Nos anos em que fui adolescente, e mesmo nos primeiros tempos do que gostamos de chamar maturidade — se é que isso existe — frequentar salas de cinema equivalia, de certa maneira, a uma introspecção, e nesse sentido ainda guardava forte similaridade com a literatura, mesmo não sendo o filme um roteiro adaptado de obra literária. As imagens eram palavras moventes. Quem ultrapassou a faixa dos quarenta anos sabe do que digo, provavelmente.
Esse movimento de retorno aos meus interiores ocorria apesar do escândalo representado pelo tamanho da tela e o gigantismo da imagem que provocava um sentimento cúmplice entre do não ficcional e o ficcional. É que a proximidade fazia com que os atores perdessem um pouco a aura de estrela e se tornassem de fato humanos, quase sentados na poltrona ao lado e também comendo pipoca. Eu, e imagino que muitos espectadores, éramos chamados a ficar sozinhos conosco mesmos, na interação solitária com a imagem, por melhor que fosse a companhia, pois a imagem audiovisual, do modo como experenciada ontem, exigia do espectador, mais do que hoje, o exercício da interpretação dos significados possíveis.
Enquanto na leitura é preciso extrair a(s) imagem(s) sugerida(s) pelas palavras, dimensioná-las, pesá-las junto ao contexto ficcional, no cinema essa imagem é entregue de bandeja e com recomendações do chef, o que reduz a possibilidade de outras interpretações. Ou seja, no segundo caso a atitude é mais passiva que ativa, um aguardar pela cena seguinte, onde poderá haver a imagem que esclareça qualquer escuridão e satisfaça a ansiedade. Mesmo assim, o ambiente do antigo cinema provocava mãos no queixo, cenhos interrogativos, bocas entreabertas, aquela mudança de posição corporal que muitas vezes denota algum desconforto. Havia, sim, a atenção dispersa, mas não era mais do que qualquer coisa num universo de muitos olhos acessos a refletirem o lume da tela.
De um lado, isso acontecia por causa da dinâmica dos filmes, menos adrenalínica, menos espetaculosa (mesmo nalgumas bobagens norte-americanas), mas, sobretudo, havia no público e nos filmes menor quantidade de sorrisos abobados das comédias românticas ou de costumes. É que a representação do humano no cinema era, em minha juventude, acredito, menos estereotipada, apesar de os pilares para o atual homem na telona já estarem, desde então, muito bem fincados. Lá atrás, a flor-cadáver que é esse homem-velocidade, esse homem-consumição, estava muito bem plantada, aguardando apenas florir.
De outro lado, o cinema não berrava nos ouvidos do pagante como uma alma penada, e a presença do ar-condicionado não era uma tentativa de plagiar a Antártida. Hoje, no escurinho das salas de exibição, que permanecem ótimas para mãos bobas e beijos na boca (para quem gosta de beijo gelado), assim que a sequência de trailers começa a ser rodada, o som nos chega como uma agressão sem tamanho. Ao menos para mim. Não demora muito, se for perspicaz, o sujeito começa a perceber a tentativa de congelá-lo aos poucos, um banho-maria às avessas. Talvez seja uma estratégia, uma coação: tanto o surround quanto o frio paralisam o sujeito que, meio estatelado, fica atento ao filme. Ou finge. Parece-me que a relativa imobilidade inicial é, efetivamente, estar à espreita, como quem espera para qualquer instante algum assombramento.
Até pode ser rabugice de alguém que já na adolescência havia envelhecido um bocado, mas acredito que a gritaria dessa modalidade da indústria cultural chamada cinema tenha íntima relação com a nossa falta de diálogo no mundo existente fora das salas de exibição, com a grande dose de autismo na sociedade. Os sujeitos falam para si próprios, mesmo que em aparente interação com outrem. Individualidades muito senhoras de si, altissonantes como caixas de som (ainda que vazias de tudo), originam solilóquios com aparência de diálogos, nos quais muitas vezes é preciso gritar porque o objeto de convencimento não é o outro e sim o próprio sujeito gritante.
Talvez por isso, pela frieza do corpo social, ou por seu anestesiamento, poucos estranhem ou enxerguem a agressão de que falo nesse instante, em tão baixo volume. Numa sociedade em que tudo tem de ser aos gritos, aos trancos e barrancos, a reprodução disso num espaço que antes possibilitava a reflexão não é mesmo de assustar. Mas para onde caminhamos, assim tão surdos que estamos diante do outro, tão congelados? A pergunta pode parecer mera retórica, mas é importante, pois a indústria cultural é incapaz de fabricar o homem o tanto quanto procura desconstruí-lo ou, melhor dizendo, programá-lo à sua moda. E o faz de maneira que nossa comunicação vá se tornando, paulatinamente, ruído. Imagético, mas ainda assim ruído.
