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Detox Literário.

O macio dourado do sol – Conto (Angelo Rodrigues)

Dorinha despertou ao ouvir os ossos do cachorro Vadico baterem rápidos contra o chão de tábuas da vizinha. Sarnas, pensou, esse pequeno diabo anda cheio de sarnas. Foi quando lembrou de Sônia, a filha pequena, que havia deixado a cama e brincava sozinha na sala.

— Sônia… — ela chamou.

Ainda enrolada em cobertas, Dorinha esperava que as arruaças da noite anterior a deixassem descansar. Suava lembrando do cliente agigantado que a espancou quando não foi capaz de satisfazê-lo como desejava. Bruto, ele a estuprou, mordeu seu corpo, seus seios, fazendo porejar suas nádegas de sangue com fortes tapas de mão espalmada, tomadas de calos e unhas duras como são as de um urso.

As lembranças daquele homem ainda giravam vivas em sua cabeça, como se tomada por um imenso redemoinho onde tudo se confundia. À sua frente se multiplicavam imagens: o homem que a maltratara, as vinganças que logo viriam, as intrigas amorosas havidas entre as amigas com as quais dividia clientes nos quartos de aluguel, a filha Sônia, que agora brincava na sala.

Não importava se gostava ou não de lá estar, a abrir-se a homens que nunca poderia deixar de aceitar. Tinha a casa, a filha, os compromissos que sempre exigiam providências; e não eram poucas. Tinha agora que descansar, recuperar-se para ainda naquela noite estar pronta e fresca para os amores arranjados.

Sônia ouvia o que a mãe dizia e não fazia caso. Brincava na pequena sala da casa com os próprios dedos, enrolava-os uns nos outros, criava tramas, olhava as unhas por cortar, sujas, voltava a cruzar os dedos formando com eles figuras simples que se repetiam em movimentos lentos; eram triângulos, retângulos, círculos. Dedos diminutos de menina que pareciam se embolar em suas mãos

Às vezes apenas olhava as palmas pequenas, e levando à boca os dedos, experimentava o gosto que tinham, ora doces, ora azedos, ora desconhecidos, e sempre afinando com a língua o polegar da mão esquerda.

Na sala havia uma cômoda antiga, garrafas com bebidas, retratos tomados pelo cotão e revistas antigas que diziam das novidades da moda feminina de outros tempos. Sobre uma mesa coberta por uma toalha de crochê, um jarro fosco pela poeira afogava um buquê de flores murchas. Três cadeiras repeliam o desejo de nelas descansar.

— Sônia… — insistia Dorinha, ainda deitada em sua cama.

Sônia não dava conta de responder à mãe, apenas a ouvia. Só ouvia, e isso não era o bastante para que se movesse na direção de seus apelos, que sempre seria um ralho ou antecipavam uma ordem, um mando, uma providência inútil que não desejava cumprir; era o dia que começava.

O sol vazava o vão das telhas sobre os caibros nus de forro e projetava longos cilindros de luz no interior da casa escurecida por portas e janelas trancadas.

Quase entrava a tarde e Dorinha ainda descansava; Sônia esperava, não sabia o quê; só esperava.

Um denso tubo de luz formado pelo pó dos tecidos, das cobertas, das roupas mexidas, da vassoura um dia passada a fundo, iluminava as mãos pequenas de Sônia, e quando o sol se moveu mais rápido, um novo facho de luz vindo do teto se abriu projetando-se sobre a mesa, bem afeito às brincadeiras. Sônia brincou com ele querendo tomar para si as partículas suspensas, e interrompeu a vontade da luz tomando-a nas mãos abertas, deixando que iluminasse suas palmas como se as banhasse numa cachoeira de luz dourada, a escorrer por entre os dedos, atravessando vãos e caindo luminosa sobre a mesa. A luz bateu intensa sobre toalha e se espalhou como uma onda, colorindo as tramas empoeiradas do crochê.

— Sônia… — voltou a dizer Dorinha pela porta entreaberta do quarto.

