“Chegará o dia em que teremos que provar ao mundo que a grama é verde.”
G. K. Chesterton:
Joseph Hoff cantarolava o Prelúdio de Tristão e Isolda, de Richard Wagner.
A canção fazia-o recordar a infânciana Alemanha, no distrito de Herrenberg, uma fase maravilhosa transcorrida entre pueris travessuras com os dois irmãos mais velhos e o abatedouro aos fundos da fazenda da família. Sob comando paterno, a rotina iniciava-se de madrugada e em mutirão todos ajudavam a abater, desmembrar e separar os animais que seriam vendidos no mercado pela manhã, transportando-os em carroças esquálidas que gotejavam sangue e fediam ao frescor da morte.
Isso fora há bastante tempo — anos antes do Führer convencer-se de que jamais venceria A Segunda Grande Guerra e acertadamente extirpar a ideia metendo uma bala na cabeça —, entretanto a lembrança lhe surgia com saudosa vividez, como às vezes ocorre quando sentimos certo cheiro, experimentamos ou ouvimos algo que evoque o passado. Os recônditos de nossa mente têm a incrível capacidade de associar e armazenar fatos e ações a determinadas épocas, bastando-nos possuir apenas a chave correta para acessá-los.
E Prelúdio lhe era essa chave.
À medida que a cantilena se desenrolava, um sorriso matreiro começou a dançar-lhe nos lábios, as hábeis mãos estendendo um tecido sobre a bancada junto à parede para então enfileirar metodicamente suas ferramentas: cutelos, serras, facas, machados de cabo curto, um balde de inox e um aquecedor indutivo caseiro. Um ao lado do outro, todos confeccionados por ele próprio, estando agora polidos e reluzentes.
Magníficas!, pensou em desmetida devoção, a vasta careca porejando e escorrendo em traços irregulares pelo rosto redondo e acneico, e às vezes pelas sobrancelhas negras hirsutas que sombreavam seus olhos baixos e solícitos. Secando-se num lenço, ligou o aquecedor e posicionou dois dos cutelos, suas lâminas incandescendo-se gradualmente.
Enfim, meteu as mãos sob o avental que lhe cobria a pança protuberante, retirando um pequeno relógio. 18h30min.
— Podemos começar — sussurrou para si, as palavras pronunciadas com forte sotaque alemão.
Dobrando as mangas da camisa, agarrou a serra e se aproximou do corpo estendido na bancada de madeira ao centro do cômodo. Era um homem, firmemente atado com tiras de couro atravessando pernas, braços e peito, impedindo-lhe o menor movimento. Usava uma bela Dudalina de linho púrpura e cabelos bem aparados, e na boca um pedaço de pano entrelaçado para que não gritasse. Encontrava-se seminu da cintura para baixo.
Joseph segurou-lhe firme na base do joelho esquerdo, abaixo do torniquete, encostando a serra numa área previamente raspada e demarcada. Inspirou com força e, antes que arremetesse, o indivíduo levantou a cabeça, fitando-o com imensos olhos vidrados.
Mas Joseph Hoff pouco se importou, voltando a cantarolar, sendo acompanhado agora pelo vaivém rangedor de ossos sendo cortados.
***
Era o terceiro dia de julgamento e o entorno do Fórum Criminal Mário Guimarães no Estado de São Paulo assemelhava-se a uma Babel paulista. A cobertura da mídia e curiosos era ostensiva, tumultuando as calçadas e o tráfego, afinal a complexidade do caso ganhara tamanha projeção que já despontava no cenário internacional através do The New York Times.
Transcorridos os morosos entraves decorrentes de julgamentos desta natureza, a promotoria passara a apresentar sua acusação, descrevendo minúcias do que fora apurado. Conduzido por um promotor pequenino e magricela, mas dono de um vozeirão agressivo como uma trovoada, tal etapa se arrastara por horas — entretanto, se vira explícita numa matéria especial do Jornal Notícias Populares publicada no dia seguinte.
