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Detox Literário.

Sementes Ruins – Conto (Angelo Rodrigues)

Acredito que o demônio more por um longo tempo no corpo das crianças. Cansado de doces e mimos, ele as deixa em paz, então elas crescem e dão rumo à vida, embora seja certo que fique por lá uma morada em chamas; umas com as portas definitivamente trancadas; outras de portas abertas para sempre, como se aguardassem ser novamente habitadas pelos demônios que as construíram.

Meus primos, por exemplo, nunca deixaram que essas portas se fechassem em seus peitos: eram tão cruéis quanto caberia a poucos demônios, certamente os mais terríveis. Acredito que neles, seus demônios nunca tenham abandonado a morada que outrora construíram.

O pai de mamãe, um judeu antigo, com vista fraca e coração feito do mais puro algodão, era presa fácil de meus primos dementes — e não eram poucos, eram sete como as pragas da Bíblia, todos meninos, que, como uma peste sem remédio, se multiplicavam no ventre de tia Valquíria até chegarem a dez.

Eles cavavam buracos pelo quintal onde moravam com meu avô, e o faziam andar em busca de algo que de propósito lhe tiravam: um livro, os óculos, o chapéu, a bengala que o ajudava a caminhar. E lá ia o coitado às cegas enfiar os pés nas covas cobertas por gravetos e folhas de jornal. Era quando eles riam das quedas que o viam levar, e como falsos samaritanos, corriam avisando que o vovô estava completamente gagá, cada vez mais cego, que não era capaz de ver aqueles tantos buracos que havia pelo quintal, e por lá caía. Que perigo!, insistiam em dizer, aos risos. Chamavam-no de vovô judeu, para desespero de mamãe.

Quando eles iam até a nossa casa, era como se uma comitiva de Satanás tomasse o rumo do Céu: mamãe determinava que eu corresse na direção da casa de algum vizinho, nem que para isso eu precisasse escapar através de uma janela, evitando encontrar meus primos e à sua madrasta, minha avó postiça Marina, sempre a mimar aqueles brutos e a rir de tudo o que faziam. Ela gostava de vê-los agir como pequenos tigres a destroçar coelhos — e para mamãe, eu era como um coelhinho; um menino-coelho.

Mamãe não suportava a madrasta Marina, mais até que aos próprios sobrinhos, e dizia que sempre após a sua visita, eu caía de cama, adoecia sem que para isso precisasse de algum motivo. Havia nisso um pouco de razão e muito de ironia, dado que após saltar certa vez por uma das janelas de nossa casa, em fuga para não estar com eles, caí e quebrei um braço, o que deu à mamãe mais uma prova do que tanto dizia acerca das maldições da madrasta.

Papai olhava tudo aquilo e não fazia caso, balançava a cabeça negando sanidade ao que via e ouvia dela, e voltava aos livros que tanto estudava. Nunca soube se aprovava ou reprovava as esquisitices de mamãe com a madrasta e os sobrinhos, mas nunca interferia. Às vezes dizia suavemente Rosalie…, não sei se reprovando ou apenas alertando para algo incomum que percebesse; mas sei que era a oportunidade perfeita para que ele fosse até a varanda fumar, após cumprimentar meu avô e olhar com indiferença para a sogra, pela qual, posso apostar, nunca teve simpatia.

Meu avô era um homem grande, de poucos cabelos e olhos muito azuis, tão pálido que me permitia ver em suas mãos um mundo de veias correndo sob a pele. Tinha um cheiro que guardo até hoje e o sinto toda vez que entro em um hospital — hospitais têm o cheiro do meu avô —; ideia que nunca se separou de mim desde a infância. Nunca soube o que fazia para viver, o que pensava, o que sentia. Não me causou falta ou curiosidade saber algo mais sobre ele, nem mesmo sobre a sua origem, uma vez que o sotaque que tinha avisava de um distanciamento cultural e temporal de todos nós.

Quando o conheci já era bastante idoso. Não chegamos a ter afetos ou intimidades, herdando dele apenas o nome Samuel. Tão pequeno, via aquele homem enorme pôr seu chapéu de feltro marrom na quina do alto da porta e imaginava que em nossa casa, antes de morarmos nela, um dia abrigara gigantes, ainda maiores que meu avô; bem maiores. Uma casa antiga com portas verdes que chegavam a três metros de altura ou mais, facilitando a evasão do ar quente, aumentando a circulação e refrescando o ambiente, quando ainda não havia aparelhos de ar-condicionado nas casas.

