No ano de 1794 morria em Paris pela lâmina de uma guilhotina, Étienne Froment, que teve por última vontade repousar eternamente no Cemitério de Montparnasse, a dez passos de seu admirado Maximilien de Robespierre. Aos amigos que lhe restaram no ano de sua morte, redigiu um lacônico pedido para que sobre sua lápide houvesse apenas um epitáfio de poucas palavras: “Biógrafo, eternamente.”
O pouco empenho da burguesia e a pressa dos operários artesãos e camponeses em apagar as lembranças da França feudal-absolutista, exilando a fome e a miséria dos pobres, acabaram por ceifar parte de sua biografia, suas muitas obras e suas posses: Étienne foi surpreendido no castelo de Jacques Necker, então Fiscal Geral de Luiz XVI, empenhado em dar cabo de um frugal café da manhã, em horas que antecediam seus trabalhos de biógrafo. Seus longos e verborrágicos escritos foram confundidos com anotações dos Tributos Feudais e queimaram no mesmo fogo que consumiu a residência dos Necker.
Étienne ainda amargou cerca de quatro anos na prisão até ser guilhotinado em 28 de julho de 1794 nas preliminares de Saint-Just, Couthon e Antoine Laurent de Lavoisier. O que hoje se conhece desse homem singular deve-se a vagos documentos e esparsas lembranças, sobreviventes de todas as mortes.
Sabe-se pouco de Étienne Froment. Diz-se que despertou para o mundo pela via da lógica aplicada, quando, ainda lhe faltando as presas ao sorriso, desafiava os serviçais da família a combatê-lo no tabuleiro de xadrez. Poucos se atreveram a fazê-lo, e aqueles que aceitaram, caíram vencidos frente à prodigiosa habilidade do infante. Daí até a idade de dezoito anos, ocorre um hiato em sua história; o qual incumbem-se seus biógrafos, como de hábito, de preenchê-lo com sólidas especulações. Uma linha média tirada entre os escritos hoje conhecidos o faz partir para a Itália, aos quatorze anos, para instruir-se no caudal da Renascença. Vagou por Florença, Veneza e Milão estudando a Arquitetura, a Pintura e a Estatuária e, ao mesmo tempo, especializando-se na confecção de presépios mecânicos e autômatos mirabolantes, todos em miniatura.
Retornam à fidelidade dos fatos ao associá-lo a Antoine Watteau, quando Étienne Froment descobre o esplendor da vida aristocrática que a pouca idade lhe havia negado, além do romantismo úmido e ébrio que as scènes champêtres de Watteau produziam por toda a França. Tomado pela súbita compulsão de pintar, Étienne alojou Watteau no Castelo de Saint-Frusquin, propriedade de sua família, e se fez discípulo obstinado. Sua vida se avolumou.
Algumas pinturas de Étienne, que julgadas hoje sob a luz do rigor técnico não passam de pastiches copiados de Watteau, introduziram-no na sociedade coquete da época. Mas isso não foi tudo: sua amabilidade, suas longas viagens às terras italianas e o conhecimento do latim que bem falava, sua origem sensível e o acúmulo de propriedades e bônus do reino francês, fizeram-no figura de destaque nos récitals et fêtes galantes, onde adquiriu o hábito de cortejar as damas ofertando a elas suas pinturas florais, cenas campestres e grandes quadros com seus animais de estimação.
Num arroubo de extrema empáfia e pretensão equivocada, Étienne presenteou o milionário e mecenas Pierre Crozat, le pauvre, com uma sensível chinoiserie ― Artis Magnæ, segundo Étienne ― e amargou por longo tempo as lembranças das diatribes que dele ouviu; Crozat odiou tudo que viu no Castelo de Saint-Frusquin e mandou Étienne às favas.
Por algum tempo Étienne viveu abraçado à arte da pintura buscando a síntese de Flandres e Veneza; nada conseguiu. A morte prematura de Antoine Watteau em 1721, aos trinta e seis anos, prostrou-o de forma singular. Étienne tinha então vinte e um anos, um moço. Interrompido em seus anseios pictóricos, manteve-se recluso em seu castelo por muitos meses, retomando uma atividade que havia abandonado, passando a construir presépios e autômatos mecânicos. Arquitetou a reconstrução do Palácio Real e toda a corte em forma de maquetes articuladas: Luiz XV surgia à porta do seu Palácio, espocavam alguns fogos de pouca monta e luz, e era reverenciado por duas fileiras de trinta bonecos de madeira que o saudavam dobrando os rins enquanto um sistema fonomecânico se incumbia de exclamar de forma uníssona algo como: V’vvv-l’fransss! V’vvv-l’fransss! V’vvv-l’fransss! As poucas peças que restaram intactas da composição encontram-se ainda hoje no porão do Castelo de Saint-Frusquin, que serve de sede a um sindicato clandestino de taxistas de Paris, sem título e sem mérito ao artista.
