Mar caribenho
— Você me ama?- sussurrou-lhe a mulher.
Ayida se aninhava sobre o peito frio de seu homem enquanto saboreava o gosto da maresia em seus lábios, uma lembrança por estalá-los ao longo do salgado físico masculino. Ilhados no breu da noite, longe das luzes e sons do vilarejo, apenas o bruxulear de velas banhava a pele negra da mulher, tornando-a uma deformidade de cobre. Estendido sobre uma cama de palha e de pulga, o pirata de traços bem cuidados fitava com olhos opacos o teto do casebre. À pergunta, nenhuma resposta, não fosse um grunhido de intenção moribunda.
Esticando-se, Ayida tomou um pequeno saco de pano roto jogado no canto do quarto e desfez o nó do cordão de contas de sua embocadura. Com zelo, pinçou um punhado de seu conteúdo, um pó esbranquiçado feito de baiacu, sapo e ossos humanos triturados, e depositou o material na palma da mão oposta. Puxou-se para perto do rosto do belo homem, deslizando feito cobra, a mão intercalada entre ambos. A mão e o pó. Encheu os pulmões de ar. Na feição sofrida e dos olhos cegos do pirata, uma lágrima correu, talvez sinal de um resquício de sanidade a lhe perguntar como fora cair naquela armadilha. Ela soprou. Pela segunda vez, naquela noite.
Sabia que ele nunca mais a responderia. Ela não se importava. Apenas o queria para sempre, e os zumbis são eternos.
Ártico
A vida era uma correria, e um dia ele cansou-se dela. Pilhagens, mortes e estupros cobravam uma disposição que já não ostentavam seus cofres. A existência era cinza e arrastada e longa e trabalhosa. Com as últimas forças, trancou-se em sua cabine e mandou ao inferno quem ousou importuná-lo. Em pouco tempo, também lhe faltou o ânimo para praguejar. Calou-se.
Um a um, os homens de sua tripulação desertaram, naufragando no marasmo das águas de seu passado e dali para a amnésia dos que já se foram. À deriva, vagou em seu navio solitário até as bordas do mundo, onde indiferente estancou.
Até hoje, alguns velhos marinheiros, impregnados por suas igualmente velhas histórias, ao passarem pelas águas do norte, juram ver as sombras de uma nau sonolenta incrustada no centro de um iceberg errante. Os mais novos desdenham e gargalham, dizendo que a mente senil procura magia no mundo apenas para preencher a mágica que lhe foi surrupiada pelos anos. E enquanto chamam a tudo isto de lenda do mar, nascida por conta de bebedeira de mais ou mulheres de menos, esquecem-se dos detalhes e não notam. Os jovens nunca notam. Estranhamente, ao navegarem próximos ao nebuloso bloco de gelo, o tempo parece parar.
Pacífico
—Mas me conta de novo, como foi?
—O quê? – perguntou indiferente o capitão, mesmo sabendo do que se tratava.
—Caralho, você sabe do que estou falando. O lance da Atlântida. Foi você mesmo?
—Ah, isso. – puxou o maço de cigarros de seu paletó. Deu duas batidelas com o indicador no fundo da caixinha e um cigarro saltou. – Já te disse que fui eu, cara. Vai um aí?
—Não, valeu, estou tentando cortar. Tenho adesivos de nicotina até na alma. Seguinte, eu sei que foi você, só que até hoje ainda não consegui entender o motivo.
O capitão levou o fumo para a boca e o prendeu entre os lábios.
—Extava de xaco cheio daquelex putox.- continuou falando com a metade de sua boca disponível. Enquanto isso, tateava seus bolsos a procura do isqueiro zippo. – Quando vi, xá tinha afundando ox dexgraxados.
Encontrado o isqueiro, fechou a mão em concha e acendeu o cigarro. Tragou fundo. Prendeu. Lentamente, soltou a fumaça. Enquanto observava a massa negra se dispersar pelo cômodo mal iluminado, lançou um riso despretensioso pelas memórias requentadas.
—Civilização avançada é o meu cacete, parceiro. Aqueles metidos afogaram como tudo quanto é gente afoga. – jogando o cotovelo sobre a mesa, levou o cigarro para os lábios para mais um trago. – Me serve mais desse rum.
—Ainda assim, não vi o porquê. – tomando a garrafa nas mãos, despejou a bebida nos dois copos sujos.
—Não sou um cara complicado. Eu queria passar, eles estavam no caminho. Então passei por cima. – segurou o copo e bebeu o líquido de um gole. – Mas assumo que foi divertido.
—Não acha que precisa controlar essa sua raiva?
—E por que faria?- a estranheza da pergunta pegou o pirata desprevenido. Algo como perguntar por que ele respirava ou cortava gargantas.
—Algum dia pode encontrar alguém que de cabo de você.
A afronta deixou um silêncio que correu sobre as mesas do bar.
—Não há quem consiga. – prosseguiu o capitão, desdenhando de quem quer que fosse.
—Pois eu conheço alguém. – insolentemente prosseguiu o outro.
