EntreContos

Detox Literário.

O Balanço (Ricardo Labuto Gondim)

É nas tardes de sexta-feira que os Senhores de Engenho do mercado de comunicação recordam: algo que já deveria estar pronto ainda precisa ser feito. É fácil compreendê-los. Não criam, não redigem, não ilustram, não fotografam. Na vida, quando alguém não sabe fazer nada geralmente fica no controle de tudo. E raramente quem manda tem compaixão por quem obedece.

O camarada ao telefone estava fechando a revista quando ‘descobriu’ um hiato de três páginas. Voltada ao universo masculino – e abrandando o viés ginecológico das fotos com alguma simulação de inteligência – a publicação agonizava. As três páginas em branco eram o indício de três anúncios cancelados.

“Ok”, eu disse, “escrevo um artigo sobre as bacanais na música clássica”, já planejando utilizar algum material de gaveta para cumprir o prazo na segunda-feira. Não, não me envergonho. Todo e qualquer trabalho intelectual embute certo elemento de prostituição. Publicitários recomendam o que jamais comprariam. Advogados libertam criminosos notórios. Detendo um poder maior, jornalistas são piores que publicitários e advogados.

Conheço muita gente que sentaria ao teclado para redigir uma merda qualquer. Mas eu queria descobrir o sentido oculto das coisas, desvendar algo desconhecido ou nublado, dissecar as aparências. O material que pretendia reciclar guardava um interesse humano. Por alguma razão a ser investigada, o tema da ‘bacanal’ gerara páginas musicais arrebatadoras. Como na ópera ‘Sansão e Dalila’ de Saint-Saëns, no ‘Tanhäuser’ de Wagner, na sinfonia ‘Manfredo’ de Tchaikovsky, no balé ‘Bacchus et Ariane’ de Roussel e por aí vai. Escrevendo para revistas, penso sempre nas ilustrações. Não faltariam imagens vigorosas para contrabalançar o púbis de uma garota de passado extenso, fama transitória e futuro duvidoso.

O visionário do outro lado da linha recusou. Queria algo “mais quente”. Reparou no sangue frio do cara? A diagramação inacabada, o prazo da gráfica explodindo, o circo incendiado, o rabo do palhaço em chamas no picadeiro e o sujeito em banho-maria. É o que a maioria das pessoas observa em tais casos, “como esses executivos são frios…”.

Meu amor, pensa direito na coisa: o palhaço sou eu. Se topo, o camarada desliga o telefone, vai pra casa, sai pra jantar, corre até a amante ou aluga uma Afrodite enorme, refinada, do tipo que desdenha a Victoria’s Secret e compra lingerie na Aubade. Por quê? Porque sou eu quem apaga o fogo, meu bem. A tranquilidade dele repousa suavemente no meu desespero. É fácil. Mas é muito fácil. Ele sabe que eu preciso do dinheiro. Se não topar, outro topa, o problema efetivamente está resolvido a priori e a posteriori.

Isso não me impede de reconhecer o valor do homem. Geralmente, em tais casos, os espíritos penetrantes sacam o que chamamos de ‘calhau’. Matéria empoeirada do fundo da gaveta dele: ‘de como um pequeno comerciante de açúcar chamado Davidoff descobriu o sabor incomparável dos charutos cubanos; de como acumulou uma fortuna indecente comprando tabaco enrolado a preço de banana e vendendo aos banqueiros suíços; de como sua riqueza foi substancialmente ampliada pelo perfume agradável e másculo que estampa o seu nome’. Eis o espírito do calhau.

O editor insistia em “algo quente”, e a ideia das “surubas sinfônicas” causou o arroubo de sua imaginação tropical: swing. A troca de casais.

Há tempos a revista explorara o tema em São Paulo, seria ótimo obter a versão carioca. “Hoje é sexta-feira”, ele disse, acentuando o ‘sex’ como se a banalidade da expressão não fosse mais vulgar que o seu propósito. “Vai pra internet e descola um endereço. Swing é quente”.

Descobri um encontro de ‘swingueiros’ no Centro financeiro da cidade, vivamente alardeado na web. O ingresso somente era permitido a casais. Solteiro, tinha amigas dispostas a espreitar – espreitar, eu disse – os ‘umbrais secretos do erotismo’. Naquele caso de necessidade, nenhuma estaria disponível, a vida é assim e eu nem tentei. (Não, nada iria a acontecer. Primeiro, eu sou profissional e estaria trabalhando. Segundo, não partilharia uma mulher com outro homem mesmo que a mulher fosse dele.)

