Trabalho com a palavra, e isso me provoca incertezas de todo o tipo. Sempre fico perguntando aos meus botões, aos meus mal-assombrados sótãos, que grau de dramaticidade é necessário haver em qualquer evento cotidiano de modo a conseguir mover o sujeito e ele subitamente arregale os olhos, ponha as mãos no peito, solte deles ao menos alguns gritos de interrogação e de exclamação. O que é preciso para estacionarmos no acostamento nosso carro veloz e ouvirmos a gritaria sussurrada da escuridão? O que nos fará interromper o riso por tudo e por nada, escravos que nos transformamos de uma felicidade obrigatória e, consequentemente, falsa? Num mundo em que tudo é engraçado, nada precisa ser movido. E tudo se comove em risos fáceis. E se as coisas estão absolutamente adequadas as pessoas permanecem confortáveis, apreciando a falsa e espetaculosa paisagem na parede branca. Muito engraçado.
Pois hoje, setembro de ventanias por essas bandas, uma tarde de quinta-feira no interior da qual a maioria dos meus fantasmas curiosamente estava apaziguada, pois hoje precisei ir além da ilha solitária que é o quarto onde eremito, apesar de esse verbo não existir. Pés no continente da rua, a alma ainda trancafiada em papéis e livros, deambulei, derivei à esquerda e à direita até chegar logo ali, na casa lotérica. Não, se não acerto nem o nome de meus alunos, não fui apostar em nada. Ao contrário, precisava repetir o ritual de todo santo mês: pagar as contas ordinárias que qualquer cidadão de bem possui penduradas na geladeira.
Fila, trabalhadores com os mais diversos tipos de cansaço, operadoras de caixa mergulhadas em crostas de tédio, o Mengão foi surrupiado ontem na caradura, porque a madame da novela das oito merece sofrer muito. Todo o abafamento do mundo em alguns poucos metros quadrados, nenhum ventilador. Cartazes coloridos com sorrisos congelados garantindo que eu poderei ser o próximo feliz milionário e, assim, não mais precisar planejar aulas inúteis. Sei, sei… Um homem inquestionavelmente bêbado entrou na loja para surpresa de nós todos, os ensimesmados, e ameaçou, possesso e torto, gritar algo que permaneceu incompleto no ar, bafo de palavra alcoolizada.
Não deu tempo de ninguém sorrir aquele sorriso polido e safado que você e eu e todos fabricamos no canto da boca quando se pretende demonstrar superioridade cultural. Sabe como? Também a gargalhada franca e inculta não foi possível. O que se ouviu, muito mais do que as palavras sem contexto do homem idem, foram os gritos enormes de buzina e de freada, só não maiores do que o uivo de meus fantasmas quando me atropelam. Um corpo sob uma das rodas dianteiras de um caminhão. Mas não era ninguém, apenas um cachorro cuja vida não lhe fugiu imediatamente, e sim alguns segundos após o evento.
Fugiu pela boca, diga-se de passagem. É que quando o caminhoneiro foi embora sem se dar ao trabalho de descer da cabine —afinal era só um cachorro— as pessoas observaram no asfalto o coração do animal. Mas é preciso fazer justiça ao condutor do veículo: teve escrúpulo de não matar mais uma vez o bicho, o que fatalmente aconteceria se passasse por cima dele mais alguma roda. E para isso demonstrou invulgar perícia ao manobrar o veículo e evitar o corpo. Os cínicos talvez o aplaudissem.
É preciso voltar à ideia exposta no primeiro parágrafo, pois repentinamente me dei conta de que, se não todo ele, boa parte do comportamento do homem civilizado diante do assassinato se manifestava na casa lotérica. Um menino que assistiu ao crime permaneceu longo tempo, o tempo de sua eternidade particular, boquiaberto, sem saber. Parecia conversar com seus longes. Procurando respostas, os olhos arregalados imploravam pelos olhos da mãe, em cujos lábios se escondia uma vontade de brindar à morte do bicho. Certamente dessas pessoas que sem motivo razoável envenenam animais de estimação, você deve conhecer alguém assim. Quedo e mudo, o menino se escondeu atrás da saia, sem saber o monstro que dentro dela habitava. Talvez ali, naquele preciso instante, tenha brotado um homem sensível aos sentimentos sem nome que por vezes habitam nossa alma, sensível à dor alheia.