O caso penava na mídia havia algum tempo e o público buscava detalhes como porcos chafurdando a lama, tornando as reportagens quase romanescas.
Açougueiro Louco Transforma quarto de pensão em abatedouro
[…] O imigrante alemão Joseph Hoff planejava o crime há meses, consumando-o enfim contra Victorio Bernardini, um respeitável médico geriatra da zona sul paulistana.
O assassino alugara um quarto na pensão La Vie En Rose, forrando suas paredes com lã de rocha e tecido para criar um eficiente isolamento térmico-acústico caseiro, de modo que ninguém pudesse ouvir o que se passava lá dentro. Ao centro, montou uma bancada de madeira semelhante a uma maca hospitalar e outra à lateral para armazenar ferramentas. Foi neste ínfimo antro de horrores que Joseph mutilou o médico, ainda vivo e consciente, deixando-o padecer até a morte.
Diante de tamanha atrocidade é quase impossível acreditar que um mero açougueiro seja tão habilidoso para serviços manuais, produzindo itens que até mesmo profissionais do ramo teriam dificuldade em fazê-lo. Ele era extremamente caprichoso.
Por outro lado, este fato demonstra seu alto grau de sadismo e premeditação, afinal descobriu-se que, embora de classes sociais diferentes, Joseph e Victorio nutriam forte amizade — sendo este último o responsável por custear aluguel e demais despesas necessárias às peculiares alterações no cômodo.
Assomando-se, há outros dois bizarros detalhes.
La Vie En Rose é habitada por todo o tipo de gente e populares informaram que Joseph a frequentava com maior regularidade. De poucas palavras, falava o mínimo habitual à boa convivência, conseguindo entrar e sair com materiais e ferramentas sem chamar a atenção. Victorio aparecia vez e outra e os dois permaneciam horas no quarto, conversando, tomando cervejas — e sabe lá Deus fazendo mais o quê.
“O pessoal achava que eram mariconas e vinham ai só torrar o anel, mas ninguém dizia nada”, essa era a opinião geral, expressa à guisa de Pena Branca por uma vizinha de mesmo corredor.
E talvez não comentassem nada por que Joseph era enorme, de rosto rude e mal encarado, seu bom dia ou boa tarde soando num alemão tão áspero que se aproximava de um responda-e-cale-a-boca.
O outro detalhe, talvez ainda mais perturbador, é que a viúva, Berenice Bernardini, uma conceituada psicóloga, não apenas conhecia Joseph e a amizade entre ele e seu finado marido, como também a apoiava. “Vic mudou muito após os dois se conhecerem”, alegou. E por esta razão se manifestou em prol do assassino, arcando com os custos de sua defesa.
Joseph foi preso no mesmo dia do assassinato, estando bastante machucado após ser atropelado acidentalmente durante a fuga.
***
Os infames ideais apregoados pelo reinado do Führer lançavam perniciosas raízes numa Alemanha pós-Primeira Grande Guerra arrasada econômica e moralmente, incitando e pervertendo os conceitos de uma nação ressentida pela derrota.
Entretanto, praticamente isolados no distrito de Herrenberg, seus habitantes viviam incólumes às distorções na Teoria da Eugenia, supremacia racial ou quaisquer dos preceitos instituídos pelo nazismo. As pessoas simplesmente viviam à liberdade de viver.
E Joseph Hoff sempre foi considerado um garoto normal, embora — nas ocasiões em que seus irmãos se divertiam com amigos caçando javalis, treinando cães para rinhas clandestinas, nadando em locais proibidos ou aprontando qualquer outra peripécia juvenil — preferisse permanecer na casa principal auxiliando a mãe e duas tias que também moravam na fazenda.
