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Se não for aguda, é crônica – Crônica (Jowilton Amaral)

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Deslizo com meu mocho pela casa/consultório, indo da sala até a cozinha. Conduzo-me pelo estreito caminho literalmente a pulso. Minhas mãos impulsionam-me para frente com a ajuda das paredes. O barulho das rodinhas da cadeira no piso é agradável aos meus ouvidos.

Durante o percurso tenho que desviar de obstáculos nada comuns, como O Idiota russo que escora a porta do quarto para que o vento não a feche e atrapalhe a arrumação da casinha da pequena menina. Casinha que foi levantada em pleno corredor sem qualquer tipo de pedido de autorização. Desvio do príncipe russo, com uma guinada para a direita e quase atropelo três daminhas de plástico, bem vestidas e sentadas muito elegantemente num banco/caixa de brinquedo, de encosto amarelo e assento vermelho. Elas parecem desaprovar minha ação, lançando-me olhares de julgamento, cheios de rígida dignidade.

Uma bola rosa pula-pula é chutada de canhota, – que não é a boa, mas neste caso é a única que funciona, pois, o pé direito, que é o bom, encontra-se completamente sequelado, por conta de uma inflamação no tendão de Aquiles. Apesar de ser de esquerda, o golpe na bola é dado com extrema categoria, fazendo-a passar por cima de um muro de calçados e rolar mansa para a área de serviço. Essa espécie de barreira feita de sapatos, – muitos sapatos -, bem próxima à entrada da cozinha, faz com que eu acelere meu meio de locomoção e destrua completamente o bloqueio, fazendo com que sapatinhos, sandálias, mocassins, rasteirinhas e saltos altos, saltem para todos os lados. Escuto uma reprovação chorosa: — Ô, painho, o senhor destruiu a parede da minha casinha! — Respondo sem me virar, para não dar ousadia: — Vem logo arrumar estes sapatos na sapateira; agora!

Venço, com certa facilidade, o pequeno batente que divide a sala da copa, e chego ao meu objetivo: A geladeira.

Tiro a caixa de anti-inflamatório do bolso, abro a geladeira, encho um copo com água e tomo o remédio.

Retorno pelo mesmo trajeto, vogando com meu “carrinho”, sob o olhar magoado de minha mais nova. Ainda muito sentida com o ocorrido. Passo por ela, faço cara de mau e digo: — Não vi a sapateira arrumada. E, depois de arrumar os calçados, junta toda esta tranqueira do meio da casa. E quantas vezes eu já falei para não escorar a porta com o meu livro do Dostoiévski? — Ela sai batendo seus pezinhos com força no chão. Volto para o meu birô com um sorriso satisfeito no rosto.

No notebook começo a escrever este texto, que é uma crônica, assim como a doença no meu calcanhar, que também é crônica. Mas, a dor que sinto ao tentar andar, esta sim é aguda. E como é.

12 comentários em “Se não for aguda, é crônica – Crônica (Jowilton Amaral)

  1. JULIANA CALAFANGE
    12 de fevereiro de 2016
    Avatar de JULIANA CALAFANGE

    Jowilton, muito divertido o seu texto! não tenho filhos mas tenho uma porrada de afilhados e me transportei com facilidade pro cenário da sua crônica. Adorei o título e amei o idiota russo escorando a porta… rsrsrs Parabéns!

  2. Claudia Roberta Angst
    12 de fevereiro de 2016
    Avatar de Claudia Roberta Angst

    Logo lembrei de Rubem Braga e sua bem humorada definição do que é crônica. Encaixou bem com a dor aguda e patologia crônica do narrador.
    A cena doméstica retratando o choque entre o mundo infantil (e sua parede de sapatos) e a disciplina invasora do adulto funcionou bem. E o livro ali,paradão, feito testemunha ocular. Imaginei o narrador/autor em uma daquelas cadeiras com rodinhas. Aí fui procurar o significado de “mocho” – Assento de madeira sem braço nem encosto.Então adaptei para um banquinho com rodinhas… coisa de consultório odontológico. Ou não?
    Enfim, gostei bastante da crônica. Leitura leve e bem humorada, com uso interessante de palavras e imagens. Só fiquei com dó da menina, vendo o seu castelo destruído e a cata de sapatos.
    Estimo as melhoras, desde que o bem estar não impeça o processo criativo gerado pelo caos do ócio momentâneo. (Vamos combinar que homem parado dentro de casa faz com que o apocalipse não pareça uma má ideia). 😉

    • Jowilton Amaral da Costa
      12 de fevereiro de 2016
      Avatar de Jowilton Amaral da Costa

      Obrigado, Claudia. Já estou um pouco melhor, fui ao médico e tomei uma injeção, a dor já diminuiu bastante. Você tem razão, mocho é coisa de dentista mesmo, é o banco com rodas onde nos sentamos para realizar o atendimento. Há muitos anos já é fabricado com encosto, nossa coluna agradece.

      • Jowilton Amaral da Costa
        12 de fevereiro de 2016
        Avatar de Jowilton Amaral da Costa

        Eu em casa fazendo alguma coisa já sou chato, imagina com dor e sem puder andar direito, kkkkkkkkkkk. abraço.

    • Jowilton Amaral da Costa
      12 de fevereiro de 2016
      Avatar de Jowilton Amaral da Costa

      * poder

  3. Brian Oliveira Lancaster
    12 de fevereiro de 2016
    Avatar de Victor O. de Faria

    Muito bom mesmo, ainda mais com o jogo de palavras e a metalinguagem ao final. O início engana, e aos poucos, vai sendo revelado a verdadeira figura por trás da cadeira de rodas (foi o que eu entendi). A princípio parecia uma criança. Você escreveu isso enquanto extraía um dente? Ou leu para algum de seus pacientes?

    • Jowilton Amaral da Costa
      12 de fevereiro de 2016
      Avatar de Jowilton Amaral da Costa

      Obrigado, Brian/Vitor. Na verdade escrevi enquanto meu pé latejava, kkkkkkkkkkkkk. Até que fiz uma extração neste dia, mas, foi o único atendimento. A dor só aumentava, então, tive que ficar de repouso. Abraço.

  4. Fheluany Nogueira
    12 de fevereiro de 2016
    Avatar de Fheluany Nogueira

    Amo jogos de palavras! Nosso português é muito rico! Viva a polissemia!

  5. Gustavo Castro Araujo
    11 de fevereiro de 2016
    Avatar de Gustavo Castro Araujo

    Haha excelente! Aqui em casa também temos o costume de escorar as portas com livros — perdão pelo sacrilégio — deixando a tarefa aos russos, claro, eis que são os mais cascudos!

    • Jowilton Amaral da Costa
      11 de fevereiro de 2016
      Avatar de Jowilton Amaral da Costa

      kkkkkkkk, Obrigado, Gustavo. Meus livros ficam guardados numa estante baixa, que facilita pras meninas pegarem eles, Como o livro O Idiota é um dos mais volumosos, elas sempre pegam ele pra escorar alguma porta, kkkkkkkkkk. Tô de molho de verdade, por conta do meu pé. Tá brabo. O título da crônica é uma suposta resposta do Rubem Braga a um jornalista que o perguntou como ele definiria um texto para ser considerado crônica, então ele respondeu: Se não for aguda, é crônica. Abraço.

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Publicado às 11 de fevereiro de 2016 por em Crônicas e marcado .