Ao som da voz que chamava, como se em fuga estivesse, a luz andou mais rápida até cair pesada pelo excesso do pó que a tomava. Com seus passinhos curtos aquela luz caminhou vadia pelo piso de tábuas, e Sônia a acompanhou. Olhava a luz iluminar as gretas tomadas pela cera antiga, ressecada pelo tempo e crestada como uma pele que envelheceu demais. Viu redemoinhos diminutos e lentos se levantarem do fundo das frinchas do assoalho dispersando o pó que ali dormia por anos, engrossando ainda mais o cilindro dourado da luz que entrava pelas telhas-vãs.

Sônia deixou a mesa e deitou-se no chão, bem sob a luz caída, deixando-a caminhar com seus passos imperceptíveis sobre o seu corpo. Pôde saber quando o calor daquela luz tomou seus cabelos negros e longos espalhados pelo chão. Sentia o fogo do sol que começava a possuir docemente o seu rosto. Fechou os olhos quando sentiu que o dourado da luz chegava até eles. Gostou de tê-lo sobre as pálpebras trancadas, como se dormisse. Quase a sobressaltava o negrume sob olhos apertados, protegida do lume intenso, que era um longo bastão de ouro. Às vezes ela abria seus olhos pequenos, bem pouco, deixando que os cílios filtrassem a delícia dourada que tomava o seu rosto. Sentindo a luz caminhar lentamente sobre a suas faces, ela abriu a boca, como se fosse capaz de comer aquele fruto macio e luminoso que chegava do céu.

— Sônia… — a mãe se transformara num som difuso e distante. Sônia já não a ouvia.

A luz morreu quando atingiu seu peito. Ficara fraca até para iluminar a escuridão lassa da casa. Deitada como estava, Sônia esperou que outro bastão de luz chegasse até ela, um outro sol que entrava por uma fresta na parede para iluminar seu peito, uma luz bem mais determinada a cumprir desejos. Sentou-se e a tomou nas mãos, brincou novamente com ela voltando a fazer figuras: triângulos, retângulos, círculos, num encontro incerto de dedos pequenos. Gostou quando viu encher a palma das mãos com o macio dourado do sol que a tomava. Queria abraçar as partículas que pareciam mundos que flutuavam bem diante dos seus olhos.

— Sônia… — a menina sabia de uma voz que chamava de um lugar distante, perdido em tantas repetições.

A luz correu rápida sobre o seu corpo e ela a pegou, tomou-a para si quando iluminava seus dedos, suas mãos, fazendo espargir partículas enquanto balançava suas palmas. Apressada, a luz mexida caminhou na direção da porta da casa até iluminá-la por completo. Sônia a abriu e pôde ver que lá fora havia toda a luz que queria. Banhou-se nela e correu à rua tomada por uma difusa alegria. Nunca mais ouviria aquela voz que tanto dizia seu nome; não queria ouvi-la, e correu o mais rápido que pôde em uma direção que ainda não conhecia.

20 comentários em “O macio dourado do sol – Conto (Angelo Rodrigues)

  1. Renato Silva
    26 de março de 2024

    Um conto pequeno e aparentemente simples. Primeiro, temos Dorinha, uma prostituta que precisa se sujeitar às piores humilhações para poder sustentar a filha, Sônia. Por conta do seu trabalho nortuno, ela ainda dormia durante o início da tarde.

    Mais para frente, o conto foca-se em Sônia, uma menina de idade indefinidada, mas presumo que teria menos de 5 anos.

    O conto, agora focado em Sônia, descreve seu deslumbamento com um facho de luz que entra por entre as frestas e buracos na telha. Considero bem interessante a utilização por parte do autor de algumas figuras de linguagens, dentre elas, a sinestesia.

    A parte final me intrigou. De início, entendi que a criança saiu pela porta e por algum motivo acabou morrendo ou levada por alguém. Mas numa segunda leitura, me parece que a menina já estava moribunda enquanto brincava com a luz e que, ao abrir a porta, ela desencarnou.

    Apesar da simplicidade do texto, ele mostra grande técnica por parte de seu autor. Conseguiu me prender a atenção e me deixou intrigado.

