Ao longe, no infinito tapete azul do mar, emerge aos olhos a embarcação com a Jolly Roger mais temida dos mares. A tripulação se apavora, sabem dos terrores que todos passam em poder do misterioso Capitão Le Fantôme. Os boatos que rondam todos os portos desafiam a lógica, talvez contos de sobreviventes traumatizados. Lendas ou fatos distorcidos por mentes perturbadas, o navio com a bandeira negra e uma caveira vendada já emparelhava com a embarcação mercantil.
O navio britânico que transportava grande quantia em ouro era lento, não conseguiria fugir da fragata que cortava as ondas alimentada pela ganância de seu capitão. O capitão do cargueiro chamou a guarda que estava a bordo, ordenou que defendessem a embarcação. O ouro não podia ser roubado, era o pagamento de mercadorias vendidas pelo dono do navio, um mercador muito querido pela coroa.
Baloir Causeur, primeiro imediato da fragata pirata, ordenava aos seus comandados que se preparassem para a abordagem:
– Rápido, insetos apodrecidos! Espadas em mãos e pistolas carregadas, rendam todos e tomem o navio. Esta noite, pagarei uma rodada de rum para todos aqueles que furarem as entranhas de um inglês! – Dadas as ordens e feita a aposta, Baloir gargalhou como se estivesse engasgando.
Os fora da lei já empunhavam seus sabres e machados, a cintura com três ou mais pistolas carregadas cada um. Traziam consigo ganchos com cordas para invadirem o navio alvo.
Sem muita dificuldade, a fragata ficou lado a lado com o cargueiro. Não se fez necessário usar os canhões, o proprietário do ouro carregado no cargueiro se julgava intocável. O mercador era muito próximo à coroa, acreditava que ninguém seria louco o suficiente para atacar um navio seu. Apesar dos avisos de seu capitão, disse que o Le Fantôme era apenas uma história para assustar criancinhas. Dispensou escolta.
– Defendam o navio, homens! Matem cada um desses lixos que subirem a bordo! – O capitão, Gordon McHarty, juntou-se aos guardas que faziam parte da tripulação do cargueiro para defender os interesses de seu senhor.
Antes mesmo que os piratas lançassem seus ganchos nas velas para invadirem a embarcação, a tripulação do navio britânico testemunhou a veracidade das lendas do capitão da fragata que os atacava.
– Ao invés de puxar seus pés de noite, cortarei suas cabeças pela tarde. – A voz rasgada e fina pronunciou, com forte sotaque francês, o bordão que pairava as tabernas dos portos da região. Todos conheciam tais palavras, que eram entoadas pela voz de um morto, diziam as histórias.
Todos no convés viraram-se para conhecer o dono do discurso. No tombadilho, atrás do leme, o vento esvoaçava o sobretudo branco de seda, sem mangas e com a barra rasgada, do homem mais enigmático procurado por pirataria. Capitão Le Fantôme.
Como uma aparição, como um fantasma, o capitão surge dentro dos seus alvos. Se a caveira vendada surgir no horizonte, proteja suas costas, Le Fantôme está por perto. O capitão aparece entre a tripulação, do nada, do além. Como o próprio costuma dizer “do outro lado”.
A trilha sonora da batalha que seguiu, entre tripulantes e guardas do cargueiro contra os piratas invasores, era metálica e explosiva. Sabres se chocando, mirando gargantas e corações amedrontados, espalhando sangue pelo convés. Em busca de seus prazeres hereges, os piratas lutavam bêbados e destemidos. Atacavam com ferocidade, grasnavam a cada golpe. Mesmo caídos ou feridos mortalmente, ainda esbravejavam ofensas, brandiam suas espadas e disparavam suas pistolas. Queriam o ouro, o desejavam para financiar suas longas noites de embriaguez e orgias. Os sons agudos das armas se chocando, era interrompido frequentemente por sons abafados de carne sendo dilacerada, ossos sendo quebrados e vidas sendo ceifadas. O bumbo da orquestra eram os disparos. Pontuavam o combate com o som alto e seco em meio aos agudos dos sabres se digladiando.
