Em tempos de pós-verdade, essa palavra recentemente tatuada na língua da opinião pública para definir um tipo sofisticado de mentira que existe de priscas eras, é preciso tomar todo cuidado do mundo para não embarcarmos em furadíssimas canoas, em miragens construídas pelo discurso.
Ao contrário do que talvez possa parecer, em muitas situações do cotidiano é tarefa das mais difíceis não se deixar iludir. Aliás, é muito mais confortável entregar-se às aparências dos significados do que seguir o conselho de Drummond (“penetra surdamente no reino das palavras”). Não é como, por exemplo, transpor a rua apenas quando temos a gritante certeza de não haver perigo, conforme ensinamentos de nossos pais. A complexidade é maior. Não raro, a ameaça é invisível: nem bem atravessamos a avenida e a mentira nos atropela em cheio com seu disfarce de verdade inofensiva. E novamente precisamos prestar atenção no gauche de Itabira: “Lutar com palavras / é a luta mais vã. / Entanto lutamos / mal rompe a manhã”.
Vivemos onde? Essa pergunta, em que o advérbio de lugar representa mais que espaço geográfico, pode parecer desconjuntada, mas também isso faz parte do mundo do disfarce, da aparência: quantas vezes arregalamos boca e olhos ante um acontecimento que nos figurava completamente impossível, considerando o bom senso, a civilidade e outros valores tidos como pétreos na convivência social?
O insólito, que por sua natureza se imiscuía apenas eventualmente em nossa vida, tomou conta de todas as extensões do cotidiano, inclusive de sua principal dimensão, a política, e muitas vezes faltam palavras efetivas o bastante para expor essa estranheza. “Pós-verdade” é um desses casos, uma espécie de “não-palavra”, um nome inventado para desdizer, na verdade. Um vocábulo com ares científicos para a conhecida fofoca, mas, diferente dela, uma narrativa cujos elementos (personagem, enredo etc.) estão mais bem amarrados, com poucos fios desencapados. E isso se dá porque ela se constrói alicerçada em mitologias de classe, em preconceitos.
Seria tão diferente assim essa fofoca pós-moderna, a ponto de merecer novo vocábulo para defini-la, ou apenas roupagem elegante vestindo um cadáver antigo, de modo que ele não pareça finado? Desde sempre vivemos num mundo que, mesmo sendo um código em parte intraduzível, se pretende traduzir pelas palavras. No entanto, hoje, paridas de estranhos ventres, há palavras que não significam de fato, são simulacros que agem no sentido de esvaziar sentidos. Vivemos dias ocos.
Considerando que a ficção social fincou suas bandeiras nos corações de hoje, menospreza o factual e o empírico, faz com que em larga medida vivamos irrealidades, temo esse processo avance e passemos de desnecessárias palavras que designam o já designado para, por exemplo, o uso cotidiano do gromelô, uma língua criada na ficção e muito usada no teatro. Caracteriza-se pelo uso de palavras inexistentes, porém pronunciadas com musicalidade similar a determinado idioma. O “significado” se dá pela entonação e pelos gestos, mas a rigor as “palavras” nada significam. Máscaras mútuas: de um lado, o fingimento de dizer algo que faça sentido; de outro, o fingimento de entender. Ou seja, a aplicação da novilíngua de George Orwell em “1984”, ficção cada dia mais concreta.
Passageiros diários de tantas canoas esburacadas, talvez não haja mais porto seguro possível e tenhamos que conviver com uma degradação contínua e crescente da comunicação interpessoal. As palavras, elas estão se multiplicando em quantidade e em lacuna. Bem pós-moderna essa contradição. E mais uma vez Drummond se faz importante nesses tempos avessos: “ermas de melodia e conceito / elas se refugiaram na noite, as palavras. / Ainda úmidas e impregnadas de sono, / rolam num rio difícil e se transformam em desprezo”.
Evelyn,
Muito obrigado pelas considerações.
Acerca do que você comenta sobre a língua, acho importante comentar que a NORMA PADRÃO gera duas variantes, a NORMA CULTA e a NORMA POPULAR. A padrão é a língua modelo, um tanto irreal, não integralmente praticada pelos falantes; a culta é a padrão que sofreu algumas alterações e é falada e escrita por pessoas bem escolarizadas. Não é a mesma padrão. O uso do “a gente” no sentido de “nós” e do “você” como pronome pessoal são exemplos. Na norma popular as variações são bem maiores, com fortes mudança sintáticas e inclusão de muitas gírias. É considerado um “falar errado” por ser oriunda da classe social baixa, quando na verdade a culta também trás “desobediências” à norma padrão. Assim, o que afastaria as pessoas do uso “correto” da língua seria a norma padrão.
