhista e desprovida de impressões exageradas do narrador, ou opiniões deste. Tentar passar o relato para o leitor daquilo que me contive de dizer. Delatar os estertores da morte de um animal com uma abordagem apenas significativa. Visto que esta cena, foi realmente presenciada por mim, exatamente como está. Apenas, literarizada. (Portanto, muito difícil de não sentir o horror e conter-se, para não explodir numa saraivada de imprecações.