    (Não li os demais comentários, para que todas as minhas impressões aqui fossem totalmente livres de vieses).

  2. fabiodoliveirato
    21 de março de 2024

    Buenas, Angelo.

    Um conto singelo e poético, sensível, que explora, além dos sentimentos dos personagens, as sensações e percepções dos leitores. O tipo de texto que transmite uma mensagem diferente para cada leitor. Gosto dessa abertura, dessa complementação, apesar de que alguns podem sentir falta de algo mais concreto ou enxergar que a história não recebeu a atenção devida.

    Continue escrevendo, Angelo!

  3. rubem cabral
    21 de março de 2024

    Olá, Ângelo.

    Lindo conto! De início pensei que ele seguiria um estilo mais bruto, quando descrevia as memórias recentes de Dorinha. Depois, ficou realmente bonito por brincar poeticamente com o que normalmente não é enxergado como poético: poeira, dedos sujos, frestas, cera seca descascada, etc.

    É interessante também um certo surrealismo na mãe eternamente deitada, repetindo sempre e somente o nome da filha, que seduzida pela nova amiga – a luz – não lhe dava ouvidos e seguiu as figuras efêmeras de luz e pó para um destino desconhecido.

    Abraços!

    • Angelo Rodrigues
      21 de março de 2024

      Oi, Rubem,

      obrigado pela leitura e considerações. A ideia era transformar a luz numa personagem, a terceira, condutora.

      Abraços!!

  4. Antonio Stegues Batista
    20 de março de 2024

    Olá Ângelo. Você começa o conto muito bem, o narrador anônimo fornecendo as informações necessárias sobre personagens, ambiente e o que está acontecendo com muita tranquilidade e precisão, parece óbvio, mas não é. Quem sabe sabe.

    A mãe chama pela filha, mas a resposta não vem em seguida, ficamos na expectativa. Como se fosse um filme, a câmera vai até onde está a criança na sala, que ouve a voz da mãe, mas ela está concentrada num facho de luz que escoa pelas telhas. As descrições da menina, da luz do Sol, das sombras, da poeira suspensa no ar, formam belas imagens mentais. Sonia brinca com o Sol, mas a Terra gira, o Sol se afasta e a atrai para fora da casa, para a liberdade daquelas quatro paredes escuras, para um mundo de luz e cor. Este é mais do que um conto, é pura Poesia. Nota 10. Parabéns.

    • Angelo Rodrigues
      20 de março de 2024

      Oi, Antônio,

      muito obrigado pelo comentário. Legal que tenha visto a poesia do conto. Busquei transformar a luz em uma personagem, que brinca, anda e mostra um caminho. O conto tem três personagens, e chego a imaginar que a luz seja a verdadeira protagonista da história, a condutora.

      Abraços, e obrigado, Antônio.

  5. Kelly Hatanaka
    19 de março de 2024

    Oi Angelo.

    Um conto muito bonito. Chama a atenção a escrita poética, a escolha precisa de palavras. É um texto trabalhado, lapidado.

    Do ponto de vista do enredo, é uma trama simples. Dorinha, mulher sofrida, vida difícil, recupera-se da noite anterior enquanto chama a filha, Sonia, que brinca sozinha na sala. Encantada pela luz do sol que atravessa o teto, a menina se deixa conduzir para fora da casa, onde foge em direção da luz.

    Entendo a saída de Sonia como uma fuga, ou uma tentativa de fuga, de uma sina semelhante à da mãe. Pelo seu ponto de vista, a vida ainda é lúdica. Estranhei o final, em que o narrador diz que ela jamais escutará novamente a voz da mãe. Significa que ela conseguiu fugir. Mas, conhecendo o mundo, temo que ela não tenha alcançado a luz.

    Parabéns!

    • Angelo Rodrigues
      20 de março de 2024

      Oi, Kelly,

      Obrigado pela leitura e interpretação.

      Sônia se mandou, é fato. Depois, quem sabe? É quando entra o leitor e resolve – ou não – o enigma, quando há.