Gordon, o capitão do cargueiro, defendia bravamente sua embarcação. Visivelmente o combatente mais habilidoso defendendo o cargueiro. A batalha seguia equilibrada próximo a Gordon, no centro do convés, o capitão estava fazendo a diferença enquanto protegia o acesso ao interior do navio. A guarda do cargueiro lutava pela proteção do tesouro a bordo, não estavam muito engajados na missão. Alguns abandonaram a batalha, preferiram ficar à deriva a morrer por um patrimônio que não os pertenciam.
Le Fantôme, em meio ao musical grotesco, ditava os passos da dança da morte. Mais baixo que a média e também mais magro, o capitão pirata exibia toda sua destreza com a rapieira que empunhava. Sempre um bloqueio, um golpe fatal. Não era necessário mais que isso. Os passos ligeiros o transportava entre um inimigo e outro, parecia flutuar com o balanço da maré. Entre uma estocada e outra, o sobretudo branco esculpia formas vivas acompanhando o sentido do vento e seguindo o capitão na batalha.
Poucos minutos de combate e o odor de ferrugem pairava pelo convés. O sangue dos caídos em batalha encerava o chão de madeira e encharcava as botas dos ainda vivos. A maresia já se perdera mediante o cheiro da morte e da pólvora.
Distinguindo-se do odor da batalha, desprendia-se do corpo do capitão pirata um perfume floral. Totalmente inusitado, o aroma esquivava-se por entre os odores hostis e carregava terror àqueles que o sentiam. Caídos no chão agonizando e chafurdando no próprio sangue, as vítimas do capitão ainda percebiam os resquícios do perfume do seu algoz.
O baile de horrores prosseguiu, gradualmente as defesas do navio invadido foram sobrepujadas pela loucura fomentada pela ganância dos piratas. Apenas cinco defensores permaneceram de pé, estavam cercados. Dentre eles, o capitão Gordon ainda mantinha o sabre em riste. Não desistira ainda de proteger o ouro do navio, não entregaria as riquezas de um homem que trabalhou por elas para gatunos sem moral ou valores.
Vestindo-se de coragem para disfarçar o medo que sentia, Gordon provocou:
– Pararam por quê? Estão com “medinho”? Vocês não passam de um bando de bosta! – O capitão sentia nojo daquelas pessoas. Imorais e repugnantes, nenhuma desgraça justificaria as ações imperdoáveis do bando. Suas almas já estavam condenadas.
Gordon teve uma criação extremamente rígida, seu pai prezava excessivamente pela lealdade e honra. Jamais sequer pensou em transgredir qualquer princípio que tinha, mesmo que fosse justificável. Era um homem quase cego pelas suas convicções.
A corja riu. A passos lentos e ritmados, Le Fantôme surgiu entre seus comandados. Tinha traços delicados, provavelmente era bastante jovem. Por baixo do sobretudo branco, vestia uma camisa gelo e um colete preto. Calções até abaixo dos joelhos, meias e sapatos afivelados. O capitão era elegante demais para ser um pirata, o cinto caído de lado comportava a bainha da rapieira e mais duas pistolas. Ao aproximar-se de Gordon, o capitão removeu o chapéu de três pontas deixando os cabelos molhados caírem na testa. As madeixas lisas eram curtas, ficavam compridas conforme se aproximavam da franja.
– Se tivéssemos “medinho” – debochou – Não teríamos desgraçado com a sua tripulação com tanta facilidade. – Le Fantôme riu, a risada era sincera. Realmente vira graça na resposta que deu ao capitão derrotado. – Agora não dê mais trabalho. Sai fora para pegarmos o que viemos buscar.
– Não tem nada no navio além de especiarias para o mercador que é o proprietário da embarcação. – Gordon blefou, mas sabia que era inútil.
– Por que você fala com tanta pompa, senhor engomadinho? – O pirata zombou imitando o sotaque inglês de Gordon, todos riram. – Sabe, um pássaro me contou que lá em baixo, tem doze baús cheios de moedas de ouro.
– Sua informação está errada, meu senhor.
O capitão pirata sacou uma de suas pistolas e atirou em um dos homens que estava ao lado de Gordon, o homem gordo despencou no chão.
– Baloir, mandem tirar este balofo dali. Jogue ao mar, a cara dele não me agradou. – Le Fantôme demonstrava sua natureza instável e insana. – Meu amigo enferrujado, pare de falar tão “certinho”, você está me tirando do sério.
O pirata se referia à aparência de Gordon, que era ruivo e tinha sardas no rosto. Indignado, perdeu a cabeça, irritado com as informações que o pirata tinha. Caminhava em desafio em direção ao seu opositor:
– Seu monte de lixo! Quem você torturou pra ficar sabendo disso?!
