EntreContos

Detox Literário.

A Arena Cobra – Conto (Angelo Rodrigues)

Conheci Vladimir Carp quando trabalhava no estaleiro Sfantu Gheorghe, ao final do braço sul do Danúbio, próximo ao Mar Negro. Vladimir era um sujeito grande e forte. Tinha o nariz achatado e torto, virado à direita, um típico peso-pesado das lutas de boxe. Disse-me que estava ali por haver cometido um crime do qual não se orgulhava. De aparência cismada e quieta, vivia sob desconfianças, controlando algum ódio insubmisso que trazia sob a pele. 

Trabalhávamos pintando barcos que eram construídos naquele lugar. Tinha por ele uma paciência excepcional e muito tato quando achava que Vladimir poderia explodir como uma bomba se lhe falassem ou fizessem algo que o contrariasse.

Pela manhã pegávamos na mesma estação um trem que nos deixava próximos a uma vila de casas nas cercanias do estaleiro; de lá seguíamos a pé, conversando sobre coisas sem importância, falando de barcos ou sobre desejos incertos de viver em outro lugar, ter uma outra vida que não fosse tão estúpida quanto a que levávamos naquele lugar do qual pouco gostávamos. Vladimir, ao contrário de mim, tinha preferência pelos longos silêncios, e parecia não gostar da própria voz. Levamos nisso alguns meses. 

 

Sempre às quintas-feiras, ainda antes de o sol nascer, um garoto sonolento percorria a estação entregando um jornal de bairro de poucas páginas. Eu o folheava, displicente, e Vladimir sempre o rejeitava, preferindo observar as distâncias que via nas brumas da manhã, pensando em não sei o quê, ou mesmo se pensava em algo, ou simplesmente apagava durante aqueles momentos.

O jornal, de modo geral, trazia manchetes banais, costumeiras tramas da política local, quermesses em festas caipiras, aluguéis de imóveis, leilões de terras e vendas de barcos, e às vezes um crime sem importância. Num daqueles dias me fixei num anúncio que falava de lutas de boxe num clube local. Mostrei-o a Vladimir e aquilo pareceu deixá-lo animado. Disse que gostaria de ir até lá conhecer o lugar e olhar algumas lutas. Aquele era o seu mundo, que o movia e cismava sua alma. 

A chamada para o próximo sábado trazia seis lutas, e o combate principal seria entre Cosmin ‘Mão Negra’ Pavel e um tal Pugilista Cobra. O anúncio era ilustrado por um clichê fotográfico bastante ruim, com letras grandes como costumam fazer nos cartazes dos procurados pela justiça, e, bem no centro dele, uma fotografia com dois lutadores na clássica posição de combate — tal como costumam fazer os grandes profissionais do boxe —, um diante do outro trocando olhares ameaçadores, ensaiando suas valentias temerosas e falsos desprezos pelo oponente. Bem, um dos lutadores era uma cobra gigantesca. 

Ainda que sem entusiasmo, aceitei acompanhá-lo. Vladimir se transformou a partir daquele dia, tornando-se um cara falante e animado. Aquele anúncio funcionou como a pólvora que fez disparar a sua alma de lutador. 

Naquele mesmo dia Vladimir me revelou que fora banido dos ringues por haver matado o seu oponente no decorrer de uma luta limpa. Imediatamente comecei a tentar dissuadi-lo de qualquer pesar sobre o fato, dizendo que a morte sobre um ringue se encaixava perfeitamente na profissão que escolhera. Uma fatalidade, disse a ele, algo ruim que pode acontecer com aqueles que optam pelo mundo em que as conquistas se fazem pela força dos punhos. Com a franqueza ingênua de um homem simples que era, Vladimir me confessou que seu crime viera da vontade que tinha de matar, e não da tênue e singular força do acaso, da fatalidade. Sentia-se, de fato, um criminoso.

Sua fúria se deveu a um desatino que o atormentava naqueles dias, e tinha como origem o amor por uma mulher que dizia amar dois homens, embora, em seu diminuto coração, só coubesse apenas um homem. Disse-me que matou seu oponente por saber que ele havia ousado ser amado pela mulher que queria apenas sua. O nome dessa mulher que tanto amara era Gabriela Nicolae.