E de fato isso acontece. Não fosse assim, não haveria a culta, que é resultado da necessidade de adaptar a língua engessada que nos veio da Europa ao falar brasileiro.
A fluição das ideias não se relacionam exatamente à obediência a qualquer que seja a norma, e sim, entendo eu, ao uso das palavras exatas para demonstrar as ideias pretendidas. Por isso a importância do vocabulário. Ocorre que as ideias estão vagas, tipo assim… sacumé? Sem nitidez do que se pretende comunicar, a enxurrada de palavras que desdizem fazem a festa no salão de baile da pós-modernidade.
Quando não é o vago, é o estereotipado, as ideias preconcebidas, também território para o fenômeno de que trato na crônica, pois velhos preconceitos e conceitos são rebatizados.
Sobre a predominância do texto simples (e até simplório) em função da dificuldade de interpretação, acredito que um dos motivos, além de uma educação que não prioriza a intelectualidade, é o avanço da tecnologia. Tudo é dado de mão beijada como, por exemplo, o suspeito “corretor” do World. Logo, a necessidade de interpretar cai muito. Nesse sentido, num possível futuro distópico poderemos ter uma casta abençoada com as ferramentas da interpretação e outra nas condições em que você coloca e até idiotizada. E esse processo já existe no tempo presente, apenas será acelerado.
Não creio que tenhamos muito futuro pela frente no ritmo que as coisas andam. Esse pós-moderno, esse contemporâneo, é vazio de sentido e de significado. Tenho notado um descaso gritante com o que deveria ser nossa referência. E a língua e toda a beleza que ela carrega se perde não só por causa da velocidade na qual estamos inseridos, mas porque existe uma grande massa de ‘falsos intelectuais’ que concordam que a língua culta afasta as pessoas e que essas novas linguagens – já não sei se posso usar esse termo – estão aí para deixar fluir as ideias, que são muito mais importantes. Vejo a decadência sólida, pungente, acontecendo ao meu redor. No capítulo 5 do livro de Orwell é explicado o processo da eliminação do pensamento. Estamos muito próximos do não-pensar, da eliminação da interpretação, da destruição da construção das relações entre os significados. A distopia do escritor está entre nós. Estamos muito próximos do momento em que a linguagem como ela deveria ser usada, será um ato obsoleto. Muitas vezes me pergunto se há a necessidade de escrever de forma simplória, esmagando todas as minúcias, todas as delícias que a língua-mãe contém. Porque temos um amontoado de leitores que não conseguem ir além do simples, talvez por preguiça, talvez por falta de hábito, ou porque o enriquecimento do vocabulário não tenha mesmo valor algum.
Querido Eduardo,
Pós-Verdade, SIS, griôs, agentes-multiplicadores, doulas, empoderamento, apropriação cultural… Os novos termos na internet e, ao que parece, como o Felix disse acima, em determinados meios culturais, parecem estar brotando do nada e a cada dia mais.
Parece que vivemos em um século onde o esvaziamento de significados anda de mãos dadas com a velocidade em que criamos novas palavras para preencher lacunas que não compreendemos plenamente.
Percebi esse surgimento de novos termos em projetos de cultura, há alguns anos. A cada nova ficha de inscrição que precisava preencher, uma série de novas palavras e consequentemente explicações precisavam ser dadas (ou seria inventadas? melhor dizer, ajustadas), dificultando a realização do projeto em si. O engraçado é que lendo os tais texto hoje, vejo que muitas dessas palavras já sumiram do contexto.
Acho interessante notar que a maioria desses termos aparece no contexto do “politicamente correto”. Não é à toa que nos deparamos hoje com o tal leitor-sensível. Ou que percebemos a sociedade perdendo aos poucos o bom senso e o senso de humor.
A questão que você levanta em sua crônica é muito importante. Uma pena que poucos se atentem para ela.
“1984” também me parece ser logo ali na esquina.
Beijos
Paula Giannini
Muito obrigado, Paula. A fragmentação da pos-modernidade está criando palavras para desdizer, conceitos palavrosos e de pouco conteúdo, que muitas vezes são remodelagens de conceitos muito antigos, vigentes e úteis ao estabilishment (será assim mesmo a grafia?).