Liguei para o ‘clube’ e fui atendido por uma voz de hortelã. Me identifiquei como jornalista, nomeei a revista, etc. Nada de segredos com algo tão delicado. Ela pediu os meus dados e disse que ligaria em seguida.

O marido ligou. Tinham pesquisado meu nome no Google. O que eu desejava? A versão feminina de Virgílio. Uma mulher que conhecesse o ambiente e a prática para vagar comigo pelo labirinto e me instruir. Não iria participar de nada. Queria observar e entender. Sim, eu pagaria o ingresso, não estava cavando um 0800. Dez da noite? Combinado.

Cheguei às onze rescendendo a Davidoff. O lugar era uma espécie de boate improvisada no casario antigo, espremida entre prédios altos e espelhados. O puteiro carioca clássico. Uma casa de massagens alugada e adaptada para fins peculiares – mas não adversos. Como surgi sozinho, fui delicadamente interceptado por um negro enorme, de terno, gravata e anacrônicas abotoaduras de ouro. Abreviei minha história e descobri que era esperado. O camarada sabia o meu nome.

— Renato… Que sobrenome é esse?

— Minha mãe era inglesa, mas meu pai era Silva.

— O meu também.

— Então a gente tem algum grau de parentesco.

Sorri. Ele avaliou meu bronzeado padrão escritório e sorriu de volta.

— É isso. Um tio em Moçambique.

O humor inteligente me aquietou. Com um segurança obviamente escolhido a dedo, o negócio devia funcionar em moldes profissionais – e eu sou profissional.

Silva, o meu primo distante, sacou um rádio do bolso. Em cinco minutos surgiu uma mulher quase bonita de trinta e poucos anos, perfumada, bem vestida, mas sem ostentação. Ela me conduziu como uma hostess ao balcão à esquerda da portaria. Gestos e andar elegantes. Relógio do-tipo-que-não-se-usa-em-qualquer-lugar. Sapatos do melhor. A recepcionista, uma mulata espetacular me cumprimentou antes que eu abrisse a boca (“Bem-vindo, Renato”) e perguntou a forma de pagamento. Decididamente isso é profissionalismo, pensei, tudo vai bem. Paguei, recebi um cartão magnético e o aviso de que viraria abóbora às cinco da manhã.

Diana, a minha acompanhante, explicou que “a casa” tinha três andares e um terraço descoberto. Ela me guiou direto para o alto como uma Beatriz silenciosa. Passei por escadas estreitas, corredores em trevas, um ambiente de música eletrônica insuportável e cruzei com pessoas que não me olharam nos olhos. Então me vi sob o céu sem estrelas. Bonita a visão dos telhados do casario, mesmo conspurcado por fachadas de alumínio que não dissimulavam a decrepitude. Bar concorrido. Alguns casais em mesas redondas com sombrinhas. Dos sapatos aos penteados, elenquei a democracia.

Levei Diana para uma mesa, perguntei o que ela bebia e fui buscar os lubrificantes sociais. Ela pediu uísque, eu não arrisquei. Uísque batizado é cocaína liquida. Pedi uma marca de cerveja aguada, popular entre caminhoneiros estadunidenses e yuppies cariocas. Voltando, observei que Diana me estudava atentamente e que ela era a típica beldade inconsumada. Por um tantinho assim escapara de ser bela.

— O que você faz? — Perguntei. — Trabalha aqui? Organiza o evento?

— Não. Mas eu frequento swing há onze anos. Conheço todo mundo em todas as casas do Rio. Em outros lugares também.

Minha hostess também fora escolhida a dedo. Notei a breve reticência na menção aos “outros lugares”. Foi de propósito.

— Então, Diana, o que você faz quando não está tentando me seduzir?

— Eu? Tentando te seduzir? Você deve ser ruim no que faz. Sou médica.

— Você pode me examinar se não for legista.

Ela me concedeu um sorriso frio.

Gineco.

— Melhor não. Me diz uma coisa. A verdade. Eventualmente seus colegas têm tesão nas pacientes?

— Normal. Eu tenho. Sou bi. Aliás, o swing existe por causa do bi feminino, você pode anotar.

— Pensei que fosse pelo desejo de variedade.

— Hum-hum. Mas a maioria das mulheres daqui está em busca de outras mulheres.

— Não entendi.

— A bissexualidade é o lado mais lúdico da sexualidade feminina.

— Por mim, tudo bem, mas não li isso em Freud.

— Freud era muito puritano em matéria de sexo — ela disse com malícia.

— Freud? Puritano?