Após aquela morte absurda que provocou, Vladimir deixou a cidade e nunca mais voltou a ver a sua amada. Um homem havia morrido pela força de suas mãos, e ele havia perdido para sempre a sua alma, foi o que me disse.

 

O clube era uma espelunca que não merecia tal nome, uma instalações de última classe formada por um prédio ficava às margens de um rio imundo tomado de lixo e palafitas, uma grande construção de madeira coberta por folhas de zinco escurecido pela extrema ferrugem. No centro, um ringue de bom tamanho, circundado por um grande número de cadeiras mambembes, dispostas sobre elevados de madeira. Vigorosas cordas rústicas, feitas de sisal cru, formavam uma curva em direção ao solo pela imposição do peso absurdo que tinham, seguras nos quatro cantos por toras de madeira enegrecida — eram dormentes tirados de estradas de ferro. O piso do ringue era feito de placas de compensado cobertas por uma lona verde maltratada, que tinha no centro o título ‘Arena Cobra’. Tudo naquele lugar tinha uma aparência decadente e brutal.

Antes de começar a luta entre Cosmin ‘Mão Negra’ Pavel e o Pugilista Cobra, assistimos a cinco espetáculos desumanos, com homens que não conheciam as técnicas do bom combate, que do esporte só sabiam dar e receber golpes brutais, sem arte ou conhecimento do ofício que exerciam. Tudo neles se resumia à insana vontade de continuar de pé e lutar, não obstante o dano causado ou o sofrimento recebido no próprio corpo. Haviam reduzido o boxe à capacidade de espancar o oponente e suportar os danos que recebiam, num turbilhão animalesco de violência sem qualquer regra de humanidade ou ínima compaixão.

Aquelas lutas existiam para expelir daqueles homens a capacidade de resistir, mais que apreciar as perícias das lutas. Ao final do combate, exaustos, um deles, em geral o mais resistente aos golpes dados e recebidos, aclamava-se vencedor — não havia árbitro que os mediasse nem juízes que os elevasse à condição de campeção — pela evidente incapacidade de reação do oponente que precisava jazer arruinado sobre o piso verde. Os rounds, que eram quinze de três minutos de luta por um de descanso, não chegavam a cinco, tamanha a brutalidade com que as lutas se desenrolavam.

 

O sexto combate estava para se iniciar, e plateia, entre assobios e a mais pura loucura de vozes perdidas na escuridão, mostrava o limite da tensão que se antecipava. Havia brigas que começavam e terminavam em instantes, gritos de vozes irreconhecíveis e aclamações com o nome dos contendores que estavam por chegar. 

Por um dos cantos do ringue entrou um homem grande de aparência feroz e jeito de poucos amigos, tinha uma cabeça pequena na qual se fixara um enorme maxilar quadrado com mandíbulas poderosas, e seu corpo, totalmente coberto por tatuagens difusas, tinha um tom azulado, deixando ver que a tinta dos desenhos se havia espalhado por sob a sua pele, migrando para longe  daquelas formas horrendas, como se em fuga delas por temer aqueles monstros gravados na superfície de sua pele. A mão direita daquele homem era enorme e negra, opaca, justificando o nome que tinha: era Cosmin ‘Mão Negra’ Pavel.

Com pequenos saltos de aquecimento, Cosmin subiu ao ringue e levantou os braços em cumprimento à plateia que gritava seu nome. Sentou-se a um canto e seus auxiliares começaram a prepará-lo para o combate que logo se iniciaria.

No lado oposto por onde havia entrado ‘Mão Negra’, chegou o Pugilista Cobra. Trazia um capuz sobre a cabeça que o fazia parecer uma imponente naja real. Veio serpenteando lentamente pelo caminho entre aqueles que gritavam seu nome até atingir o ringue, onde entrou arrastando seu corpo roliço por entre as cordas. Era um animal colossal, e talvez medisse cinco metros de comprimento, com uma cabeça grande como a de um touro e o corpo cilíndrico se assemelhando ao tórax de um homem grande e forte. Circulou ereto pelo tablado por três vezes e foi ovacionado de forma intensa pelos espectadores, que gritavam ainda mais alto o seu nome: Pugilista Cobra! Dirigiu-se ao seu canto e aguardou o início do combate; ninguém o assistia.

