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“Christine” – Resenha (Rodrigues)

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Christine é muito mais do que um livro sobre um carro amaldiçoado, uma história de terror ou um romance fantástico. É, na verdade, a construção de um herói e de um anti-herói: Dennis Guilder e Arnie Cunningham. O primeiro: sucesso com as mulheres, esportista, família perfeita, inteligência, coragem, senso de humor e sensibilidade. O segundo: o nerd, cheio de espinhas, frágil, tímido com as garotas, também inteligente, mas filho de um pai covarde e de uma mãe manipuladora.

Stephen King cruza estes dois mundos. O garoto loiro, apolíneo, com o meninote moreno e fraquinho, que vê no amigo uma espécie de defesa contra os predadores. O romance encaminha-se ancorado nestes dois personagem principais; e o pano de fundo é o familiar corpo estudantil americano e seu cotidiano; e a vida de uma cidade com uma atmosfera macabra. Christine é o elemento rock ‘n’ roll: o carro, a maldição e ódio infinito, tudo isso construído na lataria do bom e velho Plymouth Fury dos anos 50.

Arnie, ao encontrar Christine, apaixona-se na hora. O que vê? Nada além de seu retrato materializado na lataria do veículo. A feiura, o predomínio dos defeitos que esconde o potencial interno, a beleza detonada por feridas. Além disso, no universo do carro há muito mais. Existe uma história de fracassos, de raiva e vingança, tudo o que se passa nas entrelinhas do cérebro de um perdedor como Arnie. Mesmo sem saber nada sobre o carro, o rapaz parece senti-lo. Então compra a lata velha como quem escolhe a noiva de um mercador egípcio. E, no caso, o mercado é o odioso Roland Le Bay.

A partir deste momento, ocorre uma reviravolta. Dennis, o Deus americano, é deixado de lado por Arnie, que vê no Plymouth sua redenção. Ao trabalhar no carro, inicia um processo de fusão entre homem e máquina e sua figura torna-se mais interessante, severa e autêntica. Em casa, o rapaz deixa de ser um pino controlado, na escola, ganha o interesse das garotas. O retrato de Arnie, esculpindo o carro, deixando que o veículo arranque as crateras de ser rosto, vai, aos poucos, tornando-o um verdadeiro oponente de Dennis. Nota-se aí o começo do fim da amizade entre os dois.

Em uma das passagens, King coloca a seguinte frase sobre a amizade: “É preciso manter um nível de falsidade para mantê-la”. Como em todo relacionamento, esse nível de falsidade vai ficando cada vez mais duro de se segurar na medida em que os anseios dos dois amigos vão pegando caronas em estradas diferentes. Ainda existem as risadas, os soquinhos falsos, mas já há uma aura que os impede de serem os velhos companheiros. Nesse momento surge Leigh Cabot, uma aluna nova da escola que começa a gostar de Arnie. Dennis, por mais que tente mostrar-se empolgado com a situação, aos poucos, percebe que, na verdade, está perdendo Arnie e se interessando cada vez mais pela namoradinha do amigo.

King traça vários triângulos amorosos, que se entrelaçam e nos mantém atentos pelas linhas do romance até o final. Além de todo o mistério que envolve Christine, temos as tríades: Dennis-Christine-Arnie / Arnie-Christine-Leigh / Dennis-Arnie-Leigh e, por fim: Dennis-Christine-Leigh. Com isso, o universo de cada um destes personagens torna-se único. Cria-se um interesse maior, pois, atrelados à Christine e à temática do amor que nunca se completa, cada um deles se transforma em um motor do romance, girando-o e o modificando.

Há também um contraponto entre a personalidade marcante de Dennis, o jovem americano perfeito, e o clima sombrio que envolve a pequena cidade universitária em que vivem. Além do fator psicológico, do terror, da morte, dos gritos, há um certo prazer em levar essa atmosfera aos personagens secundários. Ela atinge Regina, mãe de Arnie, uma mulher egocêntrica, Roland Le Bay, ex-proprietário e espírito que assombra Christine (um soldado degenerado que viu sua vida se acabar com a velhice), Michael, pai de Arnie, professor pacato de História manipulado por Regina, que longe de ser um exemplo de força para o filho, não passa de um fantoche irritante.

Fora do núcleo familiar, temos os adolescentes inconsequentes que vivem bebendo e usando drogas. Will Darnell, um velho que é dono da oficina em que Arnie guarda o carro, além de parecer um Big Mac gigante, é metido com contrabando de cigarros, armas e outros artefatos. Há Jimmy Sykes, que é o ajudante pobre e abobado de Darnell, há o treinador mandingueiro do time de futebol americano, os pais de família acabados, donas de casa lobotomizadas, entre outros da fauna. Tudo isso em contraste com o arquétipo da família de Dennis: uma mãe caridosa interessada em artes, um pai inteligente, seguro e sensível, e uma irmã pequena e engraçadinha.

Outro ponto marcante são as intrusões que a voz narrativa faz no pensamento dos personagens, até mesmo em seu subconsciente. Grafadas em itálico, as frases desta voz se fazem presentes a partir do momento em que o carro é comprado e a maldição é jogada: “Por que você está fazendo isso? E aquilo? Porque disse isso, será realmente verdade?”. Há questões desse tipo permeando quase toda a história. De alguma forma, essa voz que paira no ar é mostrada como um fator decisivo, que desencadeia ações e, por outras vezes, as reprime.

Neste mesmo aspecto, da subjetividade, o exagero na descrição de diversos sonhos dos personagens é algo cansativo, que parece ter sido feito para aumentar páginas. Muitas viagens ao inconsciente são realmente plausíveis para a história, mas a maioria é uma lenga-lenga que vai cansando o leitor em diversos capítulos, algo que poderia ter sido cortado por um editor atento ou por lapsos de bom senso em King.

Como dito antes, todo o desenrolar da história ocorre com a trama diabólica entre o carro e os três personagens: Arnie, Dennis e Leigh. Dennis como o herói virtuoso, Leigh, a dama sexy a ser disputada e defendida, e Arnie, que vai se desenvolvendo cada vez mais como a encarnação elegante do mal, sugando todos ao grande buraco negro que normalmente finaliza as histórias de King, e, neste caso, a conclusão é realmente aterradora. Não tão desgraçada e direta como no final de ˜O Nevoeiro˜, mas de um desespero disparado em conta-gotas. O fim de Christine não acaba com o terror, deixa-o na reserva, como uma bruma que amedronta o leitor e deixa os sobreviventes do livro sem esperanças.

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2 comentários em ““Christine” – Resenha (Rodrigues)

  1. Jefferson Lemos
    12 de janeiro de 2014

    Show!
    Irei começar este livro na semana que vem, e depois dessa resenha estou mais empolgado ainda!

  2. Pedro Luna Coelho Façanha
    12 de janeiro de 2014

    Gostei da resenha. King cria personagens como ninguém. São marcantes. E ele também constrói relacionamentos entre os mesmos que são sempre as melhores coisas em seus livros. Prova disso é o espaço destinado na sua resenha para falar dos personagens e das ligações que existem entre eles.

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Publicado às 12 de janeiro de 2014 por em Resenhas e marcado , , .
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