— Ryan, as pessoas desconfiam do Josh — disse certa vez Adam, sentado numa cerca de madeira ao lado de Ryan, um dos irmãos mais velhos de Joseph. Eles e mais cinco amigos saíram à tarde para caçar e àquele início de noite reuniram-se nos arredores da Floresta Negra, um castor e duas lebres crepitando espetados na fogueira ao meio do grupo, cigarros de palha e cachaça caseira passando de mão em mão. — Dizem que ele é doente, que é bicha.
Um clarão explodiu diante dos olhos de Adam, seguido por uma dor desnorteante e uma profusão de sangue, que empapou-lhe o rosto.
— É o que estão dizendo — retrucou fanho, se erguendo após cair da cerca, a mão púrpura segurando o nariz quebrado.
— Pode dizer isto como resposta! — falou Ryan enfurecido, aplicando-lhe um novo soco.
Aquele tipo de comentário não era bem vindo em famílias tradicionais, muito menos numa época em que tais pessoas perdiam a vida em condições subumanas nos campos de concentração espalhados por toda Alemanha: homossexuais, assim como judeus e comunistas, eram os principais alvos do nazismo, sendo indiscriminadamente perseguidos e mortos aos milhões em áreas de trabalhado forçado ou câmaras de extermínio.
Mas Joseph não se encaixava em nenhuma dessas terminações. Joseph era apenas diferente, no sentido mais amplo e abrangente da palavra; as pessoas não compreendiam que seu único defeito era que não conseguia ver algo quebrado e não arrumar, encontrar uma porta rangendo e não lubrificar. Aos sete anos já havia reconstruído e repintados todos os seus brinquedos; aos nove andava pela fazenda reparando janelas, realinhando e envernizando assoalhos, consertando gavetas e portinhas dos armários, refazendo o acabamento e a calafetação, substituindo telhas quebradas…
— Josh, você dará um ótimo marido quando crescer — diziam as tias Magda e Bela, entusiasmadas.
— Você é extraordinário — arrematava a mãe. — Duvido que haja mulher que não queira homem assim.
Autodidata, com onze anos suas habilidades manuais na área de carpintaria, alvenaria, elétrica e marcenaria já eram notáveis, assim como seu desenvolvimento corporal, pois pesava quase noventa quilos e media quase um metro e oitenta.
E foi nesta idade que ele passou a se esgueirar até o abatedouro aos fundos da fazenda, ficando escondido a observar a perícia com que o pai cortava e desossava porcos do mato, cervos, carneiros e às vezes vacas inteiras — sempre ouvindo Wilhelm Richard Wagner tocado num gramofone ao longe, no campanário da igreja da cidade.
Com o tempo aquilo se tornou uma espécie de estranho refúgio, arrebatando-lhe os pensamentos ao assistir o senhor Heinz Hoff penetrar a lâmina no couro, realizando cortes simétricos na pele, o som macio da carne rompendo-se ao avançar pela rigidez dos músculos, atingindo as juntas dos ossos e desprendendo os membros com perfeição.
Era puro deslumbramento.
O animal suspenso num gancho preso à viga do teto, Heinz o contornando, segurando aqui e ali, a faca grande e pontuda entrando e saindo, subindo e descendo, cortando e subdividindo com a precisão de um regente… ou a maestria de Richard Wagner orquestrando Tristão e Isolda.
Tal lembrança se eternizou, quando…
***
O tribunal encontrava-se lotado, assim como nos demais dias do julgamento.
Após breve recesso, o advogado de defesa Emílio Torquato solicitou que Berenice Bernardini narrasse os últimos momentos em companhia do marido. Sem qualquer qualidade digna de nota, ele encontrava-se em pé ao lado de Joseph Hoff, este sentado no banco dos réus, o rosto repleto de hematomas e os dois braços engessados presos em tipóias.
— Costumávamos acordar cedo — iniciou Berenice em articulada dicção, a face abatida encoberta por óculos escuros e as mãos cruzadas no colo; encontrava-se no banco das testemunhas, frente ao Juiz, o promotor e o escrivão, com telespectadores às suas costas e jurados à esquerda — e Vic estava extremamente animado naquela manhã.