—Não me diga que é você. – um longo trago acompanhou o olhar seco. Com um maneio de cabeça, indicou o copo. – Rum.
—Eu não, mas conheço um cara. – puxou o copo e, deitando a garrafa, o líquido escuro desceu do gargalo.
—Conhece? – deu um riso histérico, apenas para disfarçar a fúria. Cansando-se da encenação, prosseguiu aos gritos. -Pois te digo que eu arrebento quem é que seja o filho da puta! Me diga. Vamos! Me diga, quem é?
—Não sei se você cumpriria essa ameaça quando soubesse quem é o cara. – disse calmamente o outro. Olhava baixo enquanto deslizava o dedo pela boca do copo do capitão.
—Duvida de mim? – furioso, levantou-se, arremessando sua cadeira ao chão. – Fale quem é o homem, e o farei comer alga direto pelas tripas!
—Sei que pode oferecer mais do que a palavra, amigo. – ponderou suavemente o outro, lançando um olhar em direção ao pirata. Ainda brincava com seu copo.
—Tome. – sem pensar duas vezes, o capitão agarrou uma corrente em seu pescoço e a arrebentou. Pendendo dela, um pequeno pingente de rubi pulsava. Incrustado dentro de uma armação de ouro, estava o seu coração. — Juro por minha vida e por meu coração que está nessa jóia. Alguém com certeza morrerá. Se não matá-lo, a morte é minha. Tem uma promessa.
—Está bem. –concordou satisfeito enquanto pegava o pingente e o prendia em seu pescoço. O pulsar seguia quente e acelerado contra sua pele.
Apoiando as mãos sobra a mesa, o pirata encarava seu companheiro.
—E então? Quem é?
O parceiro arrastou o copo cheio de rum pela superfície da mesa irregular, dispondo-o logo a frente do capitão. Vitorioso, lançou um sorriso com seus dentes amarelos e tortos:
—Você, capitão, é seu próprio algoz. Memento mori!
Naquela noite, o capitão triunfante silenciou um rubi com as próprias mãos, satisfeito por ser maior do que aquele que poderia matá-lo.
Atlântico
A primeira a ir foi uma perna. Uma bala disparada pelo mosquete de um oficial da marinha mercantil alojou-se atrás do que um dia havia sido sua patela. Na semana seguinte, um cheiro podre minava dos inúteis unguentos aplicados sobre o joelho do capitão. Um joelho esmagado e queimado pela pólvora, liquefazendo-se em chorume. Para o inevitável, vieram uma garrafa de rum, um marujo que costurava sacas de estopa razoavelmente bem, uma serra menos afiada do que o esperado e uma tira de couro benevolente para trazer algum conforto entre os dentes. Foi-se uma perna.
No dia seguinte, em pé diante de sua cabine, o capitão estranhava seu novo membro de madeira enquanto esboçava com sua extremidade elipses pelo chão do convés. Logo à frente, os marujos fechavam as mãos ritmadas contra os remos da galé. Sob o céu marítimo sem nuvens, suavam tronco, braços e pernas. Suavam corpos completos. Indignado, o capitão ordenou colérico que metade de sua tripulação acorrentasse a outra. Desorientados pelo encantamento de sua voz, obedeceram. Seguindo, mandou que dos livres, metade prendesse o outro grupo. E de metade em metade seguiu, até que do último deu conta por si só, unindo com grilhões uma mão de cada tripulante. Em seguida, com um grande machado empenhou-se até o anoitecer em remover pernas. Ninguém nunca teria mais do que ele, nem que para isso precisasse manter todos presos por suas correntes e suspensos por sua magia.
A segunda a ir foi uma mão. Esmagada contra a parede pelo recuo do disparo de um canhão. Os dedos fraturados se torciam em uma massa gangrenada.
O terceiro a ir foi um olho. Vítima de um estilhaço saltado de uma pistola, o órgão afundou-se dentro de sua cavidade, fazendo-a parecer tão funda quanto um precipício.
Os quartos a irem foram os dentes. Bastou um beijo do escorbuto para levar-lhe toda a arcada, substituídos toscamente por uma escultura em marfim polido.
O quinto a ir foi o órgão viril. Decepado por um golpe baixo em um duelo de sabres, abriu espaço para uma torrente de sangue e fluidos entre os quadris do capitão.
A sexta a ir foi a cabeça. Cortada durante o sono por uma tripulação maneta, mas aliviadamente masculina.
Indico
Desprenderam-se da costa somaliana com um apetite voraz. A sucata navegável era condecorada por marcas de disparos em toda a sua lateral, um polvilhado de morte no casco enferrujado. Trazendo a imagem de árvore seca, os mastros se preenchiam com um aglomerado de homens a procura de sua presa. Em terra, o condor, no mar, os piratas. Famintos. Famintos.
Era noite, e uma pequena embarcação indiana que seguia para o Chifre da África não viu os corpos negros escondidos nas dobras da noite. Sorrateiros, os piratas deslizaram pelas ondas e albaroaram seu alvo. Com o choque, gelou-lhes a barriga a sensação familiar. Não medo, só fome.
