Querido Papai Noel,
Suzete pendurou a meia-arrastão na janela prendendo cartão decorado com purpurina e preenchido com letra caprichada:
Querido Papai Noel,
Este ano eu fui muito gente boa. Não sacaneei ninguém, perdoei todos os filhos-da-puta que jogaram pedras no meu caminho e que mereciam morrer com uma bigorna entalada na garganta. Comi montanhas de legumes e verduras entre torresmos e chopes. Não dormi com ninguém; só fiquei aqui e ali sempre com camisinha reserva com todo o respeito, até porque só consigo pegar no sono sozinha na minha cama de solteira. Paguei a musculação o ano todo e até fui lá algumas vezes. Não tirei nenhuma vida, isto é, quase nenhuma se o Papai aí considerar grave achatar mosquitos que rondam meus ouvidos e sugam o meu sono. Engoli sapos, lagartos e aranhas e só regurgitei coelhinhos fofos. Não fiz promessas, já que é pecado não honrá-las. Tomei banho em três minutos para economizar a água do planeta. Não pulei no pescoço de uma condômina nem diante das injúrias mais pérfidas, apenas contemplei em absoluto silêncio, sua carótida pulsante. Evitei sequestrar o jornal do vizinho, fiz o preventivo e não cuspi no meu terapeuta. É certo, e o Senhor sabe disso, enchi o saco dos que amo, mas o nobre amigo não há de negar que me rasguei toda para me redimir. Votei consciente, paguei os impostos no vencimento e não subornei nem um guarda. Não baixei nada ilegal da internet, de DVD e CD pirata passei longe, no elevador mantive o controle dos gases, não desejei morte lenta e dolorosa para o nazista do meu chefe. Não joguei papel no chão, nem quando os pés tropeçaram em montanhas de lixo. Emprestei dinheiro sem juros para os amigos, cuidei de gatos e gente de rua. Ouvi conversas idiotas, imbecis, racistas, reacionárias e execráveis fazendo cara de aquarela de marina de Búzios. Paguei cerveja para os poetas e loucos da praça. Tudo bem, devo admitir que falei alguns palavrões, mas todos por causas nobres. Ressaca não dá para contabilizar porque assim nem você aguentaria essas renas histéricas.
E agora, meu Papai Noel, em troca de todas essas boas ações peço, humildemente, que quando o Velhinho tiver um tempo entre uma chaminé e outra, deposite nesta singela meia apenas mais um ano de vida feliz ao lado dos meus.
A Suzete me representa, Catarina. Sou quase eu aí, nesse 2016 desastroso, entre legumes e bigornas, porque sapos se engole o tempo todo. O problema é regurgitar os peludinhos. Ri e, também, quase chorei minhas desesperadas 12 parcelas do 13º de professora estadual. Mas, no final, considerei justo agradecer e querer mais um ano de vida em 2017 junto dos meus amores aqui na terrinha.
Abraços, aí, de peito (o meu é grande) e carinhosos!
Muito bom. Divertido.
Como sempre, surpreendendo. As entrelinhas dizem todo o “não dito”. Texto de uma “leveza” ímpar. Geralmente isso esconde sentimentos nostálgicos e tristes (bem o sei).
Leve (apesar do escracho) dinâmica, lúcida (apesar dos pesares da insensatez), irônica e de humor ácido contagiante. Parabéns!
Muito bom, Catarina. Crônica gostosa de se ler.
Muito boa a crônica, e não por ter sido publicada próxima ao Natal. Você sabe, Catarina: há muito xarope brabo disfarçado de texto, escrito para lembrar o tal do Bom Velhinho e o nascimento do Menino Jesus, e a tendência do leitor menos crítico é considerá-los bons apenas por causa do tema. Aquela emoção fácil.
A qualidade da crônica está no inusitado, o que se dá por meio da linguagem ágil, como pede a crônica centrada nos costumes sociais, e divertida. As situações expostas muitas vezes não têm nada de elevado, moralmente falando. Nada que aqueça nossos corações tão cristãos e nos faça emocionar com o tamanho de nossa bondade, muito embora, aqui e ali, surjam termos que nos lembrem da cristandade. Elas, as situações, falam não exatamente dos pecados cotidianos do ponto de vista do Cristianismo, e sim, muitas vezes, quanto às convenções sociais e ao politicamente correto.
O formato de “cartinha” é uma ironia: remete à criança que trazemos dentro de nós e ao atual processo de infantilização da sociedade, algo que me assusta cada vez mais. No entanto, também fala da futilidade de nossas vidas, pois mostra que o considerado importante é não engordar, é vagamente “colaborar” com o Planeta etc.
Esse tom de futilidade pode, fácil e estereotipicamente, ser atribuído apenas à mulher, a depender do leitor, pois se trata de uma narradora e há marcas próprias do gênero feminino, como a “meia-arrastão”. No entanto, as preocupações demonstradas são, por assim dizer, “unissex”, mesmo quando se trata de vaidade.
Ao par disso tudo, a autora da carta não quer de presente de Natal nenhum objeto, nem uma vaga “felicidade”. Ela quer pouco, apenas mais um ano de vida, o que pode ser uma felicidade bem concreta.
Pouco? Isso, nos dias que correm, nos dias que nos atropelam, pode ser um inferno.
Exatamente, mestre! Boas Festas!
Muito legal, Catarina. Me arrancou umas risadas. Feliz natal!
Arranquei umas risadas? Então missão cumprida! Feliz Natal para você também!
Me arrancou umas risadas.(2)
Muito bom! 🙂