Já passava das onze da noite quando apareceu na praça o inventor. Farto de suas apresentações falidas, o povo postou-se sonolento ao seu redor num último suspiro de esperança. Então começaram a pedir.
– Eu gostaria muito que o senhor me fizesse um barbeador! – disse um homem.
O inventor já sabia do desfecho daquilo tudo, mas, mesmo assim, colocou-se a trabalhar movimentando as mãos dentro do seu pote de madeira. Suando, braços tremendo, misturava elementos de forma a pressionar sempre alguma coisa, parecia fazer um purê de batatas. Fumaça espirrava de lado, barulho fazia, cheiro de queimado, e o rangido da multidão aumentava cada vez que ele parava. Acalmou-se. Sorriu para todos. Tinha terminado.
Levantou, então, o inventor, uma espécie de animal pequeno. A multidão já reclamante chegou mais perto para que não perdesse o novo ente de vista. Era um animal de pele escura, azulada, o rabinho sambava da esquerda para a direita e, assim, o homem que solicitara pela invenção, disse:
– Percebe-se que não mudou nada! Inventor fajuto!
– Pois saiba que este barbeador funciona. E muito bem!
A multidão vaiou o inventor e o novo projeto que pendia em suas mãos. Sentindo o ambiente hostil, o bichinho preto, encrespado e dentuço, armou-se num iminente ataque mortal, mostrando os dentes, que pareciam cerdas finas e compactas e mexiam-se em conjunto fazendo um zunido monocórdio ao lado da espuma branca da língua, que escorria pelos cantos da boca.
– Vejam se não é um barbeador e tanto! – ironizou uma velha.
– Me diga, meu caro inventor, por que não consegue criar um objeto, sequer, da forma como pedimos? -disse outro.
– Faço as coisas como me surgem no pensamento e, dentro de meu mundo de ideias, elas assim saem – respondeu o inventor.
– Queremos a realidade! – berrou um grupinho mais atrás.
O pequeno animal crispou-se como se defendesse a tese do inventor. Ajeitou seu corpo emborrachado num espiral e comprimiu-se ainda mais, saltando como mola na cara do homem que pedira pelo barbeador. Cuspiu-lhe saliva espumosa e quente nas bochechas e pôs-se a raspar a grande barba ruiva do homem, com suas cerdas dentais afiadas e compactas. Passeava com maestria entre as cicatrizes, fendas e pelos encravados daquele rosto tão marcado pelo tempo e, em menos do que um minuto, as bochechas, o buço, o queixo e todo o rosto do pidão estava límpido como num trabalho esmerado de fígaros experientes.
– Pois vejam se minha invenção não funciona! – disse o inventor aparando o animalzinho que pulava daquele pelado rosto diretamente para o bolso encardido de sua camisa.
Perplexa com o trabalho rente e perfeito da criatura, a multidão em círculo caminhava ao redor do homem de barba feita. Riam e contemporizavam.
– Então? Estão certas de que meu barbeador funciona? E nenhum problema haveria em levar tal criatura para suas residências, visto que ela se alimenta de pelos e sintetiza o próprio excremento, tal qual a engenhosidade geniosa de minha invenção! Pasmem! Sem gastos adicionais!
Um vendedor de quadros passou pela multidão com diversas telas e levantou uma na direção do inventor.
– Desafio-lhe! – disse o vendedor. – Mirem esta reprodução, é ou não é uma cópia perfeita da Muralha da China?
O público concordou e, logo, todos estavam olhando raivosos novamente para o inventor.
– Tão logo a muralha recebe nova ventania e então já não é mais a mesma. Eis aí o problema do quadro, provavelmente pintado por pequeno artista de rodapé, tão baixo, tão baixo, que retratou a construção do ponto de vista de sua estatura de rato, deixando-a com o tamanho em três vezes maior do que é! Um astronauta, eu diria, nos saudaria com uma muralha insignificante, perdida no cosmo!
O público vaiou tal conjectura. Alguns cataram bolotas de fezes secas no chão e ameaçaram o inventor.