Vivemos num mundo muito veloz pra solidificar verdades. Tudo é tão passageiro quanto os ponteiros do relógio. Assim, o perigo das “miragens construídas pelo discurso” está no nosso dia-a-dia, seja na propaganda de cereal na TV, ou nas lamúrias do motorista do ônibus, ou na “missão” da empresa pra qual vc trabalha, ou na fala do político no jornal da noite. Aliás, muito cuidado com o discurso dos jornais da noite… No meio disso, o zumzumzum das “pós-verdades”, das boatarias, das fakenews do facebook, se transforma num grande gromelô, onde todos fingem que explicam, todos fingem que entendem, mas ninguém faz muita questão mesmo de explicar nem de entender absolutamente nada. Será apatia ou indolência?
“Verdades” e “Valores” precisam de tempo pra se estabelecer, não se fazem do dia pra noite, de um mês pro outro, mas às vezes de uma geração para a outra, ou de várias gerações consecutivas. Hoje o mundo muda muito velozmente, não há muita coisa que se sustente por tanto tempo. Mudam os valores sociais, políticos, econômicos, culturais, a uma velocidade jamais vista. Se eu for pensar no quanto o mundo mudou da geração do meu pai para a minha, é algo assustador. A linguagem é só uma das coisas que está se transformando com tremenda rapidez. Muitas vezes eu penso que Orwell foi um profeta mais competente que Nostradamus… rs
Como sempre, o seu olhar é muito exato, preciso, sobre o tema que escreve, seja em conto ou em crônica. Por isso mesmo sou sua fã, Eduardo Selga. Exatidão é uma das seis propostas do Italo Calvino para este milênio que começamos a viver. E vc entende desse assunto!
Einstein disse uma vez: “Não sei como será a terceira guerra mundial, mas sei como será a quarta: com pedras e paus.”. Talvez a 3ª GM seja com palavras, pós-verdades, gromelôs e novilínguas…
Quando você falou das categorias “verdades” e “mentiras” me fez lembrar uma famosa frase de Chacrinha, “eu vim aqui para confundir, não para explicar”, bem adequada aos tempos atuais e que na época mais confundiu que explicou. Ou seja, cumpriu seu papel de “descomunicar”, no sentido de desconstruir a lógica “fala que eu te escuto”, a da transmissão de uma sabedoria. Obrigado pelas palavras.
e veja como as coisas correm. li este artigo e lembrei da sua crônica: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/lira-neto/2017/07/1899513-a-depender-das-novas-geracoes-a-tv-tradicional-esta-com-os-dias-contados.shtml
Vivemos uma realidade que, citando Charlie Brown Jr., “Tanta gente equivocada faz mau uso da palavra/ Falam, falam o tempo todo, mas não tem nada a dizer”. Se finge explicar, se finge aprender, se finge felicidade. Se finge muitas coisas. Novas palavras vão surgindo para designar novas funções sociais, novos modos de viver e ver a vida, novos tudo. Mas que no fundo, não são tão novidades assim. E acho que a pós-verdade entra nesse emaranhado todo. No meio artístico houve um boom de novas designações, termos e modos de falar que versam com a encheção de linguiça no pós-modernismo. Muito se fala, explica e teoriza, deixando cada vez mais as pessoas necessitadas de uma muleta para caminharem sozinhas, de perceber os fatos ao redor com mais ou menos sensibilidade, enxergar além do “velho vestido” citado na crônica, um verniz sobre a pintura velha que o mundo está se tornando. Discursos infinitos, recheados de pós-verdades. Tenho curiosidade em em saber como nossa época, esse época de agora, será lembrada daqui 100 anos.
Teremos um século adiante enquanto civilização? Enquanto espécie, talvez, mas em se tratando de civilização… Tenho a sensação de que caminhamos para uma barbárie virtual e mecatrônica, com o desaparecimento da instituição
Estado.
Falando especificamente de invenção de palavras, isso se faz necessário na medida em que a sociedade muda, mas me parece estar acontecendo uma multiplicidade cuja intenção é mesmo confundir. A palavra “sororidade”, por exemplo, usada para designar uma relação entre mulheres que fuja do estereótipo que diz que toda mulher quer “furar os olhos” da outra. Muito positivo o combate aos estereótipos de gênero, mas a palavra”solidariedade” não resolveria? Obrigado pela reflexão, gostei muito.
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