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Detox Literário.

Bob – Conto (Paula Giannini)

2016-10-15-12-15-05

Ainda pequeno chamaram-no Bob.

– Nome curtinho é mais fácil para ele entender. –  Ouviu daquela que aprendeu a chamar de mãe.

A única da qual conseguia se lembrar.

Antes disso só o nada.

Gostava de ser Bob.

E de brincar no quintal, perseguindo borboletas e baratas, das quais defendia sua casa com a paixão de quem protege a fortaleza de um castelo. Talvez não propriamente um castelo, mas ainda assim, aquele ao qual acostumou-se a chamar de lar.

– Pega,Bob. Quieto, Bob. Cuida, Bob. – E ele sorria agradecido, com olhinhos de criança, pelas sobras do almoço que comia, abanando o rabo e rosnando, a todo aquele que ousasse se aproximar de seu portão. O único do qual se acostumara a zelar.  O limite entre sua vida e o mundo lá fora. Um desconhecido universo provavelmente cheio de carteiros, lixeiros e de ousadas fêmeas que, às vezes, metiam os focinhos por entre as estacas de madeira.  

E Bob gostava assim.

Gostava de ser Bob, deitado sobre o puído cobertor que aprendera a dividir com pulgas, sarnas e carrapatos. O único que lhe cabia, durante toda sua curta existência de cão.

Vez em quando, um osso.

Vez em pouco, um carinho daquela que tanto amava.

Vez em nunca, chuva forte, e ela o deixava dormir no tapete da soleira da porta.  

Vez em sempre, o abuso, e ele a via chorar e maldizer baixinho aquele a quem se acostumara igualmente, a chamar de pai. O único que jamais tivera. O único do qual seu aguçado instinto olfativo lhe ensinara a se guardar.

– Andou bebendo? Contas vencidas! Vagabunda! Despedido. – Palavras desconexas chegavam ao quintal, deixando seu fiel coração de cão estranhamente apertado. Não entendia nada disso de contas vencidas, mas sentia no dorso arrepiado cada sussurro do lado de dentro. E conhecia o gosto de cada lágrima.

E era nesses dias que ela se sentava a seu lado. Passava a mão em seu pescoço e deixava-se abandonar ao amigo, que conhecia sua química como ninguém. Composição perfeita entre sal e água, provada na ponta da língua.  Chorava copiosamente e Bob a entendia como nenhum outro. Conhecia o gosto de sua dor.  E o perfume de flores trazidas junto ao fluxo que vertia dos olhos.

Uma única vez…

O som da porta batendo.

Malas.

A coleira desamarrada do postinho.

A poeira e o cheiro de queimado do pneu cantando na esquina.

O silêncio.

O nada.

Noite alta, Bob voltou. Perseguira o carro por mais de… Bob não sabia contar.

Só as bolhas em seus pés impediram-no de correr mais rápido para o lugar que tanto conhecia. Aquele que se acostumara a chamar de ninho.

Silêncio.

O portão aberto foi o único a recebê-lo. E adormeceu, aliviado, talvez, por estar em seu lugar. Logo tudo ficaria bem. A chuva forte caiu, mas ninguém apareceu para deixá-lo ocupar a soleira. O capacho já não estava mais lá.

Dessa vez… Nunca mais.

Nunca o resto do almoço misturado à ração de segunda linha. Não mais os banhos de mangueira gelada, dos quais fugia, para em seguida sacudir-se grato por se livrar um pouco do peso dos parasitas. Nunca mais um só ruído dentro da casa. Tudo estava quieto. O mundo que conhecia sumira entre a poeira do antigo Chevrolet caindo aos pedaços. Só as pulgas pareciam não o haver abandonado.

Vez em quando, alguém passava e mexia com ele.

Vez em pouco, alguém lhe atirava um pão.

Vez em nunca, já longe da casa que ainda insistia em chamar de lar, uma mão estendida sob seu focinho para descobrir se o cão com costelas à mostra mordia ou não.

Vez em sempre, o abuso, e ele se esgueirava por cantos, a fim de livrar-se de vassouras e pedaços de pau.   

– Sai vira-lata! Fora Guapeca! Xô, chispa! – Palavras desconexas chegavam a seus ouvidos, deixando seu infantil coração de fera estranhamente confuso.

Não entendia em que momento havia deixado de ser Bob. Mas sentia na ponta da orelha machucada uma dor nova e desconhecida. A saudade, aos poucos, dava lugar ao temor por seres humanos.