Le Fantôme gargalhou antes de responder Gordon:
– Não torturei ninguém, mas você acabou de confirmar. – O capitão brincava com a mente de Gordon, agora só precisava pegar os baús e colocar em sua fragata.
O capitão McHarty sentiu-se como uma mosca em uma teia, quanto mais se mexia, mais preso ficava. Quanto mais tentava se safar, pior era sua situação. Como última cartada, tentou um acordo com o invasor:
– Então faremos um duelo. Só eu e você. Se eu vencer, vocês vão embora. Se eu perder, podem levar tudo.
O acordo era inocente, Le Fantôme jamais aceitaria os termos. Mesmo que fosse derrotado, seus marujos não cumpririam a promessa. Contudo, o pirata viu uma oportunidade de divertir-se com o “ferrugem”.
– Acordo fechado! Se me vencer, dou-lhe a minha palavra que meus homens irão embora. Baloir, meu primeiro imediato, garantirá que o acordo seja cumprido, certo mon ami?
– Claro capitão. – Concordou com um sorriso amarelo de canto de boca.
– Então matem os outros! – Le Fantôme não mostrava sequer uma ponta de compaixão com os seus prisioneiros. Imediatamente, Baloir e mais dois piratas dispararam e mataram os demais guardas que se mantinham de pé contra os atacantes. – Alimentem os peixes com estes inúteis.
Gordon ficou furioso, sentiu-se traído, jamais deveria ter feito um acordo com um pirata.
– Por que você fez isso? Tínhamos um acordo!
– Não entendi. Não me lembro da parte que você disse que eles tinham que ficar vivos. – O capitão demonstrava todo o seu cinismo enquanto provocava o último defensor do navio.
– Morra MALDITO! – Gordon avançou com todo rancor em cima do pirata que ainda ria.
Com a mão erguida, segurando o sabre acima da cabeça, Gordon atacou mirando o rosto do adversário. O capitão pirata deu um passo para o lado e desviou o ataque com a espada, fazendo-o golpear o chão. Após dar um giro, o último defensor do ouro tentou um ataque horizontal, cortou o ar. Le Fantôme após abaixar-se em defesa, provocou mais uma vez:
– Uma mulher luta melhor que você, “ferrugem”!
De trás, entre a tripulação invasora, fez-se ouvir um velho caolho, que também não tinha uma das orelhas:
– Cuidado capitão.
Le Fantôme desta vez bloqueou o golpe de Gordon, o chutou, girou e sacou a outra pistola do cinto. Atirou na cabeça do velho que havia lhe proferido o alerta. Sentiu-se alvo de chacota, como ousa a duvidar da habilidade do grande capitão em combate? O ocorrido esgotou a paciência do pirata que partiu para encerrar a peleja.
Tentou uma estocada no peito, bem aparada por Gordon. Logo em seguida, um ataque descendente também bloqueado pelo capitão do navio. Le Fantôme girou o sabre de Gordon com a própria rapieira, afastando-o para o lado. Segurou o pescoço do adversário e encostou-lhe na barriga sua espada. Gordon estava rendido.
Deu uma joelhada entre as pernas do oponente e tomou-lhe o sabre. Com o cenho franzido, completamente sem paciência, caminhava em direção a sua fragata.
– Tragam-no a bordo, gosto de otários corajosos. Ponham-no a ferros. – Após dar as ordens, uma mudança repentina de humor agitou toda a corja que chamava de tripulação. Jocoso e triunfante gritou. – Carreguem o ouro, vermes!
Contorcendo-se de dor no chão, Gordon foi arrastado pelo convés pelos braços até uma prancha improvisada entre as duas embarcações. Antes de ser jogado em uma cela dentro do navio pirata, pode ver de soslaio os bandidos carregando os baús. Todos sorriam mostrando os dentes podres, quando tinham dentes. Gordon não reagiu, fracassou em sua incumbência, não pode defender o navio. Jamais se perdoaria por não ter vencido um pirata, um criminoso sem escrúpulos. Cabeça baixa, derrotado e humilhado, amaldiçoava o mercador em seus pensamentos: “Histórias para assustar criancinhas, não é?”.