— E essa animação era pertinente apenas àquele dia em especial? — perguntou o advogado, metódico.
— Não, em absoluto. Muitos conheciam o doutor Victorio Bernardini como uma pessoa comunicativa, alegre e que adorava contar anedotas em festas e até mesmo no consultório. — Parou um instante, como que se preparando para o que ia dizer. — Mas no seio familiar… digo, dentro de casa, comigo e nossos dois filhos adolescentes… Vic era bem diferente. Vic era calado, quase sempre com uma expressão preocupada, e a maior parte do tempo preferia ficar metido no escritório, na biblioteca, no quintal ou qualquer outro lugar que pudesse ficar quieto…
Nos quinze minutos subsequentes, Berenice explicou que o casal completaria duas décadas de matrimônio no próximo ano e que desde o início notara o “distanciamento” de Victorio. Entretanto, tal comportamento se acentuou nove ou dez anos mais tarde, quando ele abriu sua própria clínica geriátrica na região dos Jardins, contudo enfatizando pacientes amputados de todas as idades.
À beira das lágrimas, Berenice Bernardini explicou o quão difícil fora este período de suas vidas, afinal o marido permanecia grande parte do tempo atrelado à clinica, seja física ou mentalmente, ocasionando infindáveis discussões e turbulentas crises familiares, quase sempre arrematadas com pedidos de desculpas e vazias alegações de mudança.
— …As promessas eram tão certeiras quanto sua ausência à hora do jantar. Vic devotava-se aos problemas de seus pacientes com tamanho fervor que se esquecia de todo o resto. Como uma degeneração implacável, ele parecia obcecado pelo bem-estar daquelas pessoas.
Os presentes se remexeram num burburinho, visivelmente confusos, e até mesmo o promotor, o Juiz e serventuários pareciam intrigados, mantendo-se atentos às declarações. Aproveitando a expectativa do público, Emílio andou de uma ponta à outra, indagando:
— Está nos dizendo que a vítima, seu falecido marido Victorio Bernardini, dava mais atenção aos pacientes da clínica de que à esposa e aos filhos?
— Sim… e isso ocorreu até um ano atrás, mais menos.
— Um ano — repetiu de modo teatral — e então houve alterações em seu comportamento, não foi? Alterações que melhoraram o convívio entre vocês, correto?
— Sim.
— E com toda franqueza que lhe é pertinente, saberia nos dizer o que de fato ocasionou esta mudança?
A mulher demorou algum tempo, elevando a apreensão dos espectadores e jurados.
— Não há por que mentir: aconteceu depois que meu marido conheceu Joseph Hoff — respondeu por fim e o tribunal praticamente em uníssono se inquietou num estupefato “Oh!”.
***
— Se aproxime, sei que está ai, sempre soube — chamou o senhor Heinz, cravando a faca no cepo de madeira, o carneiro que acabara de despelar girando no gancho.
Joseph saiu de trás de uma parede de tábuas, que em sua ingenuidade lhe parecia o melhor esconderijo, aprumando-se ao lado do pai. Emparelhados, de longe parecia ter apenas doze anos.
— Você se tornou um garoto incrível — falou Heinz, a face magra vincada além da idade. — Sua mãe e tias o idolatram.
— Faço tudo para agradá-las, mas parece que não tenho feito o suficiente — resignou-se, o rosto introspectivo. — Estão cada vez mais preocupadas com encomendas de pães e bolos, que só diminuem.
O vento soou lá fora, fazendo a precariedade do abatedouro gemer sob o peso de sua decadência. Apertando os dentes, Heinz lançou um olhar alquebrado para o enxame de moscas que rondavam o carneiro despelado, forçando-se ao máximo para manter trancafiado o desespero que lhe pulsava no peito. Era simplesmente incapaz de descrever quão terríveis os horrores de uma guerra à beira da derrota poderia ser.
