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Detox Literário.

O Último Escárnio (Maria Santino)

Riso

Abrantes caminhava no final da tarde praticamente no meio da avenida. Regressava do trabalho, a caminho de casa. A chuva fina que caia ocultava as lágrimas. As zombarias sempre foram uma constante em sua vida desde pequeno, mas o que havia acontecido estava além dos limites de tolerância.

Alguns carros buzinavam e muitos motoristas proferiam palavras duras para ele, que se arriscava andando por ali:

Tá doido, pigmeu? […] – Quer morrer? Anão maluco!

Lentamente ele atravessava a rua em direção a um beco com o propósito de pegar um atalho, seguia triste e cabisbaixo mostrando-se cansado daquela faina. Odiava o olhar de piedade e gracejos (por assim dizer) direcionados a ele, sobretudo, devido a sua condição física: além de anão era coxo. No entanto, tal fator não o impedia de levar uma vida como tantas outras pessoas, mas a falsa ideia de que sua capacidade mental estava amarrada a sua condição física, era o que realmente o travava e entristecia fazendo muitas vezes sentir-se inválido.

A chuva aumentava o deixando encharcado, mas a mágoa que sentia prendia toda a atenção e ele mantinha o passo, reflexivo. Aos poucos as memórias da infância no orfanato onde fora criado surgiam trazendo consigo a necessidade de alento, o menino anão nunca fora adotado como os demais e aprendeu cedo que era diferente dos outros. Quando chegou a idade adulta passou a morar sozinho mudando de emprego algumas vezes quando se sentia tolhido pelos demais funcionários.

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Assim que chegou em casa (no terceiro andar de um condomínio simples) já era noite, e após trocar a roupa molhada no banheiro, buscou o auxílio de um banquinho para conseguir se debruçar na janela do quarto e permanecer ali pensando em tudo que havia acontecido naquele dia. “Seria capaz de suportar o amanhã? Quando entrou naquele grau de entorpecimento ébrio?”

Julgava que fora vítima de alguma troça dos colegas de trabalho e em tom de fúria, amaldiçoava a si mesmo.

O clima no emprego era ameno com algumas brincadeiras nos primeiros dias e os apelidos que ele fingiu levar na esportiva, mas em menos de oito meses, nomes como: “miniman”, “projetinho” e “carcereiro de gaiola” passaram a ser comuns dando vazão a zombarias um pouco mais maldosas como a que ocorreu há dois dias na festa de natal da empresa.

“Tudo seguia normalmente, mas em certo momento já não conseguia lembrar-se de mais nada, muito menos de que forma chegou em sua casa.  No feriado natalino alguns setores do Shopping onde trabalhava não funcionaram, e só quando regressou na manhã daquele dia e se dirigiu ao setor administrativo esperando trabalhar normalmente, é que descobriu o que tinha feito.

Os colegas o enxovalharam salpicando piadas diversas e mostrando imagens onde Abrantes, enaltecido pelo álcool, protagonizava cenas bizarras de danças ao som de péssimas músicas contemporâneas. Não demorou muito para que o próprio chefe (alguém que devia prezar pelo respeito) também viesse tripudiar da sua imagem repetindo os mesmos gestos feitos por ele nos vídeos capturados pelos colegas. Tudo aquilo o assustou, tolheu e machucou profundamente. Mas as expressões: “tu tá bombando na rede, miniman!” E ainda: “miniman, o anão sapatinho de fogo!” Atestavam o quão longe e desrespeitosa fora aquela zombaria. ”

Agora, até o desejo de “dar cabo” em sua existência passeava pela mente enquanto subia, com esforço, no parapeito da janela e observava a altura que se encontrava do chão. Abrantes sabia da existência de leis contra aquele tipo de atitude a que estava sendo submetido no trabalho, mas, perturbado, desejava pôr um fim imediato em sua dor.