— Sabe qual era um dos tratamentos da histeria no tempo dele? ‘Paroxismo histérico’. Orgasmo feminino induzido pelo médico. Freud e seus amiguinhos eram todos… — Ela ia empregar o termo popular, mas li a mecânica da mudança. — Onanistas. Ele nunca entendeu o que as mulheres querem.

— Se eu soubesse estaria rico: alguma chance de você me contar?

— Carinho, atenção, verdade e uma língua atlética, paciente. Uma mulher pode ser muito feliz com isso. Vocês homens gostam de coito, nós gostamos de sexo. Sexo é muito mais amplo, e em outras mulheres a gente sempre encontra o que deseja. Não deixe a sua experimentar. — Ela sincopou a frase: — Em caso de emergência existe o vibrador. Não tenho medo de ficar sozinha, só de ficar sem pilhas, sabe?

Não sabendo, deixei que o meu ‘idealismo romântico’, essa amarga mistura de insegurança e hipocrisia me socorresse.

— Você nunca encontrou carinho, atenção e verdade num homem?

Agora ela me estudava francamente.

— Lá fora o problema é a verdade. Aqui, ninguém precisa mentir. Você vem pra cá e traz a sua mulher pro outro cara comer. Mentir pra que?

— Você trouxe o seu marido pra outra mulher comer?

Ela riu com franqueza.

— Sou solteira e gosto de dançar. Se for sozinha numa boate minha noite vai ser um inferno. Vão passar a mão em mim, me aborrecer… Aqui não. Reparou como as pessoas são educadas, falam baixo e não encaram – como você fez na escada e está fazendo agora? Tudo aqui têm que ser consentido. Sem consentimento, rua. Você viu o tamanho do Jorge, o rapaz de terno lá fora.

— Nós somos parentes. Mas você não vem só pra dançar.

— Gosto de homens. Mas prefiro mulheres que gostam de homens. Se ela me atrai, dar um pouquinho pro homem dela não vai ser nenhum sacrifício. O balanço é esse: a troca.

Alguns casais vieram cumprimentar Diana. Ela não me apresentou a ninguém. Intuí que isso era o mesmo que negar qualquer responsabilidade sobre mim. Se algum cavalheiro quisesse me emprestar a esposa, ou se alguma dama me desejasse, assumiria o risco.

Pedi licença e fui buscar outra cerveja. O uísque de Diana permanecia praticamente virgem. Ela degustava, sabia beber e estava no controle.  Fingindo admirar os telhados, me aproximei de uma mesa e escutei. Um sujeito corpulento e uma mulher atraente de meia-idade tentavam seduzir um casal jovem. O rapaz estava claramente desconcertado, remexendo-se na cadeira, arrastando-a no chão de cimento. A esposa se debruçava na mesa sobre os dois cotovelos, apoiando o rosto entre as mãos e conversando muito à vontade.

— Eu disse que ia ser legal, mas ele não queria vir de jeito nenhum. Estou pedindo há meses.

— Essa não é a minha — disse o rapaz abruptamente.

O cara de meia-idade – próspero, de feições grosseiras – proferiu o argumento de bolso mais estúpido, falacioso, trapaceiro, circular e escroto do mundo.

— Mas como é que você sabe que não gosta se nunca experimentou?

A resposta, que o pobre rapaz não soube dar, ricocheteou nos meus molares. “E cianeto de potássio, seu puto? Quer provar pra ter certeza que essa porra mata?” Uma concessão aqui e ali para alegrar a quem se ama faz parte do contrato. Mas isso? Que tipo de amor tinha aquele rapaz, capaz de suportar a violação dos próprios sentimentos? Afastei-me sentido piedade, desprezo e irritação, tudo ao mesmo tempo. A indulgência prevaleceu. O que sei eu? Sou apenas um homem.

Contei o caso à Diana.

— Isso rola muito — ela disse com naturalidade. — Mas geralmente é o cara quem força.

— E as mulheres?

— Mulher é educada pra se humilhar. Somos criadas por outras mulheres. Já reparou como as mulheres enchem a boca pra falar em ‘respeito’? Isso é pra compensar o que rola na intimidade.

— Você obviamente é uma mulher muito orgulhosa.

— Já passei por isso e não valeu a pena. Não quero mais um homem na minha vida. Tenho muitos.

Diana decidiu que eu deveria conhecer o resto da casa. Descemos para o andar de baixo. Havia pequenas cabines como em um prostíbulo barato. Vi dois casais entrando. Puxei Diana pela mão sem aviso, empurrei-a para uma cabine vazia e tranquei a porta. Ela me olhou com frieza.