— O Führer suga toda a nossa dignidade — conseguiu dizer. Ninguém quer ser espólio de guerra, pensou. — E muitos estão abandonando suas casas, deixando para trás décadas de luta.
— Peter e Ryan foram para Jagdgeschwader. Partiremos também?
A pergunta pareceu lhe cortar a carne, despedaçando-o, assim como a lâmina fazia com os animais ali abatidos.
— Seus irmãos são dois inconsequentes. Se ao menos se preocupassem com algo, isso não estaria assim — ruminou irritado. Agarrou a faca e se voltou ao carneiro, abrindo-o num único talho. — É melhor você ir.
Entretanto, Joseph não se moveu e, enlevado, ficou a observar os movimentos abruptos do pai. O som. O cheiro da carne sendo cortada. A maestria de Wagner. Então, como que tomado por uma espécie de automatismo, sua mão se ergueu e segurou a do pai, repetindo os gestos precisamente como tantas vezes o vira fazer.
— Resistiremos, se o senhor quiser — disse, abrindo um matreiro sorriso.
***
O encontro fora fortuito.
O Voyage de Victorio Bernardini pifara em plena marginal Pinheiros, o capô cuspindo fumaça como um dragão combalido, e Joseph encostara com a Kombi branca para ajudá-lo. Entendia uma porção de coisas, mas aquele era um tipo de problema que ainda não lhe fora apresentado. Solícito, ofereceu-se para ir adiante e alertar algum mecânico, porém Victorio sugeriu que lhe desse carona até a clínica. Não queria se atrasar e dispunha de boa gorjeta pela gentileza.
Combinado.
Apesar do contratempo, Victorio puxara conversa, simpatizando com os trejeitos e o vocábulo alemão-aportuguesado de Joseph.
— Você tem um açougue? — perguntou sacolejando no banco da frente, notando que todo o compartimento traseiro se via tomado de leitões às metades e quartos bovinos subdivididos, costelas e sangue à mostra. O cheiro era forte e desagradável, mas não o incomodava.
— Joseph chegar na Brasil há muito tempo, mas ainda não conseguir montar sua negócio.Trabalhar de açougueiro, apenas, e buscar carne às vezes. Joseph fugir com família da Alemanha por causa da guerra, Peter e Ryan, irmãos, ficar lá… pai e mãe já morrer de desgosto por perder tudo em Herrenberg. Só ter tias Bella e Magda viva. Velhinhas, Joseph mal ter dinheiro para sustentar elas.
O restante do percurso realizou-se tranquilo. Joseph dirigindo, Victorio imerso em pensamentos.
— Você me faria outro grande favor? — por fim Victorio perguntou.
Isso fora um ano antes.
***
Victorio alugou o minúsculo quarto da pensão cinco meses depois, após descobrir que Joseph não era apenas ótimo açougueiro, mas também exímio faz-tudo: bastava explicar ou deixá-lo assistir um serviço sendo executado, que em pouco tempo já o estaria exercendo com o profissionalismo de anos de prática.
Pagando-lhe um bojudo ordenado, solicitou que toda sua casa fosse reformada, conquistando a confiança de Berenice e de outros familiares através da excelência de seu trabalho — entrementes, isso servia para estudar como Joseph se comportava diante de novas tarefas e com que precisão as executaria.
Em seguida veio o quarto. A confecção do isolante térmico e acústico…
***
— Após conhecer Joseph, — continuou a esposa para o tribunal atônito — Vic de fato voltou a viver. Era como se outra pessoa tivesse saído de dentro dele, abandonando aquele temperamento deprimente como quem abandona uma casca.