O vento frio da noite secava suas lágrimas e em seu íntimo, um asco crescente por aqueles que desmereciam os outros para se firmarem nesta vida, deixava sua garganta ácida.  Suas mãos colavam no corpo buscando ímpeto para o salto, no entanto, ao receber uma rajada de ar, ficou tonto, e, dessa forma, ao invés de cair para o lado de fora, cambaleou caindo para o lado de dentro de sua casa batendo a cabeça no chão.

A dor quase não foi sentida, pois Abrantes teve uma espécie de epifania ao erguer a vista e observar sua imagem refletida no grande espelho próximo à parede.      Olhou sua baixa estatura, a cabeça desproporcional ao resto do corpo, as mãos grandes nos braços curtos e barriga saliente… E logo, a resignação começou a dar espaço a um riso macabro e sua mente passou a trabalhar rápido.

“Ridículo! Ridículo! Sou ridículo”

Dizia para si mesmo rindo sozinho, ria com força até seu rosto tornar-se vermelho e as veias saltarem. Começava então a edificar a paga que daria aos seus escarnecedores.

Pela manhã seu plano já estava traçado, e no trabalho, quando novamente os risos recaíram sobre ele, um largo sorriso se estampou.

– Alegria! Alegria! A festa de Réveillon será melhor… Será inesquecível! – e todos batiam palmas desejosos pelo bis daquela hilariante apresentação.

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Os dias seguiram apressados para Abrantes que treinava todas as noites diante do espelho, e quando a encomenda chegou seu plano já estava traçado com precisão cirúrgica. O chefe já havia anunciado que “a festa da virada” seria em sua casa tendo o anão dançarino como convidado especial da noite.

Nunca escutou tantas galhofas quanto naqueles dias:

Veja como seu andar possui um ritmo! […] Olhe como é hilário o requebrar dos quadris!

Abrantes se mantinha alheio guardando o ódio para ser usado como mola propulsora. Quando o dia trinta e um de dezembro chegou e o chefe veio buscá-lo em casa com muita pompa, recusou todas as bebidas que este lhe ofereceu permanecendo sóbrio.

Assim que chegou ao local agiu de forma sorrateira e retirou o frasco – o qual encomendara pela internet – tendo cuidado de despejar o seu conteúdo narcótico tanto no ponche; quanto nos alimentos ali expostos.  Em certo momento, quando já não havia mais espaço para transitar e todos se mostravam entorpecidos, os pedidos incessantes para que Abrantes dançasse ecoavam o impulsionando a subir em um pequeno balcão e dar início ao espetáculo previamente tecido.

Ao som “bate estaca”, ele mexia a cabeça como uma cobra naja de lá para cá escutando o estribilho dos risos rebimbarem, seus bracinhos curtos lançavam-se para o alto e depois colocava uma das mãos na cabeça e apontava para a multidão movendo o quadril como uma odalisca e percebendo as primeiras respostas surgirem após aquele ato.  Não importava parecer ridículo, pois era essa a sua intenção naquele momento, e com prazer, via uma mulher gorda cair desmaiada de tanto rir próximo a ele.

Sua dança prosseguia, e cheio de traquejos, sacava fora a blusa mostrando a volumosa pança e remexendo-a como uma onda gelatinosa. O patrão, ensandecido, pulava qual macaco com as mãos na virilha não segurando mais a urina de tanto rir. Abrantes dava tapinhas nas nádegas empinado-as enquanto mais pessoas caiam com as pernas para o ar. Agitava o tronco com as palmas das mãos erguidas e emendava aquele ato com um moonwalker à moda Michael Jackson. A histeria do riso estava instalada e o anão dançarino saracoteava vigorosamente como se seu corpo fosse todo de mola e seus pés estivessem pegando fogo.

Queria fazer rir, queria despertar a pilhéria e o escárnio para deixar as pessoas tendo espasmos de riso descontrolados, urinando e salivando até caírem no chão enquanto ele se preparava para a ação final.

As estripulices persistiam e ele emitia sons graves enquanto projetava a pelve num ato de coito:

– Hurra! Urra! Hey! Houuu!