— Não sou puta. Não vou dar pra você assim.

Levei as mãos aos lábios pedindo silêncio. Vinte ou trinta segundos depois bateram na porta. Sorri. Ela entendeu. Abriu uma fresta e a luz do corredor projetou uma faixa em seu rosto.

— A gente quer ficar sozinho um tempo. Mas muito obrigada.

“Muito obrigada”, entende? Um casal nos elegera e o meu ego decolou acima do terraço e dos telhados machadianos. ‘Isso deve viciar’, pensei. ‘É uma correlação de vaidade, desejo e sedução intrincada’.

Diana me decifrou com um olhar. Era mais lúcida e realista que os filósofos. Sob a lâmpada acesa da cabine – destinada à ação dos membros e à exploração dos tecidos, músculos, glândulas e mucosas – enxerguei um brilho de granito polido nas pupilas dilatadas. Em seu rosto não havia especulação, sonho, utopia ou transcendência. Somente Vida material. Pulsões de um id liberto. Libido pura e primitiva. E o conhecimento detalhado de emoções e sensações que eu desconhecia.

Sustentei o olhar porque sou um ser humano profissional. Experimentado, como todo mundo, nas artes da dissimulação, da mentira e da falsidade. Diana descreveu um arco com a mão e tocou o meu corpo. Os olhos faiscaram. Ela abriu o sorriso de um jogador de pôquer exibindo o trunfo. Um sorriso insuportavelmente sábio, sem cobiça ou qualquer outro anseio. Então eu era – pois já se foram alguns anos – um homem atraente. Como ela confirmava, um homem como qualquer outro. Um casulo treinado para manter o lobo interior sobre controle. Se você não está na penitenciária, é um animal bem governado ou tem dinheiro no banco.

Ela me deu as costas e saiu.

No andar de baixo havia uma área para os exibicionistas. Um quarto com um colchão enorme e uma parede de vidro, como a vitrine de uma loja. Uma garota feia de vinte e poucos anos fazia um strip-tease de pé sobre o colchão. Lingerie escolhida a dedo, com gosto. Do lado de fora, poltronas, sofás, Diana, eu e outros casais. Ninguém além de mim parecia prestar atenção. Um gordinho entrou no aquário, escalou o colchão e embarcou na dança. Em segundos expôs uma roupa de baixo ridícula, mas não teve tempo de tirar. Vomitou subitamente sobre a garota e o colchão. Uma êmese estupenda, a mão tardia somente espargiu o jato em outras direções. Foi grotesco, repugnante, mas as pessoas fingiram não reparar.

Eu estava confuso e Diana percebeu.

— Que porra é essa? — Perguntei.

Seu sorriso foi uma nova glaciação.

— Olha como os dois estão humilhados… Eles dão diploma de jornalismo pra meninos como você? Não é a toa que a imprensa no Brasil é uma merda.

— A imprensa no Brasil não é uma merda. Os donos dos jornais, das revistas e das TVs é que são uns merdas.

Ela passou a língua nos lábios.

— E você é dono de quê?

Senti um desejo enorme pela filha de uma grandessíssima puta que ela era. Não pude evitar, inteligência é um tesão. Eu a beijei, ela respondeu, demorou, ainda sinto o gosto. Depois, sorriu inteira:

— Tem um casal me esperando e ele não topa outro cara.

— Eu também não.

— Ele trouxe a mulher dele pra mim.

— Por mim, tudo bem.

— Só que a gente vai sair.

— Aqui é o ponto de encontro? Não é prático.

— Não. Mas ela tem um casinho com um carinha.

— Quero te ver de novo.

Ela estendeu um cartão com o bastão de Asclépio e a serpente em relevo.

— Me liga amanhã pelo meio-dia. Vamos sair à tarde. E aí, no domingo, você escreve a matéria.

Diana se levantou e desceu as escadas. Um casal a seguiu. O cara virou o rosto em um ângulo que me bloqueou, a mulher me deu as costas. Reparei na bunda sob o vestido colado.

Uma senhora bunda.

Perambulei até a meia-noite. Conversei com quem pude, joguei limpo, me apresentei como jornalista e pouca gente reagiu mal. Tirando o strip com vômito, nada vi de ‘espantoso’. Os casais sequer se tocavam. Aparentemente, fora do perímetro blindado das cabines, o escândalo da noite fora o beijo prolongado de Diana.

Na rua, o dono do negócio me esperava. Obviamente eu passara a noite sob vigilância.