“Pode parecer estranho, mas Vic voltou a representar algo para nós; não era mais aquele que provia, mas que nunca víamos. Uma sombra de pai e marido. Se ele estivesse em casa, sentíamos e éramos acolhidos por sua presença; quando não estava, ansiávamos para que acabasse logo sua ausência. Vic continuava comprometido com a clínica, mas também mantinha o compromisso de sentar-se conosco à mesa, marcar passeios em fins de semana, viagens de férias, idas ao cinema… coisas simples, porém que nunca tínhamos feito. Havia sorriso e satisfação em tudo o que ele fazia”
A incredulidade se estampava nos rostos do tribunal.
— Era como se Vic tivesse ganhado na loteria e Joseph fosse seu bilhete premiado. Percebíamos isso, percebíamos sua devoção àquela amizade. Meu Vic estava deslumbrado por Joseph… e admito que também estávamos…
— Berenice Bernardini, com todo respeito, Victorio e Joseph tinham “afetividades” e vocês consentiam com isso? — entrecortou o promotor como se a pergunta não lhe pudesse ser contida.
Não houve objeção por parte de Emílio ou do Juiz que presidia a sessão; cabisbaixo, Joseph somente ouvia.
— Li uma notícia bem desagradável sobre o que as pessoas supunham que Vic e Joseph faziam naquele quarto — principiou a mulher, calma —, mas hoje sei que estão todos enganados e sequer sonham com a verdade.
***
O grito mudo de Victorio fez Joseph gemer, mesmo assim ele não parou e a serra continuou o vaivém, destrinchando a carne superficial da canela e investindo contra o osso.
Victorio berrava, amordaçado em silente agonia, os dentes aferrados ao pano, todo o corpo tremendo e convulsionando atado às amarras de couro. Seus dedos crispados seguravam a borda da bancada, enquanto o profuso suor banhava-o de alto a baixo, o rosto distorcido numa carranca chorosa e os olhos tão abertos que pareciam a ponto de suicidar-se das órbitas.
E Joseph cantarolava, alheio ao sofrimento do amigo, sua memória muscular executando um corte firme e preciso, a mente divagando àqueles felizes dias em Herrenberg. A frialdade de suas ruas de pedraeconstruções de teto inclinado pintados em cores vibrantes. A bucólica casa de tirantes à mostra cravada ao centro da fazenda e, aos fundos, o abatedouro — a fábrica da morte. A saborosa lembrança: a vida se esvaindo, a carne cedendo ante à imparcialidade da lâmina, o sangue vertendo, pulsante… comedido. Era como embrenhar-se num passado distante, que ia voltando aos poucos, ganhando formas e um novo sentido. Sempre lidou com corpos inanimados, mas este…
Prosseguiu com o corte até dividir o osso, deixando o pé e metade da tíbia dependurados. Então foi à bancada de ferramentas e voltou trazendo um dos cutelos incandescentes e o balde de inox. Victorio tremia, babando e gemendo, contrações se avolumando aqui e ali como se houvessem vermes furiosos sob sua pele querendo irromper. A dor era excruciante — e libertadora.
O chiado da carne sendo cortada e cauterizada foi horrendo, seguido-se de um odor asséptico e pungente, porém o sangue foi mínimo — no entanto, agredido por espasmos, o pano que amordaçava Victorio caiu, libertando de sua garganta um urro tão longo e grotesco que Joseph ergueu os olhos para o teto, sob a impressão de que as lâmpadas tremiam e que o isolamento térmico-acústico do cômodo não seria suficiente para contê-lo. Aquilo era o limite da insanidade.
Talvez ele não suporte até o final, Joseph pensou, hesitante.
— Não! Não! Não! — grunhiu Victorio, sacolejando a cabeça, nesgas de saliva ensanguentada esvoaçando para todos os lados.
Mas Joseph não iria parar, não agora, e retornou à atividade, investindo contra a panturrilha, partes da derme evaporando em torvelinhos de fumaça ante à voracidade do cutelo em brasa, até enfim desprender todo o membro.
— Vê? — perguntou, levando a parte amputada à altura dos olhos de Victorio, antes de depositá-la no balde; e Victorio chorava de dentes trincados, porém, no choque da dor, parecia que um riso se retesava em seu rosto. — Falta pouco agora.