O gongo soou e ambos caminharam em direção ao centro do ringue, quando a luta começou a se desenvolver. Durante o combate o Pugilista Cobra se mantinha enrodilhado sobre a cauda de modo a ficar com a mesma altura do seu oponente, e tinha como principal recurso a agilidade de esquiva, permitindo a ele incríveis manobras para escapar dos golpes impiedosos que ‘Mão Negra’ Pavel desferia em sua direção. Isso não o livrava de levar alguns murros enormes na cabeça, pois a mão negra de Cosmin era titânica e não parecia ter limites para produzir danos àquele animal espantoso. 

Ficava cada vez mais claro que os golpes do Pugilista Cobra estavam limitados às rasteiras que dava com a cauda e à constrição, que a todo momento objetivava lograr algum êxito, embora sem grande sucesso. ‘Mão Negra’ Pavel conhecia a sua técnica, e com alguma competência inviabilizava o seu oponente usando rotas de escape, livrando-se das tentativas de constrição do Grande Cobra. 

A luta avançou por dez rounds até que o Pugilista Cobra, num momento de extrema ousadia, se deixou socar algumas vezes pela mão pesada de Cosmin Pavel, ao que se arremeteu por sobre o seu ombro, fazendo com que sua cauda, numa rasteira colossal, o levasse ao chão, quando pôde iniciar a lenta e insuportável constrição do seu tórax. 

Mesmo abalado pela situação em que se encontrava, ‘Mão Negra’ Pavel ainda impôs ao Pugilista Cobra uma série de golpes ferozes que a um homem comum provocaria as dores mais excruciantes, mas, por fim, completamente sem ar e sob dores lancinantes, ‘Mão Negra’ Pavel desistiu da contenda e se aceitou vencido, batendo por três vezes a mão no piso verde do ringue. O Pugilista Cobra afrouxou o corpo de Cosmin e o libertou da constrição. Foi quando ele próprio se proclamou vencedor naquele combate, e circulou sibilante por diversas vezes em torno da arena. 

Cosmin ‘Mão Negra’ Pavel ficou arruinado ao chão e foi arrastado para fora do ringue. Logo em seguida o Pugilista Cobra deixou o local rastejando na mesma direção de onde havia chegado, agora brutalmente ferido pelos golpes que recebera.

 

Meu amigo Vladimir estava maravilhado com tudo o que via, sua voz, que normalmente pouco se deixava conhecer, era agora compulsiva e soberba ao descrever a beleza do que acabáramos de assistir, e por muitos sábados seguidos voltamos àquele lugar para ver os combates insanos onde homens eram tratados como animais ferozes por seus oponentes em lutas de quase morte, nada muito diferente das lutas que víramos naquela primeira vez em que lá estivemos.

Havia um ritmo, uma regra, onde a sexta luta sempre caberia ao Pugilista Cobra, que enfrentaria o lutador que acumulasse vitórias ao longo de uma série de combates sequenciados; um ranking. Já na segunda vez em que voltamos àquele lugar, Vladimir reduziu seu deslumbramento. Olhava as lutas como se tudo naquele lugar estivesse sob suas lentes de estudo. Ele as observava como se procurasse alguma brecha na lógica dos lutadores, dos mais fracos aos mais fortes e violentos. Deixou de ser um espectador, um cliente daquele lugar para retornar ao antigo Vladimir Carp, um lutador peso-pesado. Buscava no meio daquele show de horrores e violências, um jeito de retomar o controle da sua vida.

Foi após três meses de idas àquele lugar que Vladimir, no trem de volta para casa, me confidenciou: “Sei como vencer o Pugilista Cobra”. Explicou-me com minuciosos detalhes — que pouco compreendi —, que o Cobra tinha um ponto fraco logo abaixo da sua mandíbula, mais exatamente sob o lado direito da cabeça. Disse-me que se naquele lugar fosse aplicada uma pressão específica, seria capaz de neutralizar a constrição criada pelo seu corpo, que para ele, era o único recurso realmente valoroso do Cobra.

A um homem que pouco fala, sempre cabe algum crédito quando ele resolve tomar o rumo das palavras: ou Vladimir Carp havia achado uma boa razão para falar ou simplesmente havia enlouquecido. Eu não sabia se meu amigo encontrara um meio de retomar sua antiga carreira profissional ou simplesmente delirava se imaginando novamente um lutador, pois imaginei-o em lutas com aqueles monstros e nada alentador me veio à cabeça, embora desse a ele o crédito de, talvez, haver alguma lógica no que dizia.