— Tudo bem?

— Fui muito bem recebido. Obrigado por tudo.

—Sabe, a gente encara o swing com naturalidade. As pessoas têm desejos e traem. Nós não traímos. Minha mulher sabe o que eu faço e eu sei o que ela faz.

— Há quanto tempo você é casado?

A pergunta foi brusca, mas é o meu trabalho.

— Quatorze anos. Ela foi a minha primeira namorada.

— E você nunca…

Deixei as reticências vagarem. São armadilhas fatais. As pessoas têm o impulso natural de abreviar o pensamento do outro. Uma compulsão traiçoeira, que não raro precede a queda.

— Nunca menti pra minha mulher, se você quer saber. Ela só não veio se despedir porque no momento está trepando.

Ele disse isso sem animosidade. Prosseguiu.

— Pelo que eu soube, você gostou da doutora.

— Ela ficou de me levar em outro lugar amanhã.

— Existem muitas casas no Rio. Em Copa tem uma boate famosa pelas coroas enxutas. Tem garotão vivendo disso. Pega uma prostituta no Lido, entra, solta a garota lá e segura a coroa.

— Sempre respeitei o profissionalismo.

— Em Madureira tem uma casa mais ‘popular’, mas o forte lá é suruba, outra história. Tem gente que vem aqui e vai lá. Na Barra o terreno é elitizado, mas é o ambiente da garotada. Gente acima de dezoito, não precisa investigar.

— Problema com menor sai caro.

Agora ele parecia contrariado.

— Renato, a gente só quer duas coisas: trepar muito e trepar muito. É um modo de vida. A gente decide o que fazer, como fazer, com quem fazer – e faz. Ninguém fica em casa se masturbando ou maltratando o parceiro porque sente uma frustração enorme. As pessoas que você conheceu vão muito bem, obrigado.

— Você não acredita em monogamia?

— Acredito. E também acredito no celibato. Mas o celibatário tem que ficar na dele, assim como eu não recomendo a minha vida pra ninguém. Tem casal que vem para experimentar e sai daqui com o casamento destruído – embora eu ache que já estivesse destruído antes.

Ele olhou para o relógio em sinal de despedida.

— Espero que você faça uma reportagem honesta.

— É a minha intenção.

— Ótimo. Ficaria grato se você me mandasse a revista. A Diana disse aonde vai te levar?

— Um lugar “diferente”. E à tarde.

As sobrancelhas dele se ergueram.

— Tem ideia de onde seja? — Perguntei.

— Nem imagino.

* * *

Diana fez questão de me buscar em casa no seu próprio carro. Ela havia se exposto e agora queria a contrapartida. Tudo é troca, esse é o balanço. Foi direto ao ponto.

— Solteiro?

— Não sou de me gabar.

— Posso subir e conhecer o seu apartamento? Quero ver como um jornalista freelance vive.

— Em que mês?

Ela saiu do elevador muito à vontade. Jeans, saltos e uma blusa de seda branca. Que sapatos! Deu-me um beijo estalado, passou por mim e foi ler as lombadas nas estantes, o método mais rápido para se apropriar da alma de alguém. Pediu uísque e eu não tinha.

— Cerveja está ótimo, obrigada.

Abri a geladeira na cozinha estreita.

— Copo ou garrafa?

— Uma taça, por favor.

Pobre mulher. Devia estar esperando cerveja belga com brasões, leões e grifos, mas eu só tinha cerveja de trigo com um monge beatífico e rechonchudo no rótulo.

Voltei à sala com as taças e Diana não estava. Deixara rastros na poltrona, em uma mesa baixa e no busto em gesso pintado de um homem celebrizado pela austeridade. Blusa, sutiã meia-taça com aro, a calcinha com as rendas mais elaboradas que já vi e o jeans de etiqueta italiana.

Nenhum sinal dos sapatos.

Naquele apartamento imeeeeeeenso segui a trilha até o quarto. Encontrei Diana exposta na cama… como se o ginecologista fosse eu.

Os saltos finos – muito, muito distantes um do outro – jaziam fincados como agulhas no colchão. Ela era fraudulentamente magra, e por um tantinho assim escapara de ser uma Vênus mitológica. As pernas não tinham o tônus das deusas da aeróbica, mas o vasto lateral e o bíceps femoral se acentuavam na medida certa. A regularidade dos lábios vaginais traía a ninfoplastia. Notei o osso pélvico ligeiramente proeminente, o que às vezes causa desconforto antes que os corpos se acostumem um ao outro. O abdome era liso, sem sinais de adiposidade. O umbigo ostentava um piercing discreto, incrustado com um diamante legítimo. Algumas costelas e a leve linha do externo se insinuavam naquela posição recostada contra dois travesseiros.