Nas horas seguintes Joseph empenhou-se para colocar em prática tudo o que aprendera nas fitas VHS que o amigo lhe trouxera nas ocasionais visitas àquele quarto de pensão — procedimentos cirúrgicos, uma infinidade deles e que ambos assistiam tomando cervejas e discutindo animosidades. Os assistira por meses e tudo o que fazia ali não possuía qualquer embasamento técnico.
Limpando e reaquecendo facas e cutelos, removeu a parte de cima sob o joelho e livrou o coto do restante da carne e terminações nervosas que o envolvia. Liberto, introduziu a faca entre a tíbia e o osso do fêmur, cortando os ligamentos cruzados e as bursas, desprendendo o osso tibial. Finalizou lavando tudo com soro fisiológico, costurando de modo que a parte de baixo encobrisse a superior completamente.
Ao término, Joseph se aproximou de Victorio. Ele próprio suava devido ao esforço, mas o amigo talvez não tivesse resistido à violência das dores, pois veios de sangue resvalam de sua boca e os lábios estavam estropiados pela ação involuntária dos dentes. Um cheiro nauseante de fezes e urina começava a ganhar o cômodo.
— Obrigado, Josh — agradeceu entreabrindo os olhos, após certo tempo. — Você me livrou de um fardo.
***
Horas mais tarde, Joseph trancara o quarto e fora à farmácia comprar gases e analgésicos. A ausência seria breve.
Contudo.
Era madrugada e havia parado numa esquina para atravessar. Ao longe, duas viaturas corriam emparelhadas pela pista vazia. A primeira fez a curva rápido demais, mas a segunda não conseguiu, guinchando sob suas rodas e perdendo o controle. O impacto foi brutal, apenas amenizado pela banca de jornal que estava à frente de Joseph, seus escombros arremessando-o contra o asfalto numa fatídica letargia.
***
— …Talvez soe absurdo à primeira vista — observou Berenice —, mas Vic sofria de transtorno de identidade da integridade corporal ou TIIC, um transtorno que, grosso modo, faz com que indivíduos desenvolvam rejeição a certas partes do corpo e, em episódios mais extremos, sinta até mesmo desejo em ter tal membro amputado.
O tribunal em peso se fez ouvir numa cacofonia de indignação e descrença, mas foi o promotor que se pronunciou:
— Muito me admira vê-la deste lado do banco e mais ainda por ouvir tal afirmação.
Berenice retirou os óculos escuros e os pousou no colo, deixando à mostra olhos fundos e sofridos. Então, munida de profissionalismo e segurança, narrou o caso de Robert Vickers, um australiano que decidira se isolar numa fábrica abandonada e imergir a perna num recipiente cheio de gelo seco. Permaneceu ali por horas, somente ligando para o serviço de emergência após se certificar que o membro não mais poderia ser recuperado. Ao acordar no hospital, não me preocupava com a perna, pois tinha meu cotoco pelo resto dos dias, ele escrevera em suas memórias. Foi o dia em que renasci em um novo corpo – um corpo com uma só perna.
Em seguida, narrou o caso de um paciente de codinome “Lester”, mencionando a edição em que este fora publicado na respeitável revista Newsweek.
— Neste artigo, “Lester” explica suas desesperadas tentavas de amputar a mão esquerda. Já havia tentado colocá-la sob uma roda de caminhão, cortá-la com uma faca dentada e, por fim, teve êxito se utilizando de uma serra elétrica. Eu odiava minha mão desde o colegial, ele alegou em entrevista à referida revista.
Berenice abriu uma pausa, impossibilitada de continuar ante o alvoroço que se alastrara pelo tribunal. Um pandemônio, com espectadores discutindo entre si e jurados embasbacados.