Marina não era de fato minha avó. Chegou à vida de minha mãe logo após a morte de Esther, minha avó de verdade, ainda mais desconhecida por nós que todos da família de mamãe, até menos que meu avô, que eu pouco conhecia. Acredito que com a morte tão prematura de Esther, aos trinta e cinco anos, ficou em mamãe um sentimento irrevogável de abandono, talvez traição, que a fez negá-la a nós, não nos deixando que dela soubéssemos qualquer coisa. Guardava dela algumas fotografias e cartas que nunca nos mostrou. Apagou-a completamente de sua vida, preferindo lutar, solitária, com a sua indesejada substituta. Mamãe manteve com a madrasta Marina uma rivalidade que começou quando ela atingira apenas dez anos e nunca teve prazo para terminar.

Marina trouxe com ela um filho recém-nascido a quem chamava de Neemias, e cujo pai, fato ou invenção, dizia ser o meu próprio avô, Samuel. Após se casarem, meu avô deu a Neemias o nome da família ao adotá-lo como filho legítimo. Começava com isso uma daquelas pendengas que só terminam com a morte do mais vulnerável, e jamais são pacificadas.

O pouco contato que tive com meu avô, deixou em mim ao menos uma lembrança boa, que sempre guardei comigo: não sei que motivo o fazia levar para mim, todas as vezes em que ia até nossa casa, envelopes um pouco maiores que cartas de baralho repletos de sementes de flores e folhagens para que eu as plantasse em nossos jardins. Eu gostava daquilo, e saber que ele vinha nos visitar — particularmente quando estava desacompanhado — me causava uma grande alegria. Acredito que tudo aquilo estava menos associado a ele e mais profundamente ligado às lembranças maravilhosas que tinha dos jardins e da casa de Adelle, a boa amiga de mamãe.

Quando o via chegar, sabia que teria novas sementes para plantar. E sempre as plantava imaginando que dali floresceriam jardins fabulosos, talvez florestas fantásticas — bastava ver as imagens impressas nos envelopes —, mas nunca algo germinou. Quando mostrava a mamãe o que ganhava dele, ela dizia mal dos sobrinhos e dos olhos ruins da madrasta Marina: nada que me fosse dado por ela ou por meu avô poderia germinar. Não espere grande coisa dessas sementes…, dizia. E de fato nada floresceu.

Por muito tempo imaginei que o que ocorria com as minhas sementes estivesse ligado ao destino que cabem aos gatos, aos cachorros e às tartarugas indesejáveis, que surpreendentemente desaparecem à noite, doados a vizinhos ou largados em ruas distantes, com a frustração chegando pela manhã, quando o amado animalzinho de estimação havia desaparecido para sempre. Imagino que mamãe também fizesse sumir as germinações das minhas sementes, maldizendo-as ou intimidando-as com palavras especiais para que elas nunca se tornassem realmente uma planta e florescessem.

Não sei se motivado pelos horrores que mamãe dizia de minha avó postiça, nunca consegui ter a mínima simpatia por ela. Mas talvez não fosse apenas por isso, pela sua malícia e seus olhos ruins e plenos de maldade como ouvia dizer dela, mas pelo fato de que suas pernas eram enormes, inchadas como as pernas de um elefante. Isso, eu via vovó Marina como se ela fosse um elefante calçando sandalinhas que mal protegiam seus pés, de tão pequenas que ficavam sob aquelas patas enormes. Quando a via entrando em nossa casa, era como se visse um elefante vestindo sapatinhos de boneca. Eu tinha pavor de ver aquilo, imaginando que ela sofresse de alguma doença que poderia chegar até minhas pernas.

Numa das vezes em que meus primos praticavam suas crueldades com meu avô Samuel, ele caiu e quebrou uma perna. Em pouco tempo a fratura evoluiu na direção de uma trombose sem remédio que o matou em poucos dias. Por óbvio, mamãe culpou a todos, ao irmão Neemias, sua esposa Valquíria, todos os sobrinhos e, principalmente, a madrasta Marina, que segundo mamãe, foi tirada de um bordel por meu avô, mas isso ela só nos confidenciou — ou mentiu para nós — após a morte do próprio pai.

