Enquanto luto aqui para tentar terminar o romance «Amores Mortos» (terceira versão), recebo algumas opiniões interessantes de minhas leituras beta. A primeira delas, e a que tem me feito mais pensar, é que duas das leituras puderam identificar, com certa facilidade, a sequência em que as partes do texto foram escritas. Considerando que todo ele foi escrito em 2010, com algum retrabalho em 2012 e agora a reescrita do primeiro capítulo, o intervalo total entre o texto mais antigo e o mais novo é de apenas seis anos.
Aos trinta anos eu já me julgava um autor bastante formado a ponto de descartar como «produção de juventude» quase toda a minha obra poética, por exemplo. Este trabalho com o romance me está mostrando, para meu espanto, que eu continuo evoluindo a olhos vistos e que provavelmente os textos meus que impressionaram o Sérgio Sinki, na época em que ele me convidou para moderar uma comunidade literária no Orkut (isso em 2007), são bem piores, aos olhos de um leitor atento, do que os que ando a escrever agora. Isto também deve significar que alguns dos textos meus que perderam concursos e desafios literários em anos anteriores deviam ser ruins mesmo — embora na época eu não percebesse isso.
Apenas o romance Praia do Sossego ainda consegue me satisfazer, em parte porque ele recebeu uma revisão bastante «mão pesada» e porque, falando francamente, eu nunca mais o li (não, não o lerei nem que me paguem).
Mas o problema detectado pelas minhas leituras beta é bastante fácil de enxergar: romances precisam ser concluídos rápido porque eles apodrecem.
Um texto literário tem prazo de validade. Tal como você não pode gastar uma semana inteira para preparara um bolo, não pode gastar anos refazendo a mesma história. A «massa» desanda no meio do caminho e não há como consertar. A solução que estou adotando em «Amores Mortos» é radical: reescrever tudo. Isso significa que o romance que sairá não é mais o mesmo que eu escrevi em 2009 e que em 2012 enviei ao João Francisco Rocha Dias para uma primeira leitura «alfa» (e que ele não gostou, previsivelmente). Será um romance melhor porque, como a Cláudia Angst disse, eu hoje sou claramente um escritor melhor do que era quando comecei esse trabalho. Mas o espírito de que eu estava imbuído naquela época está irremediavelmente perdido. O romance que terminarei e publicarei reflete quem eu souhoje, não quem eu era então.
Nesse sentido, textos desandam na sua mão se você tem que terminar e desovar rapidamente, largar para lá e seguir com a vida (literária).
A consequência disso, para mim, é que agora tenho de me impor a terminar, ainda esse ano, nada menos que cinco romances que estão desandando ou até já desandaram, mas não quero jogar fora.
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Texto originalmente publicado em http://www.letraseletricas.blog.br/lit/2015/07/textos-apodrecem/
Tudo tem um início e um fim. É um ciclo interminável, que muitos tentam lutar contra. Só tem espaço no infinito aquilo que é atemporal. Mas como poderíamos caracterizar algo como atemporal?
É um assunto longo, digno de verdadeiros filósofos.
Na minha vida pessoal, prefiro terminar um texto rápido. Sempre faço duas versões. A primeira vem do coração. A segunda vem da mente. E depois disso não mexo mais. Nunca mais. Pois mudamos.
Interessante o artigo. Pude sentir na pele exatamente o que você descreveu. Levei cerca de dois anos para escrever o “Pretérito Imperfeito”. Os últimos seis meses foram dedicados à reescrita da primeira parte e, ainda, à construção de um personagem que eu, de início, nem pensei em desenvolver. Somos, de fato, escravos de nossos momentos pessoais. E isso vale não só para a escrita, mas também para a leitura. Certos livros merecem ser lidos em vários momentos de nossa existência, não é mesmo? Nossa interpretação sempre irá variar, não tenho dúvidas. Já dizia o velho Heráclito: ninguém entra no mesmo rio por duas vezes. Isso vale também para as letras, quer concebidas, quer lidas. Parabéns pelo artigo.
Tenho percebido que os contos são mais ou menos como a paixão.
E os romances, como o amor em um casamento duradouro.