 

Vladimir retomava suas atividades de boxeador. Após deixar o expediente no estaleiro, empreendia uma rotina de exercícios que logo o transformaram num homem ainda mais forte e preparado para os combates. Passado algum tempo apresentou-se ao clube e pediu que o incluíssem na rotina das lutas. Não foi difícil que o fizessem. Vladimir era por natureza um homem grande e forte, e após tantos exercícios, estava vigoroso e impunha terror a quem o confrontasse. No rosto onde havia a placidez que observava distâncias vazias nas brumas, agora morava um olhar decidido e brutal.

Duas semanas depois meu amigo estava no rol daquelas lutas. Vladimir subiu ao ringue em seu primeiro combate, que foi tranquilo. Sua força e ferocidade, conjugadas à técnica que adquirira como profissional, o fez lograr o êxito que desejava. Esmurrou seu oponente até evidenciar sua vitória diante da ruína de carnes e ossos em que transformou seu oponente.

Nas semanas que se seguiram voltamos àquele lugar e Vladimir continuava galgando um lugar privilegiado em direção ao Pugilista Cobra. Lutou ainda, oito vezes e saiu vencedor em todas. Estava transformado, outro homem, mais forte, mais ousado, e sua brutalidade se evidenciava em tudo o que fazia, um lutador extremado no plantel dos insanos da Arena Cobra. 

Faltava apenas vencer a Cosmin ‘Mão Negra’ Pavel para chegar ao Pugilista Cobra. Foi quando deixou definitivamente o estaleiro Sfantu Gheorghe e passou a se dedicar exclusivamente aos treinamentos físicos. Mesmo que não fosse lutar, íamos ao clube assistir os combates. Era uma rotina que cumpríamos juntos, todos os sábados. 

Disse-me que estava feliz, que havia reatado com a mulher cujo amor o fez matar um homem. Confidenciou-me que Gabriela Nicolae voltara a aparecer em sua vida, como por mágica, e agora estava com ele em sua casa. Gabriela era o estímulo que precisava diante das lutas que ainda estavam por acontecer. Creio que seu estado de animação extrema se devia exatamente à presença de Gabriela. Vladimir não queria perdê-la uma outra vez.

Algumas semanas depois foi marcada a luta contra Cosmin ‘Mão Negra’ Pavel, que estava vigoroso e completamente recuperado da derrota que sofrera para o Pugilista Cobra. Vladimir intensificou os treinamentos. Conhecia seu oponente e dizia saber como neutralizar sua mão negra que, embora titânica em força, era lenta e previsível quando queria causar algum dano mais violento.

Vladimir fora definitivamente acolhido pela plateia. Chamavam-no agora de Vlad ‘Tronco’ Carp, onde seu tórax descomunal se impunha como um nome exigindo temor e pânico. Logo, eu também passei a tratá-lo por Vlad. 

Foi nesse dia de luta contra ‘Mão Negra’ que conheci Gabriela Nicolae. Uma mulher bonita e madura, superior, acima de qualquer homem que a desejasse. Compreendi, no momento em que a vi, as razões que tivera Vlad para matar aquele homem, e não pude tirar a sua razão. Não aumentei nem diminuí sua dor quando provavelmente pensou nas chances de perdê-la para um outro homem. Creio que também eu o mataria se me fosse de natureza matar um homem.

 

A luta foi dramática. A mão negra e opaca de Cosmin Pavel cumpriu seu destino de esmurrar sem piedade o corpo de Vlad. Cheguei a duvidar que meu amigo conhecesse algum ponto fraco em seu oponente. O rosto de Vlad estava sendo estraçalhado pelas pancadas desferidas por aquela mão de pedra, como um bloco de ônix, implacável. 

Vlad tinha certeza na vitória, e não se intimidava com os horrores insensíveis de Cosmin. Meu amigo sabia da enorme fragilidade do queixo do seu oponente, um quadrado saliente que se projetava de uma cabeça pequena e desproporcional ao corpo. Em Cosmin Pavel não havia um pescoço capaz de suportar uma pancada poderosa desferida em seu queixo. Vlad sabia que Cosmin seria incapaz de suportar o impacto brutal que lhe poderia desferir. 