Os seios eram dela, pois tenho certeza que estavam pagos. Observei a ligeira irregularidade entre as mamas (a imperfeição da simetria é a perfeição da técnica) e o aspecto natural, resultado óbvio da aplicação do dimetilpolisolixano sob os músculos peitorais. Impossível saber se as próteses foram inseridas pelo sulco submamário, pela região periareolar ou por via axilar. Se eu domasse as palavras como o autor da proeza dominava o bisturi, seria um Balzac ou um Dostoievski.

Além dos saltos impiedosos ela vestia brincos, pulseira, relógio e uma camada abundante de perfume masculino, como muitas mulheres preferem. ‘Nada pode ser doce ou ingênuo neste quarto agora’, pensei, observando que a delicada miniatura do Bentley 1925 na mesa de cabeceira parecia uma aberração. Um insulto à sexualidade selvagem, acintosa e assustadoramente imóvel.

Eu me sentia frio como um anatomista. O fato de ser a caça e não o caçador me desarmara. Mas eu a queria – talvez porque ela estivesse ali. Os olhos de granito polido me fixavam com a sabedoria da vida e das sombras, admiráveis como os ventos e as marés. Estendi a taça de cerveja e ela nem piscou. Tomei as duas em um gole só, depus os ‘cristais’ de vidro ordinário ao lado do Bentley, inclinei-me e fui embarreirado por uma mão firme no peito.

— A retribuição vem primeiro — ela disse. — Já sou crescida, não quero namorar.

Troa, oh céu! e da nuvem mais alta arremesse um raio à voragem do abismo mais fundo do oceano. Treme, oh planeta! dos teus alicerces ao pico dos Himalaias. Não é lícito que os prazeres que conheci não tenham um marco, um obelisco, um dólmen. Como é possível, depois de tudo, que a Natureza persista indiferente?

* * *

De bom grado teria passado o resto dos meus dias naquela cama, ainda que isso os abreviasse. Mas Diana olhou para o relógio uma hora mais tarde, saltou para o banho e em poucos minutos estava como viera, imaculada. Nenhum vestígio do furor e da loucura.

— Vem comigo — disse, como se a ocasião fosse rotina.

Diana guiava rápido. As ruas e o mundo lhe pertenciam mesmo que não soubessem disso. Era imprudente e segura. Os olhos rastreavam o caminho e os três retrovisores com perícia. As sobrancelhas se contraíam, ela não sorria ou falava. Eu a observava percebido e ignorado.

Dos leões aos gatos, tudo que não quer ser domado excita e atrai. A beleza de Diana não era de modo algum evidente. Ao primeiro olhar, uma mulher comum, coisa que, embora não exista, economiza parágrafos. O corpo exaltado estava escondido em alguma dimensão sob as roupas. Queria ter visto a lingerie in loco, mas não se pode ter tudo. Seu magnetismo estava no espírito independente, na inteligência cortante e também na arrogância. Diana havia conhecido centenas e centenas de homens e poderia dispor de outros mil. Considerando seu modus vivendi, não teria razões para se interessar por nenhum. Daí a pergunta inevitável, o que desejava? Era óbvio que eu estava sendo manipulado desde o princípio e queria entender com que fim.

Para além dos artificialismos da Barra e sua decadência de neon e plástico, penetramos ruelas de terra batida. Algum tempo depois, ela parou diante de um muro alto em um estacionamento improvisado e eclético. De novo um segurança cavalheiresco, o balcão à esquerda da porta, o ingresso caro, um bar e a imensa pista de dança equipada como poucas. Depois, um longo corredor, que desembocou em um jardim onde alguém fazia um churrasco.

Não havia a rigidez controlada do Centro. Todos se cumprimentavam e conversavam como em uma quermesse. Apertei as mãos de metade das pessoas e beijei a outra metade. Seja bem-vindo, divirta-se, prove o churrasco, o que vai beber? O acolhimento era intimidante porque parecia real. A alegria era real. Os homens e mulheres pareciam velhos conhecidos, como uma grande família incestuosa.

À esquerda do jardim havia um vestiário com três fileiras de armários de aço. Diana guardou a bolsa. Um cavalheiro de sessenta e tantos anos se despia diante de nós com naturalidade, trocando a roupa de passeio por uma sunga. Conversou brevemente conosco e entrou em uma piscina pequena, quadrada e funda, embora o sol começasse a baixar.