***
Gordon sempre fora um bom cristão, um homem incorruptível. Repudiava todos criminosos, contudo, ao contrário do que foi ensinado, não acreditava que pudessem ser perdoados. Agora na cela em uma embarcação tripulada pela escória da sociedade, pensava nas coisas que queria ter feito. Tinha certeza que não receberia clemência, não do homem que executou os pobres guardas a sangue frio. Almas pútridas. Como pode ser que sejam dignos de redimir-se? Depois de atos atrozes para enriquecer as custas do trabalho alheio. Desejou que queimassem no inferno.
Em sua cabine, Le Fantôme penteava os cabelos para trás. Até mesmo sua tripulação estranhava tamanha vaidade, sempre perfumado e bem vestido. Os espólios do saque já causavam burburinho entre os marujos, queriam saber como seria feita a divisão do ouro. Não que fossem investir em seus futuros miseráveis, mas estavam ansiosos para financiar uma noite de pecados.
O capitão da fragata já havia deixado extremamente claro ao seu primeiro imediato o destino do ouro, o que desde o início da empreitada exaltou os ânimos entre os dois. Baloir não acreditava na promessa que ouviu do capitão, certamente estava bêbado quando disse. Atacavam e pilhavam juntos há mais de anos, tinham altos prêmios por suas cabeças. O primeiro imediato já teria esquecido tais palavras não fosse uma das frases feitas de seu capitão “Surgir, vindo do outro lado, é fácil. O verdadeiro desafio é desaparecer. Um dia vou desaparecer. Diante dos olhos de todos”. Baloir conhecia os métodos de seu capitão, apesar da destreza assustadora, fazer o inverso parecia impossível. A dúvida incomodava Baloir.
Disposto a convencer Le Fantôme de desistir da promessa, o primeiro imediato entrou na cabine do capitão:
– Capitão, a tripulação quer saber quando vamos gastar nosso ouro.
– Não vamos, Baloir, sabe bem o destino do ouro. E do meu também. – Sempre sorria, olhos espremidos e mostrando os dentes brancos.
– Só pode ser palhaçada! Você estava bêbado, só pode ter sido efeito do rum.
– Estava completamente sóbrio, meu amigo. Agora sai fora, não vou mudar minha opinião e sabe bem disso. Se quiser ficar com o ouro, vai ter que tomar de mim. – Caminhou em direção ao brutamontes que era Baloir. Alto e parrudo, era capaz de esmagar o crânio de um homem com as mãos. A cena era no mínimo estranha, o homenzarrão recuando frente ao pequeno e franzino Le Fantôme.
Baloir apenas fechou a cara e saiu, não estava acreditando. O maior roubo que fizeram seria desperdiçado com asneiras.
A amante do capitão havia sido presa, as acusações eram todas falsas, mas atingiram o ponto fraco do pirata. A moça seria enforcada caso Le Fantôme não pagasse a ”fiança”. Guardas corruptos. O capitão não tinha o direito de acusá-los, estava diversos níveis acima na escala da criminalidade. Baloir não compreendia a paixão de Le Fantôme pela prostituta que tirou do cabaré, Fanelle. A moça era realmente linda, pele clara, cabelos negros e ondulados, olhar forte e sedutor. Na mente do primeiro imediato, poderia ser até a mulher mais linda do mundo, não valeria doze baús de ouro. Com esta quantia, se deitaria com todas as belas mulheres da França.
Le Fantôme não disse apenas que iria usar o ouro para resgatá-la, iria se aposentar. Iria viver escondido em algum lugar da Europa, em paz com a sua amante. Baloir não entregaria com facilidade a maior quantia que conseguiram pilhar em toda “carreira”, organizaria um motim.
O capitão ajustou o curso de volta para a França, pela manhã estariam de volta ao seu país.
A noite chegou e acendeu o espetáculo celeste. A lua transformava o mar em um imenso espelho iluminado. Completando o domo negro, as estrelas desenhavam todas as formas que um sonhador pudesse imaginar.
Isolado em seu cárcere, Gordon sofria com sua insônia. Na calada da noite, recebeu a companhia do fantasma. Após chegar sorrateiro, socou as grades fazendo o prisioneiro sentar-se assustado.
– Levanta, marujo! – Le Fantôme, mesmo durante a noite, estava impecável visualmente.
– Veio me executar? – Gordon estava sem esperanças, já havia orado por seus pais e pedido perdão pelos pecados.