Manteve o atelier ativo por um longo tempo, abstendo-se de criar qualquer coisa menos relevantes que cópias servis. A força da apatia que lhe tomava permitiu apenas que produzisse sucessivas pinturas de adulação, inteira mimese da obra do mestre Watteau, até a exaustão, acumulando-as pelas inúmeras salas da residência. Ao cabo de quatrocentos e oitenta reproduções, toda a obra de Watteau se tornara vulgar, sendo até para ele impossível identificá-las em meio a tantos duplos, triplos, quádruplos; falsos de falsos de falsos absolutos que criara ao longo de muitos anos.
Prostrou-se, tonto, por sofrer esta nova perda. Sua vida definhou com extrema rapidez até quase ao encontro da morte. Salvou-o o Barão de Montesquieu quando pôs em suas mãos a obra Do Espírito das Leis, que o fez abandonar definitivamente seu atelier de pintura para se tornar financiador, em dois anos, de suas vinte e duas edições. Tanta dedicação de Étienne à coisa literária valeu a ele o convite para redigir o capítulo sobre A Grandeza da Arte para a Enciclopédia das Ciências, das Artes e dos Ofícios, já em andamento.
No entanto, quando da primeira edição da Enciclopédia, notou-se não haver qualquer referência ao nome de Étienne Froment. Descobriu-se, posteriormente, que seus artigos, verborrágicos e extensos em demasia (considerados excessivamente pedantes até mesmo para a época), foram aplainados até perderem a consistência e, ao final, cortados da publicação.
II
Mas, se o Barão de Montesquieu o fez abstrair-se dos interesses pictóricos, foi Jean-Jacques Rousseau quem mudou definitivamente o eixo de seus esforços, e para sempre. Ainda no burburinho do prelo da Enciclopédia, Étienne conheceu os manuscritos da obra Da Origem das Desigualdades que Rousseau revisava pelos cafés e se pavoneava mostrando-o aos mais íntimos. A ingenuidade e o pouco conhecimento dos conflitos sociais da época fizeram de Étienne um apaixonado pela obra. Devorou-a sofregamente e logo a levou à prensa. Com a cabeça em giros, Étienne pôs Rousseau sob sua tutela financeira e a publicação correu por sua conta e custo, embora tenha Rousseau negado veementemente o fato em consulta posterior.
Por longo tempo Étienne Froment andou pelas ruas de Paris recitando trechos da obra de Rousseau. Falava sobre os horrores da riqueza frente à pobreza, do latifúndio frente ao campesinato, da monarquia frente à república, sempre lendo diretamente dos manuscritos que adquirira de Rousseau. Não obstante os esforços que fazia pela emancipação política da ignóbil ralé parisiense, Étienne foi escorraçado centenas de vezes. Foi quando, benevolente ao extremo, atribuiu o fato à descabida ignorância do povo, embora o povo não compreendesse o latim que Étienne insistia em falar enquanto recitava palavras tão significativas.
Desiludido, recolheu-se novamente ao Castelo de Saint-Frusquin, onde reviu os textos cortados da Enciclopédia e rascunhou em folhas soltas uma displicente biografia de Jean-Jacques Rousseau. Após lhe financiar a publicação do Contrato Social, Emilio e Devaneios de um Caminhante Solitário, Étienne propõe a Rousseau que o deixe biografar. E Rousseau aceitou.
Por um ano inteiro Étienne andou à roda de Rousseau anotando todas as palavras que dizia, inquirindo-o sobre seus pensamentos e sentimentos, além de lhe rascunhar inumeráveis croquis. São dias cheios, pois a ilegalidade das obras de Rousseau o faz fugir para Genebra e depois para a Prússia. As constantes perseguições e o assédio de Étienne põem-no no rumo da Inglaterra, consorciado a um grupo de huguenotes durante uma tempestade, tendo ele, Rousseau, a cautela de certificar-se de que Étienne Froment ficara para trás, que não o seguia em hipótese alguma.
Rousseau desembarca do brigue em 1765 com o mal da demência e a mania de perseguição. Biógrafos não autorizados, em anos posteriores, atribuem a doença de Rousseau à descabida onipresença de Étienne Froment à sua volta, suas inconveniências quando o inquiria sobre seus pensamentos, quando desenhava seu rosto, suas mãos, seus pés, suas roupas, e sempre anotando cada palavra do que dizia.