Diana me guiou ao segundo andar, uma estrutura em U com dezenas de cabines e outro ‘aquário’. A topografia tinha qualquer coisa de irregular. As cabines em cada extremidade do U eram enormes, com uma vasta cama redonda gravitada por divãs.

— Nessas cabines grandes existe uma regra — ela disse. — Qualquer um pode entrar.

— Bacanal? Ando informado.

— Mais ou menos. Você pode entrar só pra olhar, pode ser escolhido, pode escolher… É imprevisível. Vamos voltar lá pra baixo.

As duas únicas cabines no corredor que levava ao jardim pertenciam a um casal de massagistas. Massagem estritamente ‘erótica’, sem a consumação reservada ao andar de cima.

— Faz uma massagem com a Bia. Ela é maravilhosa.

— Bia, querida, não se ofenda, mas fica pra próxima vez.

Não sem prazer, Diana me cortou.

— Você nunca mais vai voltar aqui.

— Não?

— Aqui você só entra com alguém conhecido.

— Agora eu conheço a Bia.

Bia e o marido sorriram. Diana me avaliou. Os movimentos do cérebro passavam às pupilas.

— Vou te apresentar à dona da casa.

Um minuto depois eu estava no bar diante de uma loira madura, a mais bonita que já vi tão de perto. As safiras em seus olhos eram mais claras que o céu do meio-dia. A pele, muito fina e delicada, parecia sobreposta ao marfim do corpo. A boca cor de cereja estava úmida. Estendi a mão, a loira me encarou e seu sorriso distraído foi instantaneamente fulminado. A expressão se congelou em um misto de fascínio, tristeza e contrição.

Diana parecia deliciada.

— Flávia, esse aqui é o Renato — ela disse. — Ele é jornalista. Quer conversar com você.

Flávia olhava para mim e além de mim. Havia tanta fixação e imobilidade em seu rosto que ele parecia avançar e crescer no espaço, recuar e progredir novamente – enquanto o bar atrás se deformava e borrava. Zoom out com trav in, diria um cineasta. Provei um constrangimento infinito e o contágio daquela tristeza.

— Não posso sair daqui — disse a loira finalmente, esfregando os olhos que haviam permanecido muito tempo sem piscar.

— Renato, deixa eu falar com a Flávia — ordenou Diana.

Sentei em um banco de madeira fosca e descascada no centro do jardim. Não havia reparado, o banco era um balanço e eu quase fui ao chão. A grama estava alta sob os meus pés. Ninguém se quedava ali há muito tempo. Uma roseira definhava ao meu lado e o sol desabava. A luz vermelha do crepúsculo emprestava um aspecto sombrio aos botões que murchavam sem florescer. Minha sombra esticada era uma abstração disforme. Balancei lentamente, sentindo um vento frio começar a soprar.

Percebi ou intuí a aproximação de alguém e me voltei para dizer a Diana que desejava ir embora.

Era Flávia.

Dois sulcos de lágrimas retilíneos sublinhavam a proporção do rosto esplêndido. Ela estendeu a mão, que alcancei sem pensar, e me arrastou pelo corredor e pela escada e me puxou para uma cabine e cerrou o trinco com força e me sentou na cama e pousou as duas mãos nos meus ombros e me encarou. As lágrimas continuaram fluindo enquanto as safiras me olhavam como quem não vê.

— Murilo — ela sussurrou, embora me chamasse.

— É Renato — respondi.

— Murilo…

Ela afastou as alças do vestido para o lado, expôs sua beleza tão rara e fez amor comigo. Chorou do princípio ao fim e depois gemeu. Cravou as unhas em minhas costas com mais intensidade que os saltos de Diana em minha cama.

Não foi desejo.

Era saudade.

Mais tarde, ela me empurrou delicadamente para fora da cama. Não pude acreditar que possuíra a beleza que jazia entre os lençóis. Até porque não fui eu. Flávia me trocara por alguém que não estava ali. Jamais tive uma mulher tão linda. Nem antes, nem durante, nem depois.

— Você tem que ir — ela disse. — Por favor.

Vesti-me e, sem saber porquê, beijei-a na testa. Ela agarrou o meu rosto e friccionou no seu. Suas lágrimas me ungiram.

Abri a porta e me deparei com Diana encostada na parede, as mãos unidas atrás do corpo como uma colegial travessa. O sorriso era um troféu.

— Espera lá em baixo e toma alguma coisa. Prometo te compensar pela espera. — E entrou na cabine.