Uma única vez…

Sentada na calçada a seu lado, ela lhe oferecia um pote cheio de água. Desconfiado, sentiu o leve toque em sua nuca e virou-se tentando morder.

– Ele está com medo… Não precisa gritar, Maria… – A mãe ensinava à filha. – Não coloque a mão aí, que ele está dodói e pode machucar você.

Agora um idoso, chamavam-no Príncipe.

– Nome difícil para ele entender. – Ouviu daquela que aprendeu a conhecer como amiga. A única da qual conseguia se lembrar.

Antes disso, só o nada.

– Pega, Príncipe. Pula, Príncipe. Dá a patinha, Príncipe. – E ele demorava a entender que era com ele que falava aquela criança que lhe dera o nome em homenagem a um desenho na Televisão. Em seu coração ainda se sentia Bob. Mas sentava a seu lado e agradecido tentava sorrir, com apertados olhinhos de velho, encarando uma tela na qual nada via.

Nesses momentos, de mansinho, ele começava a se transformar em Príncipe.  Finalmente encontrara o castelo para, aos poucos, se acostumar a chamar de lar.

Nunca entendeu, porém, o motivo…

Ninguém nunca mais o chamou de Bob.

18 comentários em “Bob – Conto (Paula Giannini)

  1. Evelyn Postali
    12 de fevereiro de 2017

    Impossível não se apaixonar por esse conto. Primeiro porque está muito bem escrito. Segundo, porque fala de uma paixão da minha vida. Cães são quase seres humanos no meu entendimento. São sensíveis, fiéis, carinhosos, leais. Eles já me ensinaram muitas coisas. Têm tudo de divino na essência. Não há como descrever a capacidade de amar desses seres iluminados que alguns ‘cérebros de ameba’ maltratam. Seu conto me fez lembrar dos cães que passaram por mim até esse momento. Cada um deles, especial e único.
    E o melhor de tudo: o final. Merecido e feliz. Porque é o que desejo sempre para esses pedaços de céu na terra.
    Obrigada por partilhar.
    Beijos!

    • Paula Giannini - palcodapalavrablog
      15 de fevereiro de 2017

      Evelyn, obrigada por ler e por comentar. Fiquei muito feliz com suas palavras. Não sei se você sabe, mas compartilho a paixão por cães. Resgato sempre que consigo, cuido, doo, fico com alguns para os quais não consigo lar. Um trabalho quase como o de secar gelo, nesse mar de abandono… Mas, cada um fazendo sua parte, o mundo melhora, não é? E… Como você sabe, sou sua fã na literatura!
      Beijos
      Paula Giannini

      • Evelyn Postali
        15 de fevereiro de 2017

        Fiquei sabendo da sua paixão pelos desafios. Mas saiba que você não está sozinha. No sítio, onde meus sogros moram, temos duas casinhas. Elas servem de ‘casa de passagem’ por assim dizer. Nós acolhemos alguns cães quando a entidade daqui necessita. Temos adotado também. Tínhamos 4, além dos nossos. Um, de velho, foi para os pagos de além no ano retrasado. Sinto muito amor por eles. Amo cada um deles. Meus filhos adoram. Meu marido tem um coração do tamanho de um trem. Sem contar com a ajuda da sogra e do sogro. Somos felizes assim. E tenho certeza de que você também é. Uma pena não podermos mudar o pensamento de algumas pessoas. Tão fácil seria se houvesse mais respeito para com eles. Não só para com eles, não é? Mas enfim… Tenha certeza de que, aqui, desse lado, tem gente que cuida e se preocupa com os peludinhos.
        Um grande e carinhoso abraço!

  2. Bruna Francielle
    11 de fevereiro de 2017

    Bem, se teve algum erro de escrita no conto, ficou completamente imperceptível e invisível face a emoção da história e a habilidade de fazer o leitor entrar nela.
    Confesso que me emocionei bastante, já tive algumas despedidas traumáticas de uns cachorros que tive, uns 3 q adotei da rua qnd era menor, foram mandados pra carrocinha pela minha família depois de um tempo, outro eu vi morrer depois de ser atropelado, fiquei muitos anos sem ter um cachorro, só agora ha poucos dias ganhei uma cadela, que já gosto muito.
    Ficou bastante verossímil, triste a história de Bob !!
    Foi uma ótima sacada contar do ponto de vista do cão.
    Também o dono de um cachorro muitas vezes acaba sofrendo com sua partida.
    Escreveu muito bem e conseguiu emocionar, um feito tremendo para um autor alcançar !! Parabéns