      Obrigado novamente, Kelly.

  6. Priscila Pereira
    19 de março de 2024

    Olá, Angelo! Tudo bem?

    Senti como se o conto fosse dividido em duas partes. A primeira com a mãe, duramente presa no mundo real de miséria, abandono, vergonha, raiva. Seca, dura, rabugenta. E na segunda, a filha, ainda imersa no mundo da fantasia, do belo, do simples, do mágico. E o chamado da mãe é como uma âncora, um fio condutor de ancestralidade que quer levar a filha exatamente para onde a mãe está e a luz é única saída para não se perder nesse mundo real e sofrido da mãe. E a menina tão pequena e tão pura ainda escolhe seguir a luz, a magia, a fantasia onde ela pode ser feliz e acolhida.

    Gostei muito! Parabéns!

    • Angelo Rodrigues
      20 de março de 2024

      Oi, Priscila,

      Obrigado pela leitura e interpretação.

      Creio que você tenha pego bem o sentido do conto. Sônia deu no pé, seguiu a luz.

      Obrigado, novamente.

  7. Regina Ruth Rincon Caires - Caires
    19 de março de 2024

    Daqueles textos que a gente acaba de ler e fica embriagada de poesia. Como pode descrever com tanta delicadeza a réstia de luz que vaza por entre as telhas desarranjadas e que se torna o brinquedo fantástico da menina. E o balé das mãos e dos dedos, a sinuosidade dos movimentos do corpo e o encantamento que brota da alma e vaza pelos olhos. Santa literatura! Como é bom “sentir” tudo isso…

    E a poeira por toda parte? Retrata a inércia, o desalento. Nada de limpar, de arejar, de mudar. Tudo é abandono. E o partir, o achar a luz que inunda!

    Eu não conhecia a palavra cotão. Muito interessante.

    Parabéns, Ângelo, texto de gigante…

    Abração…

    • Angelo Rodrigues
      20 de março de 2024

      Olá, Regina

      O que dizer de seu comentário? Obrigado seria pouco. Emocionante lê-lo. O problema de um comentário como o seu, é exatamente não poder seguir adiante. Iria estragar o momento.

      Então fico com a palavra cotão, para não falar tão pouco.

      Desde criança ouço essa palavra. Cotão. Minha mãe e irmãs – tive seis delas – tinham verdadeiro pavor de ver o “cotão” onde quer que fosse, então limpavam tudo.

      Procurei a etimologia da palavra cotão e vi que ela vem do árabe egípcio Cutun, mas acho que não, acho que ela nasceu lá de casa, na boca de minha mãe e minhas seis rmãs.

      Felicidades, Regina, e obrigado pela leitura.

      • Regina Ruth Rincon Caires - Caires
        20 de março de 2024

        Ângelo, nada a agradecer.

        A palavra tem memória, não é? Minha mãe, quando falava em limpar alguma coisa “encardida”, dizia “tirar o picumã”. E picumã era aquela sujeira que se juntava no teto (que era telhado), a sujeira que vinha da fuligem do fogão de lenha, de teia de aranha.

        Abração, menino. Seu texto me encantou…

  8. givago99dthimoti
    19 de março de 2024

    Olá, Angelo, tudo bem?

    O conto é muito bem escrito. As cenas são bem construídas, o seu talento para escolher as palavras mais bonitas entre as vastas possibilidades do vocabulário fica bem definido.

    Contudo, a sensação que tive ao final da minha leitura (e da releitura) é que há um grande esmero em relação às palavras, enquanto a história se perde em algum momento do conto. Termino a história sem saber exatamente o que aconteceu; seria a primeira vez de Sônia percebendo a luz (considerando que ela nasceu cega, sem conseguir distinguir muito bem entre luz e sombra, até que um dia ela consegue), ou como o Gustavo confabulou, ocorre um incêndio ao estilo This is Us que destrói a família, restando apenas as partículas daquele mundo, enquanto Sônia partia completamente alheia.

    Enfim, uma construção narrativa bonita, mas confusa demais.