Ao meu lado, uma senhora, muitos graus de miopia ou astigmatismo, tirou os óculos, abaixou a cabeça, cobriu o rosto com ambas as mãos, chorou feito criança. Garantiu: cachorros são criaturinhas de Deus, animais amorosos; lembrou-se do dia em que, menina, alguém envenenou o Tués (esse o nome de seu cachorro); disse que o ser humano é a pior raça existente sobre a face dessa Terra; afiançou com toda a certeza do mundo: o motorista atropelou o bichinho deliberadamente, só podia ser; desculpou-se pelas lágrimas vexatórias. Foi embora sem pagar as contas, subtraída de si, perdida numa infância que voltou sem ser chamada.
Todo o resto foi um silêncio tumular, de onde exalava tons de lamento e de apatia. Quanto a mim, sinceramente ainda não me recuperei nem do assassinato nem da certeza de que mesmo a morte de um nosso semelhante não basta para causar indignação geral. Decepcionado, segui em silêncio para meu território insular, as contas pagas, o coração na mão, no asfalto. A vontade de voltar à época de menino, quando nossa alma se recusa a aceitar a morte como inevitável ou rotina; a vontade de ter conhecido o Tués, certamente um grande amigo que ainda hoje faz chorar a senhorinha.
E você?
Pois olha, eu me vi nessa crônica, devia estar na fila da lotérica esperando para pagar uma conta. Também me sinto indo além de uma ilha solitária quando coloco meus pés no continente da rua. A descrição é perfeita. Voltar a alma no tempo para nos recusarmos a aceitar a rotina? Que vida é essa que passa do lado de fora do quarto de um apartamento? Que rotina é essa que faz a gente parecer personagem de um filme e que somente no silêncio da nossa alma nos encontramos com o Tués?
Parabéns só em português é pouco aqui, Uma salva de palmas em todos os idiomas do planeta!
Abraço!
E aí, Selga. Beleza?
Cara, que texto bonito. Não sei o quanto aí tem de “fatos verídicos”, mas também não importa… a beleza da escrita e as reflexões e sentimentos que ela provoca são verdadeiras o suficiente.
Durante a leitura me lembrei da música “Miséria” dos Titãs, que diz: “a morte não causa mais espanto (…)”. Creio eu que, conforme o passar dos anos, vamos perdendo de certa forma a empatia e a capacidade de nos impressionar/impactar com determinadas situações. Não sei se é normal, não sei se é reflexo da sociedade imediatista, não sei nem se isso é bom ou ruim… mas acontece. Por um lado, viver chorando a morte de cada formiga levaria a uma inevitável depressão, pois a morte é tão natural quanto a vida. Por outro, quanto perdemos de nossa humanidade, quando não relegamos mais que um “putz…” antes de virar a página do jornal que relata dessas tragédias envolvendo centenas de vidas humanas? Quanto perdemos da nossa humanidade ao jogarmos para baixo do tapete da nossa consciência as tragédias ainda maiores, que não aparecem nos jornais?
Bom, vou parar, pois os pensamentos começaram a fluir e se deixar vou o dia inteiro. E isso é prova de que a crônica é boa! 😀
Além da música dos Titãs, lembrei-me também desse poema de Fernando Pessoa:
“Sábio é quem monotoniza a existência, pois então cada pequeno incidente tem um privilégio de maravilha. O caçador de leões não tem aventura para além do terceiro leão. Para o meu cozinheiro monótono uma cena de bofetadas na rua tem sempre qualquer coisa de apocalipse modesto. Quem nunca saiu de Lisboa viaja no infinito no carro até Benfica, e, se um dia vai a Sintra, sente que viajou até Marte. O viajante que percorreu toda a terra não encontra de cinco mil milhas em diante novidade, porque encontra só coisas novas; outra vez a novidade, a velhice do eterno novo, mas o conceito abstracto de novidade ficou no mar com a segunda delas.”
Abraço!