Já sangrava há três dias.
Desde a menarca aprendeu a associar seu útero a uma trouxa de roupa que alguém torcia e batia e sovava nas pedras lisas do arroio, como o fazem em filmes. Retorcia-se e praguejava. Nessas tardes invernosas recostava-se ao sol a embalar-se lentamente, em doce aconchego.
Cada onda de convulsivos espasmos abdominais era sucedida por uma sensação de êxtase e conforto, talvez pelo fato de que qualquer estado físico era melhor que o experimentado durante tais episódios. A aflição durava quatro ou cinco dias, regada pelos chás de ervas que amenizavam, em parte, corriqueira monstruosidade.
Alguém, certa vez, alertara-lhe sobre uma doença que poderia ser perigosa. Só um médico para saber. Mas o médico poderia descobrir tantas outras doenças que não valia o risco!
Hoje não havia sol. Em lugar deste, a chuva castigando o telhado de zinco. Produzia inquietude sonora talqual chicoteadas em sua mente, onde mesmo o sibilo do vento enroscava-se ao odor de terra molhada em vulgar e caótico frenesi. Cada relâmpago fazia tremer o casebre, estremecer o corpo e tremeluzir o aposento. E as dores, ah! Essas assumiram tons enegrecidos de tormenta, quando outrora saudavelmente rubros. Não morreria por elas. Dores não matam, castigam. E o castigo equilibra as coisas; uma boa dose de sofrimento cá e lá, e ninguém fica em desvantagem.
A água ameaçava entrar em ebulição no recipiente sob o fogo e as ervas eram preparadas em quantias calculadas, como fizera ontem e anteontem e no dia anterior. Um punhado de cada; sementes de romã, folhas de cáscara sagrada, paus de canela e cravos-da-índia, pelo sabor. Cultivados de herança, do pátio da mãe.
No momento que o vapor emergiu da pequena panela de ferro, jogou as ervas por ordem de importância, se é que havia. Jogou-as, desligou o fogo e pôs a tampa. Durante alguns instantes refletiu acerca do senso comum adquirido. Ervas, as mesmas utilizadas para fabricar remédios. Sem necessidade de intervenção química sofisticada. Água fervente e paciência. Em cinco minutos o líquido outrora incolor adquiriu aquele mesmo tom ocre que todos os chás devem ter.
Com auxílio de uma concha de metal própria para servir caldos, depositou parte do conteúdo da panela no caneco antigo de louça branca descascada, com duas ou três florzinhas azuis pintadas, como naqueles velhos penicos. Mais por descuido que por providência divina, respinga ínfima porção no dorso da mão que encontrava-se apoiada sobre o armário, delatando perigo se bebido de imediato. Recorda-se do que a mãe fazia para esfriar o leite; com um segundo caneco passa a transferir o líquido de um para o outro. Agregando lentidão no processo e distância entre eles. Como uma cachoeira.
Depois de constatar êxito na tarefa, descansa o líquido, novamente, no primeiro caneco alouçado. As mãos envolvendo-o como que em prece. Leva-o à boca e hesita por um instante, um arrepio vertiginoso beija-lhe a orelha esquerda, assopra e sorve o chá sem açúcar ou mel. Em quatro ou dez goles. O aroma predominante é aquele misto de cravo e canela. Como nos tchais indianos. O sabor acre não acalenta e faz recordar o quanto detesta romãs. O fel, no entanto, é degustado no ventre, em desesperada tentativa de fuga.
Enervantes contrações.
Voltando aqui depois de onze(!) anos. Interessante perceber como a dinâmica dos desafios nos impedem de compreender a profundidade dos contos. Não sei… Talvez a necessidade de lê-los com rapidez, a imposição dos prazos, a premência do tempo, a questão do “cumprimento da missão” — creio que isso labora contra a experiência de leitura.
Aqui isso fica bem evidente porque à exceção do comentário feito pela Carmem Soares, ninguém, absolutamente ninguém (nem mesmo eu à época) percebeu o óbvio, que este conto trata de alguém que comete um aborto.
Nem vou dizer como a pressa dos participantes (eu inclusive) acabou prejudicando a autora Pétrya Bischoff. Nossa ignorância célere nos impediu de ver a bruxa — seja ela a pessoa que prepara o chá, seja ela a pessoa que toma a poção, a depender do ponto de vista — e, principalmente, nos impediu de ver as entrelinhas, as camadas como se diz hoje em dia.