Bom artigo, Eduardo. Um aspecto que me chamou a atenção foi a infantilização das gerações mais recentes. Se antes tínhamos muitos filmes discutindo a condição humana, os dramas e sentimentos, hoje boa parte da produção cinematográfica é voltada aos filmes de super-heróis. A realidade tornou-se feia e indesejável: queremos somente as cores estouradas, os barulhos ensurdecedores, os sabores exagerados do fast-food.
Não temos mais paciência além dos cinco minutos iniciais de qualquer coisa, os distúrbios de atenção enchem os consultórios médicos, nossos olhos estão sempre voltados para baixo, para as telas brilhantes e que são tão melhores do que nos ocorre ao redor.
De fato, Rubem. Mas a infantilização, infelizmente, não está circunscrita às gerações mais novas: é possível ver que indivíduos de gerações em tese mais maduras se comportam de modo um tanto imbecilizado. Aliás, o intento da infantilização é precisamente esse: uma vez imbecilizado, o sujeito é presa fácil de conceitos que são passados subliminarmente pelo discurso social e midiático. Assim, essa espécie de obrigação de ser feliz que a gente vê nas ruas e nas redes sociais está associada ao consumismo exacerbado, que por sua vez se liga umbilicalmente ao capitalismo. Mas, crianças, muitos não percebem e optam pelo canto de sereia de viver o “aqui e o agora”. Ora, o imediato nega o passado e não constrói o futuro, criando um mundo próximo ao da criança e seus contos de fadas.
Obrigado pela leitura.
Olá, Eduardo Selga. Que bela crônica. Infelizmente só passei a frequentar cinemas mais tarde do que desejei, mas mesmo assim consigo extrair tais dessemelhanças entre as salas de cinema antigas (não só estruturalmente, também em termos de funcionamento e impressões no público) e as contemporâneas. Percebo inclusive em alguns filmes antigos mais naturalidade, menos “engessamento” de quem atua. Aquele contraste (e paralelo, de certa forma) a respeito do exagero sonoro e a sociedade “autista” é tão palpável que coroa a tessitura, a harmonia de fatos e argumentos. Parabéns. Abraço.
Obrigado pela leitura, José Leonardo. Você tem razão quanto à naturalidade. Antes, quando a tecnologia não mandava nos filmes, era grande a importância dada ao intérprete. Hoje, com o predomínio dos efeitos especiais, é comum vermos o ator como um apêndice posto a serviço do impacto visual. Nesse sentido, aumentam as caras e bocas e diminui a dimensão humana dos personagens.
Excelente crônica, poderia ter sido eu a escrevê-la tamanha afinidade com tuas palavras. Sou amante de cinema e às vezes me pego lembrando do primeiro filme que assisti. Eu devia ter uns sete anos, tinha um cinema na esquina da minha casa e meus pais permitiam que fôssemos, eu e os amigos,sozinhos na matinê (eram outros tempos). O filme era “Os Dez Mandamentos”. Lembro que saí do cinema cheia de questionamentos e curiosidades sobre como as cenas de abertura do mar tinham sido feitas, e o mar vermelho, como teriam conseguido fazer aquilo. Sem contar nas fileiras das cadeiras praticamente em linha reta e se um grandalhão sentasse na nossa frente era um sufoco enxergar a telona(vantagem para os cinemas de hoje, ao menos uma). A partir dali nunca mais parei. Só que hoje em dia me dei conta que estou mais para assistir aos filmes em casa por conta de tudo isso que você escreveu na sua crônica: som alto demais, ar gelado demais, pessoas que nào se constragem em comer e conversar à vontade no meio dos filmes (no meu tempo vinha o lanterninha e pedia para essas pessoas se retirarem). Sem falar nos filmes de hoje,estou o tempo todo a começar a assistir filmes novos e desistir antes da metade, e acabo assistindo a filmes mais antigos pela segunda, terceira, quarta vez.
Enfim, a velocidade nas cenas é o que conta para a galerinha de hoje em dia e questionamentos como aqueles que eu tive na saída do cinema no meu primeiro filme não existem mais, eles sabem como as cenas são feitas. Os roteiros na maioria das vezes são para pura ação, sem emoção.Infelizmente. Vou continuar assistindo e torcendo para que em algum momento as coisas voltem no tempo, um pouquinho, pelo menos no cinema.