Atiraram, cortaram, furaram e mataram. Gargantas sangraram e peitos abriram. Untando seus corpos, o sangue dos mortos era um troféu da sobrevivência. Enquanto isso, a água invadia o navio indiano por uma fenda aberta pelo esporão pirata. Desceram apressados aos deques inferiores para desenterrar o seu tesouro. Para o infortúnio da gula dos navegantes, encontraram apenas baratos componentes eletrônicos inteiramente submersos. Nenhum sinal de comida. E a fome era muita.
Deixaram desordenadamente a embarcação assassinada antes de o mar reivindicá-la. Famélicos, alisavam as costelas saltadas em suas carcaças. Já olhavam uns aos outros com um diferente pesar. O capitão foi o primeiro a apunhalar seu oficial, enquanto arrancava às mordidas uma parte de seu pescoço. Com esta fagulha, a comoção explodiu em um tenebroso banquete canibal. Nada pensavam, apenas mastigavam, mastigavam e mastigavam.
O sol nascia quando apenas um sobrou. Apoiado com as costas na amurada, o capitão chupava avidamente o tutano do fêmur de seu subordinado. A barba empapada em sangue deixava manchas coaguladas em suas roupas. Sua língua dançava por dentro do osso agarrando tudo que estivesse em seu alcance, e quando nada mais conseguiu, passou a mastigar o osso por inteiro. Quando terminou, arrancou os pedaços de seus dentes fraturados, dispondo-os em sua mão. Olhou-os como jóias contra o sol matutino e, sem pestanejar, engoliu-os. Ainda tinha fome. Desamparado, seu olhar caiu sobre sua barriga inchada. Sua boca salivou.
Mediterrâneo
Beijou Helena às sombras de um cavalo em Tróia. Para Cleópatra, ensinou um truque ou dois. De Sherazade, ouviu que aquela valia mais do que mil e uma noites.
Em seu ouvido, Circe gemeu que um animal daquele nunca vira. Em êxtase, Elizabeth Báthory fez suas costas sangrarem. Por ele, Dinamene deixou o poeta e lançou-se ao mar.
Em Olympias, fez Alexandre. Em Reia Sílvia, Rômulo e Remo. Fez outros tantos que ergueriam e encheriam nações.
Norte, sul, leste e oeste. Só o vento indicava em que cama cairia com o sopro da noite. Deitou-se com a Europa, amou a África e jamais se esqueceu da Ásia. Era feliz. Isto até o fatídico dia que encontrou o Olimpo e, enquanto acariciava três deidades após o coito, uma delas perguntou:
“Quem é a mais bela?”
Golfo do México
A tontina havia chego ao seu desfecho. Um encerramento precoce, graças ao sétimo irmão. Dos associados, era o único sobrevivente. O último Mar onde antes eram Sete. Tudo havia caminhado espontaneamente para o pacto, algo natural e instintivo. Fatalmente, possuíam apenas uma única regra. Uma regra simples e juvenil demais para reger um acordo. E justamente por ser simples não conseguiu cobrir todas as possibilidades.
“O último a morrer leva tudo.”
Foi preciso audácia e, principalmente, paciência para finalmente conquistar seus tesouros. Alguns dos seis encontraram seu fim por si só. Para os outros, bastou apresentar as mulheres erradas, instigar tripulações, soprar correntezas e ludibriar impulsos. Havia sujado as mãos, mas as limparia com ouro e mar. Em sua cabeça só havia espaço para outra coisa.
“O último a morrer leva tudo.”
Aproximava-se da costa americana na penumbra da noite. Capitão de tripulação nenhuma, decidiu seguir só para evitar a cobiça de seus tesouros. Não pretendia dividir nada com ninguém. Por isto, alternava-se entre o leme e as adriças. Tudo era só seu, e ainda teria mais.
“O último a morrer leva tudo.”
Uma grande plataforma petrolífera cuspia fogo no horizonte, feito os dragões que havia visto na infância do mundo. Parou, examinou o mapa, conferiu as estrelas. Era ali. Um corte na mão, algumas gotas de sangue no mar, e um grande baú saltou para a superfície. Avidamente, o capitão usou um gancho preso a uma haste para aproximar o objeto de seu navio, e dali, para cima do cais, junto a outras peças de ouro e jóias perdidas. “Meu! Meu! Meu!”. Sob o peso do achado, a embarcação cedeu mais alguns centímetros ao Oceano. Nada que o capitão notasse, pois se deliciava com a poesia de certas palavras enquanto via outros baús saltando do mar.
“O último a morrer leva tudo.”
A única coisa que o capitão não sabia é que não há embarcação que suporte o peso de todos os tesouros dos sete mares. Mas descobriria.
Este conto foi escrito por Vitor Stuani. A publicação neste blog foi devidamente autorizada pelo autor.
Muito bom. Queria poder fazer uma crítica melhor, mas nesse aspecto sou medíocre. Só posso dizer que gostei da exploração de elementos que tornaram esse conto, vários em um só, e da mitologia por trás.