Não demorou muito: num momento infeliz de Cosmin, Vlad lhe aplicou um golpe descomunal que fez partir em pedaços aquela mandíbula colossal. Cosmin foi ao solo. Apenas um golpe rápido e fatal. O punho de Vlad descreveu no ar uma curva perfeita que se deslocou da direita para a esquerda e encontrou no caminho um imenso sólido formado por dentes, carne e ossos que não suportaram o impacto e se partiram em pedaços. Quando chegou ao solo, Cosmin ‘Mão Negra’ Pavel já estava morto. 

“Falta pouco”, foi o que disse Vlad ‘Tronco’ Carp enquanto observava o fim da agonia de ‘Mão Negra’.

Vladimir Carp tornou-se ainda mais focado em seus treinamentos. Subjugar o Pugilista Cobra havia se tornado uma obsessão. Tínhamos, ainda um mês para que o confronto entre os dois titãs da Arena Cobra viesse a acontecer. Visitei-o em sua casa e pude aceitar, sem sombra de erro, as razões de Vlad para matar aquele primeiro homem em um ringue: Gabriela tinha algo de magia e tragédia. Sua presença era tão brutal ao homem que a desejasse quanto seria necessariamente brutal o amante que a quisesse para si. Matar aquele que se interpôs entre ambos foi uma consequência inevitável e banal. Apenas alguém como Vladimir Carp, com sua alma guerreira, poderia ser dono do amor de Gabriela. Aquela mulher nascera para inspirar um inominável desejo de violência e morte a quem a amasse. 

 

Eu era agora parte de tudo aquilo, seu aliado. Queria ser também um vencedor como ele. Então deixei de trabalhar no estaleiro naquele mesmo dia e tornei-me seu auxiliar nos treinamentos. Minha pouca experiência com o mundo das lutas era compensada com o entusiasmo que tinha ao lado de ambos. Sentia que Gabriela também me inspirava com a violência que tinha na alma, como Vlad também a tinha. Eu começava a gostar imensamente daquilo.

Durante os treinamentos voltamos os três algumas vezes ao clube. Ao lado de Vladimir e Gabriela eu via crescer meu gosto por estar ali, por tudo aquilo. Minha repugnância por aquele lugar havia desaparecido, não tinha mais aversão por estar ali, sentia prazer. O cheiro insuportável que o lugar exalava e a podridão oriunda das palafitas que nos cercavam tornaram-se diáfanas, perfumosas, e os crimes que nos cercavam não me causavam desgosto ou medo. Percebia que o mundo de Vlad e de Gabriela me transformava num homem também afeiçoado à violência.

No dia em que Vlad foi lutar com o Pugilista Cobra fomos os três ao clube. Eu podia ver em Vlad a determinação e a ferocidade se impondo. Gabriela, ao seu lado, era o aço que dava à alma do meu amigo um pouco mais de dureza e brutalidade. Na plateia, sentei-me ao seu lado e juntos esperamos que a luta começasse.

Vlad chegou ao ringue e foi ovacionado. Gritavam ‘Tronco’, ‘Tronco’, ‘Tronco’, todos alucinados. Pessoas que um dia me pareceram podres e decadente, naquele momento, me pareciam apenas uma turba soberanamente efusiva: via aquilo tudo com enorme simpatia.

O Pugilista Cobra chegou ao ringue serpenteando, e com um bote surpreendente, saltou por sobre as cordas e se pôs no ringue. Trazia sobre a cabeça um capuz que lhe conferia a aparência de uma naja soberba. Seriam quinze rounds de três minutos de luta por um de descanso, sem mediador e sem regra alguma que devessem seguir. Os dois lutadores estavam apenas submetidos ao tempo de luta e nada mais. Aquele que ficasse de pé ao final do combate poderia se declarar vencedor. 

O primeiro round transcorreu sem novidades, quando os lutadores apenas se estudaram. A exceção ficou por conta do Pugilista Cobra, que passou a ensaiar sobre Vlad alguns golpes com sua enorme cabeça. Não houve danos significativos em meu amigo.