Perdido, voltei ao jardim. O velhote saíra da piscina quadrada, vestira-se e agora fumava um cigarro.

— Vim enrugado de casa. Não vale a pena ficar muito tempo de molho.

— Está fazendo frio — eu disse. — Escuta, Amizade, você conhecia o Murilo?

— Um amor de criatura. Todo mundo gostava dele.

— Há quanto tempo ele morreu?

— Quatro, cinco anos. Infarto fulminante. Foi ali, naquele balanço.

— Casado com a Flávia — afirmei.

— Mulher bonita, né?

— Linda.

— Pois está acabada. Já foi muito mais.

O velho me fixou por um momento, sacou um óculos sujo do bolso e me examinou.

— Incrível. Mas o Murilo era mais bonito que o senhor.

— Corre o boato — eu disse sem sorrir.

— A Flávia foi com você? Ninguém tocou num fio do cabelo dela depois que o Murilo partiu.

Ele atirou o cigarro na grama e perguntou com malícia:

— Cadê a Diana?

Não respondi. Ele suspirou.

— A Flávia não gosta de mulher. Com um casal, tudo bem, mas mulher…

— Diana cobrou caro.

— Todas cobram. Eu frequento isso aqui há anos e o que mais quero é ficar sozinho naquela piscina.

* * *

Caminhei quarenta e cinco minutos antes de encontrar um táxi. Suponho que a violação de Flávia por Diana tenha durado mais. Acordei tarde e nauseado, rasguei o cartão com a efígie da serpente e não escrevi o artigo. Traí meu profissionalismo. Compilei o material das bacanales na música erudita, ofereci o texto sem ônus a título de desculpas e perdi o cliente – que faliu em cinco edições.

Quero descobrir um sentido oculto nas coisas, desvendar algo desconhecido ou nublado, dissecar as aparências. Poderia ter escrito a matéria descrevendo essa gente hedonista, autêntica… e comum. Mas a revista era indigna da paixão de Flávia e eu a guardei só pra mim. Deixei-a naquele jardim crepuscular de pedras irremovíveis, entre a roseira que murchava e o balanço assombrado pela saudade.

Diana jamais me procurou e ainda excede o meu entendimento. Dissecá-la exigiria um Balzac, um Dostoievski… Não sou tão hábil com o bisturi. Eu a vi certa noite em um bar rodeada de gente invisível, imperiosa e elegante como um felino. Perturbado, fiz meia-volta.

Tem dias em que me arrependo.

7 comentários em “O Balanço (Ricardo Labuto Gondim)

  1. Maria Luiza Eberius
    23 de junho de 2015
    Avatar de Maria Luiza Eberius

    Li por curiosidade, pois conheço o Rynaldo, mas foi surpreendente. Fácil leitura, intrigante e agradável. Parabéns.

  2. Fabio Baptista
    20 de novembro de 2014
    Avatar de Fabio Baptista

    Meu, que conto!

    Divertido, muito bem escrito, personagens cativantes e um final de fincar sorriso na cara do leitor.

    Excelente, meus mais sinceros parabéns!

  3. Daniel Vianna
    31 de outubro de 2014
    Avatar de Daniel Vianna

    Somente agora é que reparei que o texto é Off-Desafio, caso contrário não o teria lido. E vou dizer: ainda bem que não reparei. Excelente texto. Muito tranquilo, no ritmo certo, profundo, bem pensado. Aprendi muito. Parabéns. Parabéns.

  4. Pedro Luna
    27 de outubro de 2014
    Avatar de Pedro Luna

    Show de bola. Já toquei com uma banda em uma casa de swing, e no atual semestre na minha faculdade, eu iria fazer uma visita a uma casa para elaborar uma reportagem, mas não deu certo. Me identifiquei com o conto. Muito bem escrito e legal de ler.

  5. andrea azevedo paixão
    27 de outubro de 2014
    Avatar de andrea azevedo paixão

    Adorei. O conto me acompanhou na manhã dessa segunda espremida entre final de semana e um feriado(dia do funcionário público). Interessante a descrição que faz das personagens, excelente conto.

  6. Anésio Leão
    25 de outubro de 2014
    Avatar de Anésio Leão

    Excelente amigo, excelente…

  7. Ricardo Labuto Gondim
    25 de outubro de 2014
    Avatar de Ricardo Labuto Gondim

    Minha gratidão ao Gustavo Araujo por mais este espaço no EntreContos. Obrigado, Querido.

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Informação

Publicado às 25 de outubro de 2014 por em Contos Off-Desafio e marcado .