Os poucos que ainda se mantinham em pé puderam visualizar o último ato de Abrantes que, a esta altura, aos olhos dos espectadores inebriados pela droga, mais parecia um gordo besouro multicor com as pernas afastadas trotando velozmente.

A calça foi tirada e o reluzir das lantejoulas cravadas em sua cueca ofuscaram o que trazia preso a virilha. Poucos percebiam o seu olhar soturno, pois o riso permanecia num frenesi cíclico e tétrico.

Os dedos curtos, porém ágeis, puxaram os pinos das três granadas e o júbilo paliativo da vingança o enlaçou por inteiro. Os bracinhos foram abertos anunciando o fim daquele espetáculo letal. O último escárnio permitido… E a certeza de que a opressão voaria pelos ares, o fazia rir e chorar enquanto o prelúdio da explosão detinha o curso do tempo.

Aqueles que entenderam o que estava prestes a acontecer ainda tentaram se safar. Houve correria, gritos e tentativas vãs de sair do recinto, porém os estanques provindos das explosões suplantaram qualquer outro ruído, inclusive os dos fogos de artifícios que estouravam lá fora, anunciando o nascer de um novo ano.

BOOOOOOOMMMMM!!!

7 comentários em “O Último Escárnio (Maria Santino)

  1. mariasantino1
    19 de setembro de 2014
    Avatar de mariasantino1

    Olá, Joice 22!

    É muita gentileza sua ceder um pouco de tempo para ler e comentar este conto. Muito obrigada pela observação.
    Abraço!

  2. Joice22
    19 de setembro de 2014
    Avatar de Joice22

    Trata-se de assédio moral e de como isso pode repercutir na vida de um indivíduo. No final do conto, uma consequência foi explicitada.
    Esse texto, em que todas as personagens são planas, é narrado em 3º pessoa. No fragmento “Os poucos que ainda se mantinham em pé puderam visualizar o último ato de Abrantes que, a esta altura, aos olhos dos espectadores inebriados pela droga, mais parecia um gordo besouro multicor com as pernas afastadas trotando velozmente” evidencia-se a falta de vírgula entre o nome “Abrantes” e o pronome relativo “que”.

  3. Joice22
    19 de setembro de 2014
    Avatar de Joice22

    Esse texto, em que todas as personagens são planas, é narrado em 3º pessoa. No fragmento “Os poucos que ainda se mantinham em pé puderam visualizar o último ato de Abrantes que, a esta altura, aos olhos dos espectadores inebriados pela droga, mais parecia um gordo besouro multicor com as pernas afastadas trotando velozmente” evidencia-se a falta de vírgula entre o nome “Abrantes” e o pronome relativo “que”.

  4. Wender Lemes
    31 de agosto de 2014
    Avatar de Wender Lemes

    Gosto particularmente dessas reviravoltas que acabam esculhambando com tudo haha. Seu final foi um prato cheio, nesse caso. Incentivou a reflexão sobre nossa própria conduta também. Parabéns.

    • mariasantino1
      1 de setembro de 2014
      Avatar de mariasantino1

      Hey! Brigadão por ler e comentar, seu moço. Só o fato de ter sua atenção basta. Um forte abraço. 😀

  5. José Leonardo
    29 de agosto de 2014
    Avatar de José Leonardo

    Olá, Maria. Lembrou-me Carrie White, só que consciente (portanto, deliberada no seu ato e não somente provocada através de um choque). Gostei bastante do texto. Damos uma risadinha aqui e acolá (risada automática e um tanto constrangedora por estarmos cientes do quanto aquela rejeição esmaga o pobre anão), e a mensagem é um alerta. Parabéns pelo conto e abraços.

  6. Brian Oliveira Lancaster
    29 de agosto de 2014
    Avatar de Victor O. de Faria

    Gostei do tom ‘inception’, história dentro de história. E do final bombástico, literalmente. O cotidiano sempre gera boas histórias, talvez, em parte, justamente por nossas qualidades e defeitos.

E Então? O que achou?

Informação

Publicado às 28 de agosto de 2014 por em Contos Off-Desafio e marcado .