Aquela morte colocava um fim a quarenta anos de insuperáveis ressentimentos. Entre a tristeza duvidosa causada com morte de meu avô e uma certa euforia de felicidade, mamãe via que aquele fato tão doloroso rompia o único elo que nos ligava àquela família que nunca fora verdadeiramente nossa, um peso do qual se desincumbia de carregar, e para sempre.

A morte de meu avô Samuel a libertava para não considerar nenhuma daquelas pessoas ligadas ao irmão Neemias como parte da sua família de verdade, da sua vida até aquele dia.

Após o sepultamento, retornamos a nossa casa, e lembro que mamãe se sentou ao piano e praticou Schubert — tocou seguidas vezes Improptus — até o dia terminar. Nunca a vi tão triste ao tempo em que mostrava um alívio infinito por nunca mais precisar receber aquelas pessoas em nossa casa, estar com elas, dizer e ouvir coisas pelas quais não tinha qualquer interesse, talvez até mesmo se pegar tendo lembranças da infância, da mãe que a deixou nas mãos de meu avô Samuel e da sua terrível madrasta Marina. Creio que mamãe nunca lhes abriria a porta se tivesse que os receber em nossa casa após a morte de meu avô, mas isso não foi preciso, porque nenhum deles, nunca, nos procurou uma única vez.

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10 comentários em “Sementes Ruins – Conto (Angelo Rodrigues)

  1. Ana Maria Monteiro
    4 de julho de 2021

    Belo conto, Ângelo.
    Mas houve um pormenor que me pesou pela falta de toda a leitura: queria situar dentro da história, o autor e a sua forma narrativa e não lhe encontrei referências à idade em momento nenhum.

    Dar uma fase da vida a este narrador, enriqueceria muito o texto, pois o leitor (mesmo sem pensar nisso) saberia estar a ler uma memória próxima ou distante, de um jovem, um adulto ou um velho e esses pormenores somam muito à experiência da leitura de um relato de vida.

    Bem, posto isto, só tenho a gabar toda a trama, a desenvoltura, a suavidade da escrita, enfim, tudo.

    E mesmo a observação que fiz, em nada foi para diminuir, apenas traduzi um sentimento pessoal e você ajuizará do sentido que lhe dá ou não.

    Um abraço, meu amigo.

    • Angelo Rodrigues
      4 de julho de 2021

      Olá, Ana,

      Obrigado pela leitura e comentário.
      Não lhe tiro a razão, ao contrário, reforço-a e a saúdo pela perspicácia.
      Este conto pertence a uma sequência de eventos passados pelo mesmo protagonista na mesma cidade (lembra? Diamante, que está no conjunto (outro) que mandei a você anteriormente).
      Como forma de situá-lo no tempo (esta foi a minha falha), digo que ele faz par com o conto A Casa de Adelle, que já anda pelo EntreContos há algum tempo.
      Este foi o motivo de a localização temporal ficar um pouco frágil, uma vez que tudo ganha uma melhor explicação nas ocorrências da casa de Adelle.
      Uma boa ideia seria, ao tornar o conto autônomo, como foi o caso, melhor localizá-lo no tempo. Será o que farei.
      Mais uma vez, Ana, obrigado pela leitura.
      Felicidades e grande abraço pra você.

  2. Anderson Prado
    1 de julho de 2021

    Ótimo conto, Ângelo. Amei, especialmente, o primeiro parágrafo. Parabéns!

  3. Kelly Hatanaka
    22 de junho de 2021

    Um conto muito instigante, me fisgou logo nas primeiras linhas. Muito rica a história dessa família, com ressentimentos, mágoas e omissões… E interessante esse final me que a tristeza da morte se mescla ao alívio pelo fim das obrigações.

    Parabéns!

  4. Ana Bittencourt
    22 de junho de 2021

    Muito boa a história! Mantém nosso interesse do início ao fim. Parabéns!

  5. thiagocastrosouza
    22 de junho de 2021

    Grande Ângelo! Está produzindo uma série de contos familiares? Enquanto A Presença do Meu Pai vai por um caminho mais nostálgico e afetivo, neste temos uma inversão total das relações familiares: são intrigas, invejas, e elos que são mantidos unicamente pelo sangue, pela vida. A morte, nesse caso, é a libertação de laços inconvenientes e ressentidos.

    Excelente!

    Grande abraço!

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Publicado às 22 de junho de 2021 por em Contos Off-Desafio e marcado .
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