    • Angelo Rodrigues
      20 de março de 2024

      Olá, Givago,

      Obrigado pela leitura.

      Quanto às palavras do conto, legal que tenha percebido que elas soam bonitas. Tenho implicância quanto a isso. Acredito na integralidade do conto. Quando alguém lê um texto, uma voz fala lá no fundo do cérebro, e quanto mais harmônico forem os sons que reverberam lá por dentro, mais promissor será o resultado. Por isso a busca pelas palavras certas. Nem sempre é possível conseguir esse efeito. Penso sempre em algo meio lisérgico como acontecia nas músicas do The Mamas & the Papas, nos anos 1960 e 1970, que tinham uma voz subliminar nos arranjos.

      Tenho um texto que fala um pouco sobre isso, e ouso reproduzi-lo abaixo. Não falo de um escritor, mas de um leiloeiro que vende produtos buscando causar uma certa “dormência” nos compradores, embalando-os para que acreditem mais e mais nos produtos ofertados. Aqui vai:

      “Sei que leiloeiros como o senhor Salomon têm códigos preciosos que dão elegância às coisas mais simples do mundo, sempre usando palavras de nobre linhagem. Eles acreditam que as palavras têm também os seus pedigrees, como animais de estimação ou cavalos de raça. Fico me perguntando onde os leiloeiros arranjam todos aqueles nomes faustosos, sem quinas, arredondados, gostosos de ouvir, que soam como um vento morno aos ouvidos, ilustrando os objetos que expõem.

      Quando penso sobre isso fico imaginando que algum dia acabarão por escrever um dicionário de palavras elegantes, sonoras, capazes de fazer rebrilhar uma conversa entre diplomatas, escritores parnasianos e leiloeiros que um dia se imaginaram pertencer a alguma aristocracia. Irão chamá-lo de Dicionário das Palavras Elegantes. Se acaso me convidassem a fazer uma qualquer contribuição com algum verbete, incluiria umas palavras bonitas que conheço, tais como Adscriptus glebæAlcoolofóbicoAltívagoEscouçadoEsmaio, Flamívomo, Agelasta e talvez Peanha. Quanto a esta última tenho dúvidas, pois às vezes, ao ouvido, Peanha me parece algo dito por quem esteja gripado ou tenha uma trágica fissura no palato. Bem, talvez não a incluísse, mas creio que se perguntado, o senhor Salomon a incluiria, sendo ele capaz de dissertar longamente acerca do verbete Peanha com muita desenvoltura, se bem estimulado.”

      Bem, é isso.

      Quanto ao seu comentário relativamente à história em si, não posso seguir adiante. É a sua compreensão e fim de conversa. Digo apenas que não escrevo contos que tenham conotações apoteóticas, conclusivos, tipo tapa na cara do leitor (lamento, senhor Julio Cortázar). Uma história, acho, pode ser apenas uma história, tal como a de Sônia, que ficou de saco cheio de viver a vida que tinha e se mandou. Só isso. E isso não é pouco. Ela abriu a porta e caiu no mundo, ainda que bem pequena. Creio que me adapte bem ao estilo de alguns escritores dos quais gosto com sinceridade. Sam Shepard, Lydia Davis, Raymond Carver, Yasunari Kawabata e tal. Bem, todos estrangeiros. Vivos, mortos, suicidas, drogados e bêbados… o que fazer? Gosto porque tratam a vida com a simplicidade que a vida parece exigir. Os fatos da vida, acredito, não precisam ser anabolizados para serem legais. Bastam ser simples e bem construídos para terem, ao menos, algo de bom.

      Valeu pela leitura, Givago!!

  9. Gustavo Araujo
    19 de março de 2024

    Esse conto me deixou um tanto confuso. Primeiro temos Dorinha, a mulher que faz do próprio corpo sua sobrevivência, que escuta um cão e que chama a filha incessantemente. Em poucas linhas, conhecemos sua profissão, suas agruras, suas lutas, sua busca por um fio de dignidade e, claro, esperança, traduzida pela filha Sônia que brinca na sala.