No quinto round ambos os lutadores já mostravam alguma exaustão e ferimentos. O nariz de Vlad havia sido quebrado por um golpe preciso desferido por uma cabeçada que o Cobra lhe deu, estava mole e pendia ainda mais para o lado direito do seu rosto. Por outro lado, um dos olhos do Pugilista Cobra estava arruinado por uma sequência de golpes rápidos e violentos que não pôde evitar com esquivas. Sua capacidade de se movimentar estava comprometida. Talvez por avaliar erroneamente as cabeçadas que eram desferidas pelo Pugilista Cobra, que davam a Vlad uma boa oportunidade de aplicar no Cobra os seus golpes poderosos.

No décimo round ambos estavam terrivelmente feridos. Além do nariz quebrado, Vlad perdera a visão do olho esquerdo por decorrência de uma cabeçada certeira do Cobra que destruiu seu supercílio. O sangue de Vlad jorrava forte.

Para meu desgosto, o Cobra parecia mais inteiro que meu amigo. Gabriela, ao meu lado, embora atenta ao combate, não dividia com Vlad a dor que ele sentia, ao contrário, exalava em sua direção uma torrente de ódio que insuflava nele a necessidade urgente de ter alguma reação imediata e brutal. Era visível que a gana odiosa expelida por Gabriela chegava até Vlad.

No décimo terceiro round o Pugilista Cobra conseguiu se colocar sobre o ombro do meu amigo e deu início ao seu golpe fatal da constrição. Foi quando toda a bestialidade que transmitia Gabriela a Vlad chegou inteira até ele. Com uma das mãos, Vlad se impôs sobre o ponto fraco do Cobra, fazendo com que a constrição que já sofria se afrouxasse. Então o esmurrou com apetite e ímpeto que até a mim espantou. Seguidas e intermináveis vezes Vlad bateu na base da cabeça daquele animal destruindo seus ossos, e esse foi o momento em que o Pugilista Cobra, com a ponta da cauda, bateu seguidas vezes na lona verde admitindo haver perdido a luta. 

Vlad, enfim, havia derrotado o poderoso e invicto Pugilista Cobra. 

Antes de deixar o ringue, aquele animal enorme, com sua boca frouxa e alargada pelos titânicos golpes que recebera, lentamente voltou a envolver meu amigo Vladimir. Enrolou-se em torno de suas pernas, depois seus braços e seu tronco todo, e como se Vlad fosse apenas um rato, o engoliu em poucos minutos. A plateia delirava, pois nunca havia visto o campeão Cobra reivindicar o seu troféu.

Vlad ‘Tronco’ Carp, vitorioso em uma luta de morte, havia se tornado o prêmio concedido ao Pugilista Cobra, que depois de tantas vitórias naquela Arena, se admitiu derrotado em uma luta justa. Seu vencedor era o seu único troféu após tantas vitórias sobre o ringue.

Após repor seu capuz, o Pugilista Cobra deixou o tablado em direção ao canto escuro de onde havia saído para nunca mais voltar. 

Gabriela não falou sobre a luta nem faz caso pela morte de Vlad, e durante toda a viagem de trem que fizemos de volta para a cidade, não deu sinal de se importar com a morte do seu amor.

No sábado seguinte retornei ao clube para acompanhar outras lutas. O lugar estava lotado como sempre. Na sexta e última luta fui surpreendido quando pude ver que haveria um combate entre Serban ‘Pilão’ Negura e o Pugilista Cobra. 

Pilão era um sujeito imenso, parecendo sofrer de alguma forma extrema de paquidermia. Suas pernas, gigantescas em diâmetro como a dos elefantes, eram suas armas, e com elas buscava massacrar seus oponentes: após saltos colossais, seus pés arriavam no solo do ringue fazendo estremecer o lugar. 

O Pugilista Cobra, grande e vigoroso, era outro, de aparência mais jovem, e tinha por característica marcante um imenso tronco, quase humano, que se avolumava logo abaixo de sua cabeça. Aquele Cobra saiu vencedor da contenda, embora seu corpo tenha sido arruinado pelos pés de ‘Pilão’ Negura.