– Se quiser que eu te mate, será um prazer. Mas, você merece viver. E sabe o por quê? – Gordon percebeu o engodo, não seria enganado novamente.
– Não vou cair na sua conversa de novo, lixo. Acha que acreditei quando aceitou o acordo?
– Então por que sugeriu? Vou te dizer o motivo de estar vivo: você é um idiota!
O prisioneiro imediatamente revoltou-se, não iria ficar ouvindo insultos, mesmo dentro de uma cela:
– Idiota é a puta que te pariu. Você só pode ter nascido em um prostíbulo, filho de uma cadela viciada. Só isso explicaria suas atitudes nojentas!
O pirata riu, gargalhou generosamente com os insultos. Considerou fortemente em usá-los na sua próxima discussão.
– Deixa eu explicar, ferrugem. Não é nada disso que você está pensando. – Aproximou-se um pouco da cela, fazendo perceptível seu aroma floral. – Pessoas idiotas fazem coisas grandes. Gente normal vive sem fazer nenhuma loucura. Olha bem pra mim, eu sou um idiota. Acabei de roubar doze baús de ouro de um mercador ligado à coroa britânica, isto não é grande?
Apesar de diabólico e insano, o discurso do pirata tinha embasamento. Gordon apenas se rejeitava a aceitar, apesar de estar parcialmente inclinado a concordar com o capitão.
– Você é louco. Isso que você é. Um sádico. O que vai fazer com tanto ouro?
Novamente, Le Fantôme riu. Via graça na inocência de seu prisioneiro:
– Eu poderia fazer infinitas coisas com todo este ouro. Que pergunta besta. Mas, nunca saberá o que pretendo fazer.
Gordon só podia imaginar heresias ao cogitar o destino dos espólios conquistados pelo capitão. Le Fantôme sorriu para o prisioneiro e seguiu para sua cabine. Teriam noites completamente diferentes, e curiosamente invertidas.
A noite em nuvens deveria pertencer ao orgulhoso capitão, que realizara o maior feito de sua “carreira”. Sonharia a noite toda com as intermináveis possibilidades de usufruir a fortuna que roubou, mesmo que esta fortuna fosse gasta toda de uma vez para libertar Fanelle. As perturbações e pesadelos atravessariam as grades da cela para penetrar na mente confusa e amedrontada de Gordon.
Apenas em teoria.
O ferrugem teve uma tranquila noite de sono, a insônia havia sido espantada pela conversa com o pirata. Por mais relutante que estivesse as palavras do capitão o acalmaram.
Le Fantôme em sua cabine suava frio, ansioso. Estava tudo preparado para o desembarque na França, esta teria de ser sua mais esplendida demonstração de poder. Tinha de ser impecável, caso contrário, a corda esticada seria seu atalho para o “outro lado”. O aperto no peito e a mente tomada por um turbilhão de simulações do dia seguinte raptariam seu sono.
O dia raiou e estavam todos prontos. Balior, Gordon e Le Fantôme.
O primeiro imediato não teve dificuldades em organizar o motim. Havia ouro suficiente para toda a tripulação, Balior prometeu dividir igualmente toda a quantia. Afinal, é melhor uma pequena parte do que parte alguma. Todos o apoiaram, sem exceções.
Gordon acordou sem saber qual seria seu destino, estava confiante de que seria poupado. Independente da libertação que receberia, mesmo que a da vida terrena, estava em paz.
Le Fantôme despertou junto com a primeira luz do dia, antes de o sol mostrar-se por completo, o capitão já saboreava uma garrafa de rum. Aguardando a hora do desembarque, fechava os olhos tentando reviver as noites de amor com Fanelle.
Do lado de fora da cabine, Baloir dava as instruções para a rebelião:
– Escutem bem, seus idiotas. Não importa o que aconteça, não façam tumulto. Não entrem todos lá.
– Mas somos muitos contra um só. Que medo é esse? – indagou irônico um marujo.
– Eu conheço os métodos do “fantasma”. Então se querem aquele maldito ouro, sugiro que calem esses malditos bueiros que chamam de boca!
Baloir era o mais íntimo amigo do capitão, na verdade o único. Ainda assim, não sabia de onde viera ou que vida levava antes de entrar para a pirataria.
– Tentei, capitão. Mas você é muito burro. Estamos tomando o navio, e o ouro também. – Disse o primeiro imediato entrando na cabine onde estava seu capitão.