– Zomba de nós e se julga muito astuto! – disse o vendedor de quadros. – Por não conseguir fazer as coisas como tais, acha que devemos engolir essas engenhocas! Coloca-nos que o mundo que enxerga é a realidade e, vaidoso que é, quer que acreditemos nisto!
– Farsa! Fajuto! – gritou o povo.
– Acha que é deus! – completou uma senhora.
– Já que a realidade não existe, já que suas invenções funcionam como os objetos pedidos, mas não são como tais, e o senhor insiste que assim são por saírem desta forma de suas ideias, proponho…
– Sujeito enrolado! Ao ponto! – gritou um curioso.
– …Que não faça algo útil! Quando o rapaz pediu um barbeador, o senhor fez tal criatura deveras repugnante, pois sabia para que serve um barbeador. Se eu pedisse uma frigideira, talvez me fizesse um arco mágico pelo qual a comida passa e sai frita do outro lado, pois a frigideira frita e não mais do que isso, se eu lhe pedisse um gato, talvez, me desse um monte de lama cheia de pelos que mia, dorme, come, caga, arranha e come insetos, pois não além disso passam os bichanos.
– Mas, afinal, qual é o desafio do vendedor da arte alheia? – disse o inventor.
– Eu o desafio a criar algo sem finalidade alguma!
– Gênio! – gritou uma senhora.
Assustado com o desafio, o inventor colocou-se a pensar. Olhou para dentro de seu pote de madeira e bufou. Um burburinho risonho brotava da plateia descabida e tirava-lhe do sério. Encarou por um momento aquelas cabecinhas curiosas. Um velho apoiava-se na perna esquerda, depois na direita, ruminava e coçava as ancas. Uma menina chupava um pirulito e tinha olhos abstratos. Um outro senhor comia amendoins e cuspia os restos na própria blusa.
As pupilas do inventor apequenaram-se, esvaziadas de sentido e cheias de raiva. Sua íris expandia-se com uma nova ideia que brotava, mas que não parecia excitante. Ele tinha o aspecto dos que estão prestes a se vingar. Num ímpeto de movimentos maquinais, o homem enfiou as mãos dentro do recipiente e, estafado, colocou-se a trabalhar. O silêncio veio à tona, e somente ouvia-se a mistura dos elementos. Crec. Croc. Crec. Croc. Parou. Tirou o lenço do bolso e limpou o suor da testa.
– Está feito – disse o inventor.
O vendedor de quadros abriu os braços numa interrogação, seguido por muitos outros braços do público, que formaram um grande polvo curioso. Uma vaia começava a emergir das gargantas impacientes.
Eis que a boca do pote de madeira do inventor entortou-se e, num movimento assustador, alargou-se expelindo fumaça rosa. Metade do corpo de uma criatura pulou para fora do recipiente, revelando o dorso e cabeça de um novo ser. O ente elevou as pernas e saiu, meio desajeitado, mas por completo, revelando-se à plateia.
Atônitas, as pessoas vaiaram e xingaram como bestas-feras. Uma chuva de fezes secas voou na direção do inventor e sua nova criação.
– Sarrista! Sarrista! – berravam.
– Pois aí está! Uma invenção que não serve para absolutamente nada.
Na frente de todos, havia um homem. Igual a todos os presentes, da cabeça aos pés, do cu ao cabelo, exceto por uma pequena falha no ombro esquerdo. O ser bocejou, espreguiçou-se e torceu os olhos como se tivesse acabado de sair de uma longa soneca.
A praça esvaziou-se, pois, cansados de gritar, todos foram embora com uma coceira na cabeça.
O novo homem pegou um dos cocôs do chão e começou a cheirar.
Ilustração: Kellen Carvalho
O humor do texto e o clima de história antiga, aliada à fantasia, caiu muito bem. Criativo e com camadas mais profundas, onde uma breve leitura não trará a tona a metalinguagem exercida.
Obrigado pela leitura e comentário, Brian!
Fala aí, Rodrigues!
Gostei, principalmente do desafio de fazer a coisa inútil até o final.
Achei a solução bem criativa e o texto todo de um humor irônico bem aplicado.
Abraço!
Valeu a leitura e o comentário, Fabio!