Um conto sobre uma menina que engravida e quer tirar o bebê… Quanto podia ter sido dito a esse respeito…
Vergonha do meu comentário de 2014…
As bruxas cotidianas e suas poderosas poções! Conheci uma mulher que abortava seus filhos com chás, alguns teimaram e nasceram mesmo assim. Dois deles carregam em suas mentes fracas as marcas das atitudes dela. Ela morreu ha tempos, quando abortava mais um filho. Me fez recordar!
O texto foi muito bem construído! Gostei muito.
Não associei muito ele ao tema proposto, mas valeu pelas descrições das cólicas femininas que são exatamente dessa forma. Boa sorte
Cólicas são maldições, mesmo. Tratar com poções caseiras pode ser paliativo, ou não, depende da mão – ou da heresia com que se prepara. Um texto bem escrito, bonito.
Muito bem escrito e conduzido, apesar da história ser mais simples e contida. Adorei algumas “dualidades” que usou, bem interessantes, como a do médico que achei incrível.
Desculpa ao autor, mas não vi bruxas aí não.
Muito bem escrito. Belo uso do vernáculo, leitura agradável e um bom ritmo narrativo. Neste sentido o texto é irretocável. Preferiria um enredo mais profundo, mas a história adequa-se bem ao que o texto se propõe.
A ideia poderia até ser interessante, mas desconfio que ficou faltando uma parte do texto, né ? Se não está faltando nada, creio que, apesar da linguagem bem cuidada e bastante expressiva, o texto não cumpriu sua finalidade.
Infelizmente não captei a ideia por trás do conto. Está muito bem escrito e ricamente detalhado. As descriçoes dos cheiros, cores e sensações causam até uma sinestesia. No entanto, a trama, em si, não conseguiu me alcançar.
De qualquer modo, parabéns e boa sorte no desafio.
Gostei muito do conto em si, mas não consegui ver grande relação com o tema – posso ter deixado algo escapar. De qualquer forma, boa sorte no desafio.
Não acho que tenha captado a essência do conto… infelizmente, não enxerguei a bruxa.
A autora talvez precise cuidar um pouco mais dos tempos verbais.
Boa sorte!
Poxa, gostei do conto e da forma como a figura da bruxa foi associada. Alguns amigos me perguntam qual a sensação de sentir cólicas menstruais (e sempre acho isso estranho rs’). Na próxima vou apresentar seu conto para eles!
Boa sorte!!
Pode ser falha do leitor, mas não consegui captar a questão da bruxa no conto. Talvez uma ligação com os “remédios caseiros”? Creio que sim, mas não foi o suficiente para me imergir no conto. De todo modo, tem uma ambientação inteligente.
Não conseguiu me conquistar. Não gosto muito desse tipo de conto escrito em primeira pessoa e tão intimista. Espero que os demais possam ajuda-lo(a) mais do que eu, pois estou sem sugestões.
Abraço e boa sorte no desafio.
Gostei bastante do início, mas a partir do meio fiquei meio indiferente. Esperava um final mais adequado ao que imaginei no começo. Quanto ao trato, não encontrei nada que atravancasse minha leitura, e até mesmo gostei do estilo narrativo. Consegui criar as imagens de forma certeira.
De qualquer forma, e um bom conto!
Parabéns e boa sorte!
Gostei de sua escrita, parabéns.
Porém, cadê as bruxas?
O texto em si não me encantou em nenhum momento. No final eu pensei: acabou? Nada mais acontece? Na minha opnião não lembra em nada o tema.
Puts, esse conto provoca umas imagens estranhas na cabeça. Tem um certa densidade, um cuidado nas descrições que transformam a história numa coisa meio líquida, como a água que escorre do jarro. É bom, não sei, do meio pro final vai ficando cada vez melhor, a cada descrição meticulosa. O final, no entanto, não me agradou. Poxa, um autor talentoso como esse não precisava fazer uso dessa artimanha pra terminar o texto. Mas é um conto bom, sim.
Não vi nenhuma ligação com o tema do concurso.
Bonito e muito bem escrito, com palavras muito bem escolhidas. No entanto, acho que só resvalou no tema do desafio.
Que viagem. A descrição de uma longa — e única — cena. Abordagem diferente para o tema. Resta decidirmos se o mesmo foi de fato acessado pelo(a) autor(a) que, se for uma mulher, algo me diz que existe grande chance de estar “naqueles dias”…
Boa sorte!