Abraço.
Simoni,
Você tocou num ponto que me chamou a atenção, ao fim de seu comentário: o fato de as pessoas saberem como são feitos os truques de mágica quando da edição dos filmes faz decair os questionamentos acerca do filme. Verdade, mas também o seguinte: antes, em todos os âmbitos da vida social, o artificial não era regra. O leite não tinha tanta água; eventualmente comprava-se algum romance grosso para de fato lê-lo e não para servir de peça decorativa na estante; era grande o número de músicas nas quais percebia-se claramente um trabalho melódico e textual, não eram restritas a um refrão. Ou seja, como a verdade ainda era regra, quando víamos algo que fugia a isso começávamos a nos fazer perguntas. Hoje, com o predomínio do artificial, qualquer truque é apenas, no campo tecnológico, reflexo do social.
Você fala da instantaneidade, da velocidade de montanha-russa dos filmes atuais. Isso acontece porque a lentidão causa reflexão e reflexão nos incomoda profundamente. Essa loucura rasa é bem visível no YouTube, em que vídeos “grandes” (mais de cinco minutos) não não completamente assistidos. Mas para quê essa correria? Parece-me o mundo ocidental uma casa de loucos.
Obrigado pela leitura.
Já tinha lido lá no Clube de Crônicas, e apreciado da mesma maneira essa dissertação. Gosto das coisas mais “pipoca” como chamam, pois ainda é algo que faço em família (e já faziam no tempo deles), mas realmente às vezes noto que falta certo espaço para a imaginação, ou ideias mais “pensantes”, jogando tudo pronto e amarrado na tela. Aprecio o equilíbrio, mas aqueles filmes que causavam admiração, ou o sense of wonder, estão desaparecendo aos poucos (A Invenção de Hugo Cabret e Interestelar são os mais recentes). Até hoje acho impressionante o famoso Metropolis, que ainda consegue perturbar com sua expressividade, de uma forma que poucos conseguem atualmente. Cantando na Chuva também traz emoções aliadas à arte e gosto bastante dessa junção. Novamente, digo que gosto das coisas novas, mas, em sua grande maioria, estão vindo muito superficiais. Falta um pouco do questionamento que muitas ficções antigas traziam. Adendo: a parte da Antártida eu concordo. 😛
Brian,
Quando o cinema começou a ser usado profissionalmente, ele era entendido como arte (a chamada “sétima arte”) a serviço do entretenimento e também da cultura. Assim foi por muito tempo, até que, após a Segunda Guerra, os EUA inventaram a cultura pop (não a popular), que serve exclusivamente ao entretenimento.
No cinema, filmes como Metropolis são hoje produções raras, e o que temos são filmes cuja preocupação é quase exclusivamente com o entretenimento. A cultura entra como um apêndice, e até como um mal necessário. Estando todo o roteiro centrado na ação, o personagem (representação do ser humano) não importa. Do mesmo modo como na sociedade o homem não importa.
Vivemos dias gelados e gritantes, Brian.
Muito obrigado pela releitura.
Adoro cinema, pois sempre me traz lembranças ótimas da infância e da juventude. Sou do tempo em que esperávamos ver uma propaganda passar na telona antes do filme só para poder vê-la colorida e não preto e branco como na TV. Tinha também aquele certificado da censura e a semana do presidente, além de algo sobre futebol. E realmente o som era muito mais baixo, as salas maiores, mas mesmo assim mais aconchegantes.
Tudo hoje está mais exagerado porque as expectativas são sempre além do razoável. Nem se sabe mais o que se deseja ver, ouvir ou sentir, desde que seja “extraordinário”. Para não lidar com uma situação real e chata, aumenta-se o som, a luz, a ação, o copo de refrigerante,o absurdo.
Ah, eu gostei da sua crônica. – em tom audível, mas confortável.
Oi, Claudia.
Você se referiu ao Canal 100, um espaço de propaganda nos cinemas e que aliava a grande paixão nacional, o futebol, a algo sobre o que a população mantinha distância, a política.
Também foi uma boa lembrança de sua parte o certificado da censura, porque eu sempre achei parecido com minha certidão de nascimento, com aquela tarja verde e amarela no canto.
Gostei de suas observações sobre o “extraordinário”. Parece mesmo que o cinema, hoje, precisa ser um lugar de fuga ao mundo real.
Obrigado pela leitura.
Adorei a crônica e tenho a mesma sensação!
Obrigado pela leitura, Juliana.