 

Meu nome é Adrian Cuza. Fui por algum tempo amigo de Vlad, que agora está morto. Foi um grande lutador. Já lhe havia dito que morrer em combate era algo para acontecer em um ringue, e minhas palavras, não chegando a uma profecia, realizaram-se com a sua própria morte. Creio que Vlad só tenha compreendido o que lhe disse no momento em que foi engolido por aquela enorme cobra de modo tão surpreendente. 

Tal como um animal em fúria, ele matou dois homens no ringue. Um por amor, outro pelo desejo inútil da vitória. Pela boca de uma cobra colossal ele encontrou a morte em uma luta justa. Lamento apenas que meu amigo só tenha compreendido que a sua vitória o tornava o prêmio concedido a um lutador até então invicto exatamente no momento em que era engolido. Se Vlad obteve a vitória justa que sempre quis, ignorou que o Cobra o engoliria como prêmio pela vergonha da derrota que mais cedo ou mais tarde acabaria acontecendo; e Vlad, enfim, o derrotou.

Percebo que há alguma razão ou justiça nesses fatos, embora não ouse compreendê-la. Não lhe guardo saudades, pois as lembranças que tenho de Vlad nunca chegaram a se transformar em alguma forma de afeto. 

Desde aquela época retorno regularmente ao clube. Vejo que Serban ‘Pilão’ Negura está cada dia mais feroz, seus saltos alcançam alturas descomunais, passando a arruinar seus oponentes sem a mínima piedade. Sua cólera se avolumou, pois Gabriela o acompanha e molda sua alma em fúrias. Sinto que o coração de Gabriela inspira ainda mais violência e vejo que ‘Pilão’ constrói lentamente a sua desgraça ao tê-la como seu amor.

Também a mim Gabriela inspira violência, mas não sou um homem forte nem tenho atributos que me qualifiquem para as lutas. Entrar em um ringue para contendas está fora de minhas possibilidades; mas tomei gosto por tudo aquilo que vi e fiz parte por um longo tempo. Há alguns meses vendi a casa onde morava e algumas coisas de que era dono, e hoje tenho esse clube de lutas chamado Arena Cobra. 

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2 comentários em “A Arena Cobra – Conto (Angelo Rodrigues)

  1. Angelo Rodrigues
    5 de fevereiro de 2020

    Valeu Anorkinda, obrigado pela leitura.
    É verdade, concordo com você que o final do tipo “resumo” da história geralmente não termina bem. E acho que foi o que aconteceu. Vou rever e, provavelmente, vou retirar a parte final.
    Quanto ao retorno do Cobra, sim, nunca será o mesmo. A ideia é que o “Nnovo Cobra” retorne assumindo as características de quem o derrotou. No caso que relatei, foram os ombros largos de Vlad, seu tronco.
    A ideia da metamorfose é verdadeira, como se o Cobra se transformasse, como numa crisálida, mas não dei muita explicação.
    Legal seu comentário, que prova que a Área Off não é um lugar onde os contos descansam sem que sejam incomodados. São, e isso é o que importa.
    Obrigado!!

  2. Anorkinda Neide
    3 de fevereiro de 2020

    Rapaz.. tô sem fôlego aqui…
    Comecei a ler despretensiosamente e avancei, apesar do tema não me ser simpático, devido a ótima narração, em texto que dá gosto de ler devido a sua boa execução.
    Eis que surge o fantástico, reli o parágrafo de apresentação do Cobra, pra ver se eu havia e entendido direito! kkk
    Surreal e ao mesmo tempo tão normal… você está demais de parabéns.
    As descrições de tudo está perfeita, a meus olhos.
    .
    Pra não falar em perfeição, eu preferiria que o texto terminasse na morte de Vlad.
    as explicações finais, ficaram sobrando, quebrou o ritmo intenso da brutalidade q vinha até ali, uma brutalidade rebuscada, que não fere os olhos, como seria assistir a uma luta destas magnitudes aí…
    E ainda ficou uma confusão.. se o Cobra foi embora para sempre, como ele voltou metamorfoseado em Tronco? entendo q ele absorveu o lutador, mas entao ele nao sumiu para sempre ou Vlad voltou noutro corpo de cobra?
    .
    bom, mas nada tira o impacto positivo desta leitura… obrigada por compartilhar de seu talento por aqui.
    Abraço

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Publicado às 9 de janeiro de 2020 por em Contos Off-Desafio e marcado .
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