    Em seguida o texto foca na menina e em sua concentração fantástica nos próprios dedinhos, nas mãos e na luz. As descrições são muito boas, bem imagéticas. Consegui visualizar plenamente as cenas, as mãos se retorcendo, a alegria da garota com a própria desenvoltura, o encanto com a luz dançante.

    Então vem o arremate e, confesso, não consegui captar direito o que houve. A luz do sol de repente sucumbe, dando lugar a outro tipo de facho luminoso — ou seria algo maior? De todo modo, a garotinha sai pela porta, não aguenta mais o chamado insistente da mãe. Prefere essa luz envolvente, nova, que lhe dá prazer.

    Diversas coisas me passaram pela cabeça: um incêndio? Não… Não me parece que o Angelo Rodrigues apelaria a um evento traumático, deus ex-machina, para encerrar um conto tão sensível. Bem, talvez Sonia simplesmente tenha ido à rua, onde o sol reinava absoluto e inclemente. Ali poderia permanecer sem incômodo. Sim, quero me convencer que é isso. Mas aí, onde estaria o arremate para o drama da mãe Dorinha? Pergunto isso porque houve uma construção bastante competente dessa personagem, só que no fim, ao que me pareceu, faltou algo que conectasse o destino dela com o da filha.

    Quero ler as impressões dos outros leitores. Talvez ajude a iluminar (!) minha mente já cansada neste fim de tarde.

    • Angelo Rodrigues
      19 de março de 2024

      Olá, Gustavo.

      Legal ter lido o conto.

      Defender um texto sempre será algo complicado, de modo geral prefiro não fazer. A culpa da falta de compreensão nunca será do leitor. Se não foi compreendido, esse é o ponto. E volta o autor ao texto para ver o que houve.

      Vou rever o que pode ter saído errado.

      Mas posso falar da minha intenção.

      Às dificuldades de uma vida infantil, no relacionamento entre mãe e filha, aquele momento, a insistência da mãe, o ambiente e a luz que entra pelas frestas do telhado, são condutores imagético para conduzir a filha a uma fuga daquele “lar”. Basicamente isso. A luz que entra faz suas alegorias, caminha, mostra o pó crestado entre as frinchas do chão e tal. Caminha percorrendo seus cabelos, seu corpo, e segue em direção à porta, que se ilumina num dado momento. De forma simbólica, a menina se encanta com a luz que vê, e vai embora. A luz é uma personagem condutora da vontade de Sônia. A porta é uma espécie de toca de coelho de Alice ou tantos outros veículos de condução para “outros mundos”.

      Esse é o conto. A fuga de uma criança que já não suporta aquela relação de mando e ralho e foge. A luz é apenas um elemento de condução em direção à porta. Ela quer a luz e lá fora, na rua, sob intenso sol, ela tem o que quer.

      Abraços, Gustavo, e obrigado pela leitura.

      • Gustavo Araujo
        19 de março de 2024

        Oi, Angelo! Muito obrigado pela resposta. Também não gosto muito de ter que explicar o conto, mas às vezes é interessante saber o que o autor teve em mente ao conceber o texto. Claro, enquanto leitores temos o direito de interpretar à nossa maneira o que foi escrito, mas, de novo, entender a mente por trás da criação pode ser muito enriquecedor — e foi exatamente isso que percebi depois da sua mensagem.

        Gosto muito do que você escreve, especialmente quando se aproxima de algo mais poético, menos óbvio, que é o que ocorre neste conto, em especial nos trechos que destacam as brincadeiras que a pequena Sonia desenvolve consigo mesma.

        Para mim, só faltou um pouco mais sobre a (ausência de) conexão dela com a mãe, ou ao menos algo que indicasse de forma um pouco mais clara o abismo (ou a ponte) entre as duas. De qualquer forma, é um texto belíssimo e que convida à meditação. Só isso já vale cada segundo. Obrigado de verdade por compartilhá-lo conosco.

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Informação

Publicado às 19 de março de 2024 por em Contos Off-Desafio e marcado .