É bacana e tal… mas chega uma hora que acaba o tesão e você tem que aprender a lidar com isso, senão larga a história pela metade.
Estou vivendo essa situação nesse exato momento.
Que debate legal você provocou. Essa é a missão de um bom artigo. Você tem razão quando fala do momento em que o escrito foi produzido; o momento do autor. Tem tantos músicos que não tocam mais aquela música que adoramos porque não faz mais sentido para ele; se comparado ao que o músico vive hoje. Fui procurar na gaveta um conto para participar de um desafio, já que não saia nada da cabeça, e não encontrei nenhum para aquele tema e momento. Para um outro desafio, encontrei três que poderiam ser trabalhados. Na primeira ocasião só encontrei textos apodrecidos e na segunda, encontrei solos fertilizados por textos fermentados. Acredito que no caso do romance seja beeeemmmm diferente, mas acredito também que ainda haja salvação para os textos apodrecidos de hoje. Amanhã podem ser solos férteis. Importantíssima a sua reflexão.
Achei bárbara a reflexão, embora não acredite que ela se aplique a todos os textos. SIm, muitos textos desandam quando precisam exprimir algo fortemente vinculado com determinado momento ou visão de quem escreve, mas também acho que há textos que, quando expelidos muito rapidamente, sem alguma fermentação, podem abatumar sob os olhos do leitor.
Alguém falou que seria fácil?
Reafirmo que você está escrevendo bem melhor hoje. Tanto que pensei que fossem dois autores diferentes durante a leitura do seu romance. No entanto, acredito que a essência daquele seu “eu” mais jovem continua no comando da criação, só que agora tem mais intimidade com as palavras e teme menos o conflito de emoções.
Se o romance parece apodrecer em suas mãos, pense que ele será novinho em folha quando o leitor o receber. Até mesmo o apodrecimento fermenta o solo para novas sementes.
E não abandone suas crias, dê um bom banho nelas e as alimente para que possam seguir seu caminho (mesmo que seja enfrentar alguns predadores por aí). Boa sorte!
Olá
Pouco ou quase não costumo comentar textos de colegas literatos pois ainda não me considero em calibre ou tom de maturidade literária para se transmitir o que penso a respeito. Fora o fato que ainda estou em formação, ainda cometendo meus erros. rsrs
Apesar disso, sou muito seguro quanto ao que leio e que penso sobre gosto ou não gosto de determinadas leituras. Posso errar sim, mas enxergo mais que miúças de ortografia e sintaxe, etc. que a maioria aponta quando lê.
Quando escrevemos, de fato reflete o patamar da maturidade de escrita e evolutiva que passamos pelo momento. É natural que depois de tempos adiante consideremos algo ruim ou mesmo irremediável de aproveitamento de texto.
A explicação para tal observação é que apegamos demais à foram em que colocamos no papel as ideias. As palavras são mutáveis por nossa evolução (ou desvolução), portanto sendo melhor ou pior empregadas para se contar uma história.
o que não muda é a essência do que é o contar a história. Pdoe-se mudar a narrativa, formação de frases, etc. Mas o que não muda é sua real essência de como é contar uma história que somente vc pode dar o tom certo. E dependendo do preciosismo ou apreço pelo que escreve, muda-se o enfoque e dentre outro até a história sair como a ideia que deve ser contada a outros.
Recorro muito pouco a leitores beta (ou alfa, como quiserem). Quando ocorre, é para somente pegar algo mais “grosseiro” e inteligível a leitores comuns. Não me arrisco muito a outros leitores devido ao gênero que escrevo, que é policial, que é discriminadoe nem me desgasto em oferecer a leitura, sabendo que quase ninguém estaria disposto a ler.
Tendo ou não um prazo de validade para os textos é meio que jogar culpa em fatos que não são atrelados ao processo da escrita. Muitas vezes atribuímos pruridos pessoais que tolhem o processo criativo que justificam o mal humor e a desesperança que é publicar no Brasil.
De qualquer modo, posso desejar o melhor para todos os escritores. Mas quanto a problemas projetados na escrita, só posso desejar sorte para que a negatividade se atenue.