– Você não pode me matar, meu amigo. Eu não pertenço a este mundo. – Le Fantôme dizia sentado, com a garrafa na mão. O sorriso parecia ainda mais insano e sádico.
– Eu sei como faz suas “aparições”. Tomei cuidado para que você não tente sumir para o “outro lado”. – Baloir debochava enquanto dizia.
No convés, iniciou-se uma agitação entre os marujos. Baloir não podia tirar os olhos de Le Fantôme, o capitão era escorregadio demais. Gritou para tentar descobrir o que se passava:
– Que diabos que está acontecendo aí?
– Estamos cercados, Mestre Causeur! – respondeu um homem qualquer. – Três galeões da marinha francesa nos cercaram!
De imediato, o sadismo extra no rosto de Le Fantôme foi explicado. O pirata havia feito um acordo com a guarda francesa, com certeza tinha um palpite de que seu primeiro imediato não era tão confiável.
– Cão sarnento! Filho de uma porca! Traidor!
– Eu apenas me protegi, Baloir. Imaginei que pudesse organizar um motim ao saber meus planos para os nossos espólios. Tomei minhas providências.
– Tudo isso por uma prostitutazinha de quinta! Eu vou te matar, Le Fantôme! Vou te mandar pro INFERNO!
– Então que todos que se sentirem traídos me enfrentem, ataquem-me todos. Venham me matar. – O capitão ria descontroladamente, era um jogo. Induziu os marujos com cabeça de minhoca a entrarem na cabine. Com o alvoroço devidamente armado, poderia cumprir com a sua promessa de desaparecer.
– Não entrem, imbecis! É isso que ele quer, ele vai fugir! – Baloir tentava controlar os marujos desesperadamente. Quando não podia mais conter o avanço furioso dos homens abobalhados, virou-se e olhou para o capitão pela última vez. Não pode ouvir o que disse, mas viu claramente em seus lábios as palavras que já ouvira por diversas vezes em outras ocasiões.
”Um dia vou desaparecer. Diante dos olhos de todos”.
O dia havia chegado. Em poucos segundos, a cabine estava toda tomada. Baloir não conseguiu localizar o capitão. Nenhum marujo o viu mais, parecia ter sumido realmente. Os poderes do fantasma eram reais.
Em poucos instantes, os galeões já estavam emparelhados com a fragata errante. O capitão de um dos navios da marinha subiu a bordo do navio rendido, seguido de mais onze guardas dirigiu a palavra a todos na embarcação pirata.
– Bom dia, senhores. Sou o capitão da marinha francesa, Remí Fadeux. Os senhores estão todos sob minha custódia agora, assim como esta embarcação. Vocês são acusados, além de outros crimes, de pirataria, para o qual a pena é a morte. Eu e meus guardas iremos conduzir este navio até o porto, de onde irão para prisão aguardarem suas execuções. Sei também que está aqui, o pagamento da fiança de uma certa prisioneira. Por favor, apresente-se quem for Baloir Causeur!
As palavras do homem geraram um pequeno reboliço entre os criminosos, contido sem muitos esforços por parte dos guardas que acompanhavam o capitão. Baloir estava perplexo, a mente de Le Fantôme já havia previsto todos os desfechos possíveis, deixara tudo preparado. Sem escolha, apresentou-se ao capitão da marinha.
– Mostre-me onde estão os baús, meu caro. – A cordialidade irônica de Remí fervilhava o estômago de Baloir, se pudesse já teria enfiado-lhe uma bala entre os olhos.
– Seu desejo é uma ordem, admirável capitão! – Disse cínico.
Remí fez um gesto com a cabeça para um de seus guardas, que acertou a barriga do primeiro imediato com o mosquete que empunhava.
– Outra gracinha, e mando ele cutucar com a baioneta o seu bebedor de lavagem! Leve-me até o ouro, rápido!
Desceram ao compartimento de cargas, onde também ficava a cela que Gordon ocupava. Baloir explicou que era um prisioneiro, era o capitão do navio que roubaram.
– Por Deus, soltem este pobre homem. – Remí pouco se importava com o destino de Gordon, os olhos tremiam inquietos com a visão dos baús abarrotados do metal amarelo. – Dez baús de ouro… Exatamente o preço da fiança de nossa prisioneira. Levem para cima. – ordenou aos seus guardas.