— Silêncio! Silêncio! — pediu o Juiz repicando a sineta. — Ordem ou retiro a todos! — ameaçou num gesto aborrecido. Aos poucos a calmaria voltou a reinar. — Prossiga.
— A perda por vezes nos lega a compreensão — sentenciou Berenice, resignada. — Como psicóloga, sempre suspeitei haver algo errado, porém as peças deste quebra-cabeça eram deveras intrincadas para que eu vislumbrasse o quadro geral da situação; e somente quando a peça-mor foi suprimida da cena que compreendi como a imagem deveria ser montada.
“No decorrer das investigações, além de ter que lidar com as facetas da tragédia, me senti obrigada a buscar respostas e acabei por esmiuçar a vida pessoal e profissional de Vic como jamais havia feito.
“Em casa pouco tive êxito, mas na clínica encontrei uma saleta particular contendo centenas de fotografias e muitas horas de filmagem acondicionadas em caixas e armazenadas em prateleiras de arquivo…”
O promotor se levantou de súbito, num reflexo habitual à profissão, pronto para protestar que tais informações não constavam dos autos, porém volt0u a sentar como que arrependido — ou ansioso por saber que desfecho aquilo teria.
— Todo o material estava etiquetado com data, hora e nomes dos pacientes numa organização digna de TOC — Berenice prosseguiu. — E em todas as cenas Vic fazia questão de aparecer, interagindo, brincando e estimulando seus pacientes… E não apenas isso; ele adorava aquilo, ao ponto de pedir que lhe tirassem fotos com a perna esquerda dobrada para trás, simulando uma amputação.
“Aquilo era bizarro, tenho que admitir, mas o que mais me intrigou foi o sorriso em seu rosto: era algo verdadeiro… autêntico… o sorriso de uma pessoa realizada, física e psicologicamente. Sem a menor dúvida, Vic queria ser aquela pessoa da foto.”
Berenice fungou alto, repleta de uma sofrida comiseração, e então se virou para os espectadores e jurados, finalizando:
— Hoje é como imaginar um sórdido quebra-cabeça, onde desajustadas peças foram se encaixando para formar um trágico cenário. Vic há muito sofria com tal distúrbio e tentava se consolar na convivência com seus pacientes, enfim encontrando no réu os meios para se realizar. Sou incapaz de dizer o que levou Joseph a concordar com o que fez, mas reconheço que Vic era muito persuasivo.
“Não tenho ideia do que lhe passava pela cabeça, porém, analisando os fatos de modo frio, percebo hoje que ele não pensava em nada mais além de amputar a perna. Estava obcecado, não há outra explicação.”
Berenice se levantou, passando os olhos em revista pelo atônito tribunal.
— O último ano de vida de Vic foi o melhor de nossas vidas, de toda a nossa família, e lamento profundamente o que aconteceu, porém, se aos olhos da lei devemos apontar um culpado, Joseph deve ser poupado deste fardo. Na “irracionalidade” de seu distúrbio, meu marido… Victorio Bernardini… não previu, aliás, ninguém jamais poderia prever, o que aconteceu…
— Em posse dessas afirmações e algumas outras provas, — tomou à frente o advogado Torquato — registramos nosso interesse na melhor apuração do incidente que resultou na prisão de Joseph Hoff, que, vitimado num possível racha entre policiais e incapacitado de retornar ao quarto ou sequer falar devido aos seus ferimentos… conseguintemente levou a óbito Victorio Bernardini…
Um alarido ribombou no Tribunal, dando-se início a um novo capítulo daquele julgamento.
Olá, Brenno. A citação de Chesterton, autor que gosto muito, atraiu a minha atenção ao texto. E que experiência única de leitura eu tive! Um texto, sem dúvida, com imensa qualidade, escrito por alguém com muita intimidade com as palavras. Intrigante, assustador e que nos agracia com o elemento imponderável das grandes narrativas. Estou fascinada por essa inversão no enredo e esse trato com as palavras. Parabéns.