Abraços
JG, velho parceiro… Muito legal te encontrar por aqui, inaugurando este novo espaço que o Anfitrião disponibilizou para os possuidores desta sina eterna, que é ter letras no sangue.
Bacana também relembrar os velhos tempos da N.E.B., no falecido (e saudoso) Orkut…
Mas, vamos deixar as reticências para trás e, “voltando” para o tempo presente, gostaria de contribuir com suas filosóficas palavras, neste belo (e nem tão incômodo assim, Anfitrião!) artigo.
Eu já passei por sentimentos (e práticas) semelhantes. Recebi, igualmente, opiniões de leitoras “beta”. Aliás, todas as pessoas que aceitaram esta proposta indecente (de lerem meus escritos antes de eu sequer decidir se deveria mesmo publicá-los) eram, talvez não coincidentemente, mulheres. Porém, todas as leitoras beta que tive não eram, simplesmente, mulheres; mas sim, e talvez também não coincidentemente, mulheres “alpha”. (rs!)
E digo isso apenas para contrastar com sua grande descoberta, detectada exatamente através dos feedbacks recebidos. Não são apenas os Romances que apodrecem, parceiro… Mas, sim, todos — e cada um de nós. Não são os textos que desandam em nossas mãos; mas nossas mãos é que acabam “desandando” por outras linhas, folhas, estilos, formas…
E penso que, reescrevendo histórias escritas por nós mesmos, mesmo que oriundas de um passado remoto e intangível, estaremos — na verdade — fazendo o oposto: apagando-nos de nós mesmos (e também do “público”). Ou, no mínimo (porém nem um pouco melhor), apagando a nossa própria inocência/ingenuidade; em busca de uma escrita “perfeita” (para os outros). E isso, para mim, é o significado exato de apodrecer.
Em uma frase (e para terminar), penso que a arte de escrever somente é uma arte quando, em sua essência, ela é feita para agradar ao maior “leitor alpha” que uma (boa) história deve ter: o próprio autor.
O resto… É apenas consequência!
😉
Abração parceiro,
Paz e Bem!
O texto literário é o reflexo do que somos? Até que ponto? -velha questão, sempre posta na literatura. Se for uma relação de espelho, extraindo muitas vezes imagens e personagens de nosso subconsciente e de nossas escuridões, o envelhecimento do texto me parece algo a princípio estranho, pois não mudamos tão rapidamente assim (há mesmo quem diga que a partir de certa idade nós não mudamos de fato nenhum milímetro).
No entanto, Geraldo, parece-me que você tem razão.
Entretanto, não é que o sujeito mude substancialmente em pouco tempo. Acredito que se trata de um sintoma de nossa era, em que o tempo ganha uma nova dimensão, completamente diversa do que ocorria até então. Hoje, mais do que “tempo é dinheiro”, ele é a própria vida humana. Uma vida em que o sujeito, inserido na ordem do consumo e da espetacularização, precisa se mostrar constantemente outro, diferente (de preferência divertido). Ainda que nada tenha mudado, de fato.
Assim, o enredo do conto, do romance, passam a ser retratos de um instante emocional do autor, que sente necessidade de “desovar” esses textos, porque se não o fizer o momento seguinte será emocionalmente outro (fruto da vida contemporânea) e o trabalho feito já será caduco.
Não era assim na era moderna (estamos na pós-modernidade), tampouco nos períodos anteriores. Essa obsolescência do texto, lembrando o mesmo fenômeno que acontece com celulares, smarts e qualquer produto tecnologicamente “de ponta”, é saudável? O lento mastigar de um enredo até chegar à maturação não seria muio mais interessante.
Acredito que sim, mas a contemporaneidade não tem paciência. E o resultado, muitas vezes, também é o apodrecimento de que você fala. Os textos apodrecem rapidamente logo após terem sido publicados. Eles não ficam. São bolhas de sabão. Porque há carências não supridas, em função da velocidade.
No penúltimo parágrafo faltou uma interrogação na frase final, que deveria ter ficado assim: “O lento mastigar de um enredo até chegar à maturação não seria muio mais interessante?”