– Dez? E os outros dois?
– Outros dois? Está louco, meu caro. Só vejo dez baús ai, pode contar.
Baloir contou, recontou, recontou mais uma vez. Por inúmeras vezes o pirata contou os mesmos doze baús que roubaram no dia anterior. Provavelmente, os outros dois ficariam com o capitão da marinha francesa.
***
Ao atracarem no porto, toda a guarda dos galeões, com exceção dos que acompanhavam os piratas recém-capturados, faziam a escolta da remoção dos baús da fragata. Baloir era o último da “fila” que deixava o navio, divagava enquanto caminhava. Ainda não acreditava como Le Fantôme havia escapado, o bastardo tinha mesmo poderes sobrenaturais? Acreditava piamente que nunca descobriria a verdade. Aos seus ouvidos chegou o som aveludado de uma voz que não lhe parecia estranha. Os dizeres, porém, eram inconfundíveis:
– Farei visitas a você, em minhas eventuais passagens pelo outro lado.
As palavras cortaram a espinha de Baloir, ficou eriçado com o que ouviu. Ficou alerta no mesmo instante, olhou a grande rede presa no guindaste que removia os baús da fragata. Um, dois, três. Quanto mais próximo do fim da contagem, mais nervoso ficava. Sete, oito, nove, dez. Dez baús, dez malditos baús. Um dos botes da fragata não estava mais lá. Era óbvio o que havia acontecido, poderes sobrenaturais uma ova, pensou. Tomado de fúria, olhou ao redor e não encontrou o fantasma. A voz não era a do capitão, mas não podia ser outra pessoa.
– Apareça seu infeliz! EU VOU TE MATAR! – Esbravejava a plenos pulmões, quando foi nocauteado por uma forte pancada em sua têmpora.
***
Gordon sentia-se diferente, além de perdido. Não falava a língua local e estava muito longe de casa. O ouro içado no guindaste o incomodava, tinha dono e deveria estar com ele. Como um estalo em seus pensamentos, lembrou-se da conversa que tivera com Le Fantôme. Pessoas idiotas fazem coisas grandes. Aqueles baús não pertenciam àqueles homens, e se não fossem ficar com o verdadeiro dono, então devia pertencer a quem precisa.
Gordon aproveitou-se do burburinho que se formou em volta do revoltado primeiro imediato do navio pirata. Surrupiou uma pistola de um dos guardas, que por estar tentando conter o pirata, não notou o furto. Ali mesmo, em meio à pequena multidão, disparou contra a corda do guindaste. A corda não se rompeu de imediato, mas o peso da carga a fez partir-se. Os baús se abriram ao cair, todo o ouro ficou espalhado pelo chão. Da mesma forma como pombos se aglomeram para disputar as migalhas de pão arremessadas por velhas senhoras, todas as pessoas do porto avançaram sobre as moedas reluzentes. A guarda tentou impedir o avanço da plebe, sem sucesso. Remí ficou em choque, nada podia fazer. Aquele ouro não existia legalmente. Era um suborno cobrado para “liberar” uma “prisioneira”. Em verdade, era o resgate de um seqüestro.
O rapaz sorria frente sua proeza, ninguém se importou com o disparo. Quem o faria, com tantas moedas no chão? Os rígidos valores que o pai lhe ensinara, desfizeram-se como um torrão de terra jogado na água. A vida era curta demais para seguir dogmas cegamente, a justiça em sua mais pura forma nem sempre era facilmente aplicável. Os parabéns vieram de uma voz delicada que carregava o inconfundível perfume floral do capitão que o “libertara”:
– Muito bem, ferrugem. Você é um idiota.
Não se deu o trabalho de virar-se para checar quem era. Definitivamente era Le Fantôme, apesar da voz diferente. Girou sobre os calcanhares e seguiu seu caminho, um caminho sem destino. Desejou que o fantasma o abençoasse em sua nova vida, que olhasse por ele do “outro lado”.
***
Fanelle fora libertada assim que os navios atracaram no porto, Remí ordenou sua soltura assim que tinha o ouro em seu poder. O que mais tarde se provou um grande erro.