Paz e Bem!
======== ANÁLISE TÉCNICA
Muito bem escrito, parabéns.
– talqual
>>> Faltou um espaço.
– “Mais por descuido que por providência divina, respinga ínfima porção no dorso da mão que encontrava-se apoiada sobre o armário, delatando perigo se bebido de imediato.”
>>> Essa frase ficou bem confusa…
======== ANÁLISE DA TRAMA
Meu… cadê a bruxa???
======== SUGESTÕES
Adequar-se ao tema…
Se havia uma bruxaria sutil perdida por aí, me desculpe… mas foi sutil demais.
======== AVALIAÇÃO
Técnica: ****
Trama: –
Impacto: –
Este é o vigésimo segundo conto que analiso no presente desafio.
Um conto não pode se ocupar com o banal, a menos que nele o(a) autor(a) mostre aspectos a respeito dos quais o senso comum não costuma se ocupar, sequer perceber. Afinal, o cotidiano é rico de nuances encobertas pelos acontecimentos visíveis.
O(a) autor(a) do presente conto, ao que me parece, tentou mostrar o simples, mas acabou por narrar o banal. Trata-se de uma mulher que sente as torturantes dores das cólicas e, numa tentativa de amenizá-las, prepara e bebe um chá. Sim, mas e daí? Não há, no conto, nenhum aspecto que o senso comum costume desprezar diante de uma situação assim. Como também o trato linguístico não mostra grande elaboração, apresentando inclusive erros, e há distanciamento da temática, o texto não acrescenta muito.
Digo que está distante do tema porque o ato de preparar um chá não faz de nenhuma mulher bruxa. Mormente se considerarmos que a personagem o faz para aliviar as próprias dores.
O conto se perde ao misturar tempos verbais. Esse recurso pode ser esteticamente interessante, mas demanda outro tratamento. Observe-se todo o parágrafo que se inicia a partir de “Com auxílio de uma concha de metal […]”. Numa mesma ação temos passado (DEPOSITOU, ENCONTRAVA-SE) e presente (RESPINGA, RECORDA).
Quanto ao aspecto ortográfico, na frase “Produzia inquietude sonora talqual chicoteadas em sua mente,[…] “, o correto seria TAL E QUAL.
Em 03/08/2014
Texto forte e, se mim interpretação valeu, creio que esta é de fato uma bruxa, mesmo no sentido ideológico, pois ele faz poções e maldades, mas no sentido mais fiel da palavra, denotando alguém pérfido, independente dos motivos que a levaram a tal ação. Parabéns, muito bom.
Outro conto que ao meu ver passa ao largo do tema proposto.
Muito bem escrito e bem desenvolvido, mas ….
O conto é bom, mas pra temática ficou estranho, ou pelo menos sutil demais, olhando por outro ângulo.
Trata-se de um recorte, a descrição de uma cena, de uma situação. Descrição essa que tem o mérito de nos passar com fidelidade todo o sofrimento e angústia que atinge mulheres de todas as matizes. O texto, assim como imagem, chocam pela crueza. As palavras foram empregadas com extrema perícia, Gostei muito das metáforas, a propósito. O senão fica por conta da falta de uma história. Não é culpa de quem escreveu, mas deste leitor. Prefiro temas lineares, que me conduzem de A para B. De todo modo, parabéns pela narrativa.
Só isso? Uma boa descrição de cena, que poderia introduzir uma boa história, e mais nada… Para alguém que consegue essa descrição tão poderosa, você certamente decepcionou a todos não conseguindo ir além disso.
Que coisa!
Se era menstruação então também sou bruxa em fazer chazinhos. Não entendi muito não, mas gostei do vocabulário, a escolha das palavras e cenários que consegui visualizar. Essa imagem é muito perturbadora, grotesca (não a conhecia)
Boa sorte.
Conto curto, muito bem elaborado e escrito. Sim, as mulheres entendem desses feitiços lunares, de fases que sangram e rompem carnes. Não compartilho tal dor, graças à genética que poupou de cólicas mensais. No entanto, o sentimento de recolhimento, ebulição interna, sensibilidade herdada são elementos repartidos que foram muito bem retratados neste texto.
O chá feito para acalmar as cólicas nada mais é uma poção passada de mãe para filha, de mulher para mulher, utilizando o que a Mãe Natureza oferece. Sim, toda mulher é uma bruxa, latente ou ativa, mas cheia de feitiços,pragas e encantamentos.