    • Paula Giannini - palcodapalavrablog
      15 de fevereiro de 2017

      Oi, Bruna,
      Quem não se emociona com um cão abandonado, não é? A história é inspirada em muitas que conheço do meu dia a dia de resgatadora.
      Quantos Bobs e Príncipes há por aí?
      Eu mesma tenho 8. Todos retirados do abandono.
      Obrigada por ler e comentar.
      Beijos
      Paula Giannini

  3. Leandro B.
    9 de fevereiro de 2017

    Conto com cachorro. Sabia que ia ficar triste e fiquei. Agradeço pela guinada otimista no fim rs

    Achei a estrutura muito bacana, especialmente a repetição inicial das frases em momentos diferentes da vida do Príncipe. Aliás, o nome e a retomada ao termo do castelo no fim ficaram bacana.

    Parabens pelo texto.

    • Paula Giannini - palcodapalavrablog
      9 de fevereiro de 2017

      Oi, Leandro.
      Que bom que leu.
      É incrível como o amor dos cães consegue nos deprimir, não é? É pelo excesso de pureza, de fidelidade, de doação…
      Que bom que gostou.
      Beijos
      Paula Giannini

  4. Pedro Luna
    9 de fevereiro de 2017

    Gostei do conto. Conto realista que traz coisas que as vezes nem costumam passar em nossas cabeças… como a situação da mudança de nome. O cão não entende porque deixou de ser Bob. Bonito isso, triste também. Já tive uma cadela que chegou aqui em casa já grande, doada pela antiga dona, e enquanto todos queriam mudar o seu nome, optei por deixar o mesmo. Me lembrei dela.
    Bom texto, eu só tiraria o último “Antes disso, só o nada”.

    • Paula Giannini - palcodapalavrablog
      9 de fevereiro de 2017

      Oi, Pedro.
      Obrigada por ler, por comentar e por amar os cães. 😉
      Beijos
      Paula Giannini

    • Paula Giannini - palcodapalavrablog
      9 de fevereiro de 2017

      Bateu curiosidade. Qual o nome da cadela?

      • Pedro Luna
        10 de fevereiro de 2017

        Priscila. 😉

      • Paula Giannini - palcodapalavrablog
        15 de fevereiro de 2017

        Ah, que linda!!! Também tenho uma que veio com nome do resgate. Thaís. rsrsrsrsr Tenho 8, todos retirados do abandono.
        Beijos

  5. Antonio Stegues Batista
    9 de fevereiro de 2017

    Gostei da historia é exatamente assim, quando uma família vai bem eles vão bem. Eles, os animais de estimação, não tem os mesmos problemas que os donos, para eles o que importa é somente o bem-viver, a liberdade, a amizade. Assim, quando algo diferente acontece, eles ficam perdidos, sem entender o que aconteceu. Mas, felizmente, sempre há uma nova oportunidade para ser feliz e compartilhar o amor pela vida.

    • Paula Giannini - palcodapalavrablog
      9 de fevereiro de 2017

      Oi, Antônio,
      Que bom que leu e gostou!
      Beijos
      Paula Giannini

  6. juliana calafange da costa ribeiro
    9 de fevereiro de 2017

    Paula, na faculdade tive um colega chamado Paulo Giannini. Coincidência?
    Olha, eu gostei muito do seu conto. Eu amo os animais e chorei bastante lendo seu texto. Como alguém tem coragem de abandonar o seu bichinho? A repetição que vc usa no texto, colabora pra ideia de ciclo, das voltas q a vida dá, para o bem e para o mal. E muito interessante que vc consegue narrar do ponto de vista do cachorro, sem ficar inverossímil. Muito bom trabalho, parabéns!

    • Paula Giannini - palcodapalavrablog
      9 de fevereiro de 2017

      Oi, Juliana,
      Nossa, coincidência mesmo!
      Será uma prima?
      Fico feliz que tenha chorado. rsrsrsr
      Beijos
      Paula Giannini

  7. Priscila Pereira
    8 de fevereiro de 2017

    Oi Paula, que lindo o seu conto, amei!!! A forma pela qual o narrador fala pelo cachorro é ótima. Fiquei torcendo para o Bob ter um final feliz. Ainda bem que teve. Muito original. Parabéns!!!

    • Paula Giannini - palcodapalavrablog
      9 de fevereiro de 2017

      Oi, Priscila,
      Obrigada por ler e comentar com tanta delicadeza.
      Beijos
      Paula Giannini

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Informação

Publicado às 8 de fevereiro de 2017 por em Contos Off-Desafio e marcado .