***
Logo que saí da prisão, me deparei com uma carruagem. Não sabia com certeza se era ela. Fiquei parada observando, quando a porta abriu e aqueceu meu coração. Com as roupas masculinas que lhe caíam tão bem, me recebeu com o mesmo sorriso espremido, que acalmou minha alma e me encheu de esperanças. Seus segredos e seus métodos sempre estiveram a salvo comigo, desde a primeira noite que passamos juntas. Agora ela não precisaria se esconder mais, sonho com o dia em que poderei pentear seus longos cabelos e ajudá-la e despir-se de belos vestidos. Joguei-me em seus braços, sua voz doce sempre dizia o que eu precisava ouvir.
– Acabou, Fanelle. Tudo o que desejo agora é poder viver o nosso amor.
Não consegui dizer nada, apenas entrei na carruagem. A porta se fechou e a beijei, intensamente. Aconcheguei-me em seu colo, encostei o rosto em seu seio. Apenas estranhei a presença de duas coisas no canto da carruagem.
– O que são estes dois baús?
– São os meios para o nosso fim, meu amor. Que será também o nosso recomeço.
Do fundo do meu ser, as palavras mais sinceras que podia dizer naquele momento foram:
– Eu te amo, Villeneuve.
Muito legal. Vou compartilhar, ok? Citando a fonte, claro.
Fala aí, Lucas!
Cara, eu tenho uma certa afeição por histórias de piratas, vikings, pescadores de baleia, ativistas do Green Peace e outros malucos que saem navegando pelos mares com os mais diversos fins.
Então posso dizer que logo de cara já entrei em sintonia com a narrativa (acho que o meu gosto por esse tema vem da imensa facilidade que tenho para imergir nesse tipo de cenário, tenho percebido isso nos últimos tempos… começou a falar em mar revolto eu já me sinto lá balançando dentro do barco).
De um modo geral, eu gostei do conto, é uma boa aventura… encarei como um daqueles filmes gostosos da sessão da tarde, que de vez em quando é legal assistir.
Achei bem bacana a surpresa no final e o talento de “teleporte” do capitão deu um “charme” especial.
Alguns pontos, porém, poderiam ser melhorados, na minha opinião:
– não conseguiria fugir da fragata que cortava as ondas alimentada pela ganância de seu capitão
– Os fora da lei já empunhavam seus sabres e machados, a cintura com três ou mais pistolas carregadas cada um
– não entregaria as riquezas de um homem que trabalhou por elas para gatunos sem moral ou valores
>>> Em algumas frases, como essas, o uso (ou o não uso) da vírgula gerou uma certa ambiguidade que poderia ser eliminada.
– pairava as tabernas
>>> pairava sobre as tabernas
– A trilha sonora da batalha que seguiu, entre tripulantes e guardas do cargueiro contra os piratas invasores, era metálica e explosiva
– sons abafados de carne sendo dilacerada, ossos sendo quebrados e vidas sendo ceifadas
>>> Eu acho legal a descrição dos sons. É algo que muitas vezes me esqueço nos meus contos. Na segunda sentença, no entanto, essa sequência de “sendo” tirou um pouco o impacto.
– a morrer por um patrimônio que não os pertenciam
>>> não lhes pertencia
– passos ligeiros o transportava
>>> Concordância
– De uma hora para outra “Baloir” virou “Balior”
Além disso, me incomodou um pouco o fato dos personagens soarem praticamente iguais nos diálogos. Apesar de vez ou outra o narrador comentar que um tinha sotaque francês, outro falava certinho, etc., na prática todo mundo ficou muito parecido – xingamentos, frases um pouco teatrais e tal.
Tentaria dar uma peculiaridade na fala a eles, para que ao ler o diálogo o leitor já soubesse quem estava falando antes de ler o “- disse Baloir/Capitão/Gordon”.
Ufa, era isso! Bom conto.
Demorei, mas comentei! 😀
Abração!
Muito obrigado pelo parecer, Fábio!
É um conto antigo retirado do fundo dos meus arquivos, tenho um certo apreço por ele.
Obrigado pelos alertas, darei mais atenção nas próximas vezes.
Ah, eu também sou grande fã de histórias no/sobre o mar.
Abraços!!!
É sempre uma honra ler e comentar os contos da galera.
Cara, esqueci de falar: seu conto me deixou com uma puta vontade de jogar Assassin´s Creed IV: Black Flag!!! kkkkkkkk
Tem bem o climão do jogo (o melhor Assassin´s Creed que joguei até hoje, diga-se de passagem).
Abração!