Mais uma vez abatido, Étienne regressa a Paris e refugia-se novamente em seu castelo. Tinha em mãos quatro mil e duzentas páginas manuscritas e oitocentos e quarenta esboços feitos a lápis em que retratava cada detalhe do corpo de Rousseau. O trabalho inconcluso e o súbito desaparecimento do companheiro prostram-no sobremaneira e o fazem retomar novamente ao hábito das maquetes articuladas e autômatos mirabolantes.
À maneira de Giuseppe Arcimboldo — que aprendera a admirar quando de seus estudos na Itália —, Étienne constrói oito quarteirões de Paris, incluindo o Sena e a Notre Dame. Imaginando o cenário como uma festa campestre — não abandonara as lembranças de Watteau —, o bispo mirabolante, uma miniatura de lata e corda, saía da catedral, dava três passos, caia ao chão e rolava até o Sena, enquanto uma multidão de bonecos articulados gritava como na cena do Palácio Real: V’vvv-l’franssss! V’vvv-l’franssss! V’vvv-l’franssss! Esta obra findou por inconclusa, uma vez que a putrefação das frutas, dos vegetais e das hortaliças que compunham o conjunto arquitetônico, fazia ruir seguidamente as edificações.
III
Desta vez é Voltaire quem resgata Étienne Froment dessa febril e inútil atividade, e por alguns meses trabalham juntos nos manuscritos biográficos de Rousseau, aplainando-os até estarem resumidos a algumas páginas dignas de publicação; o que findou por não acontecer. Étienne sentiu-as simplória e superficial, não compondo, como era de seu desejo, a biografia definitiva; fixara-se nisso. Somava-se ao que lhe ocorria, o fato de Rousseau viver em alguma parte da Europa pensando, falando e agindo, o que o forçava a não pôr um ponto final em seus escritos biográficos. Parecia-lhe conveniente aguardar os acontecimentos, saber mais acerca de Rousseau.
Fez quatro viagens a Bordeaux na esperança de reencontrar-se com o Barão de Montesquieu para concluir sua biografia, uma vez que não conseguia imaginá-lo morto. A grandeza da obra do amigo não lhe permitia a mortalidade. Quando de volta a Paris, encomendou mais cinco edições de Do Espírito das Leis e as mandou ao prelo.
Foi a confluência entre a enorme fortuna de Étienne, as manifestações apaixonadas de Voltaire contra o regime político servil e o excessivo mando da Igreja Católica que selou o destino de ambos: depois de financiar inúmeros panfletos políticos que entupiram as ruas de Paris com propaganda anticlerical, Étienne demoveu Voltaire a se deixar biografar de forma radical e definitiva.
Por dois anos Étienne andou à roda de Voltaire anotando o que dizia e o inquirindo sobre seus pensamentos, anseios, juízos e necessidades. Ao fim desse período, exausto e completamente desorientado, Voltaire rompeu a amizade que os unia, solicitando que Étienne o esquecesse, indo viver sob a proteção de Catarina II, da Rússia, em acolhimento e refúgio. Quase tomado pela loucura, Voltaire insistia em dizer aos amigos que o afastassem, a todo custo, de Étienne Froment. Foi quando os amigos o deram por delirante por nada saberem de Étienne.
Atordoado em seus propósitos, tinha Étienne duas mil e novecentas páginas inúteis nas mãos, logradas ao despropósito da interrupção da biografia de Voltaire. Andou ainda à espreita de Marat, Danton, Mirabeau, Robespierre e do próprio Rousseau, que se sentindo novamente perseguido, refugiou-se em Ermenonville, sob a proteção do Marquês de Gérardin, vindo a falecer de apoplexia sem ser alcançado por Étienne. “Graças a Deus”, costumava dizer Rousseau em balbucios quase alucinados, em seu refúgio. Todos negaram a Étienne tal empreitada.
IV
Impossibilitado de fazer as biografias das eminentes personalidades de sua época, Étienne retirou-se para o campo onde passou cinco anos sob completa reflexão, só regressando novamente a Paris depois de asseverar-se, num raríssimo rasgo de lucidez, de seu inominável equívoco: a biografia radical tinha insuperáveis inconvenientes. Mostrava-se sempre inconclusa pela desistência do biografado ou pela possível súbita ou previsível morte do biografado. Avaliou ainda que os inevitáveis vexames e desconfortos a que se submetiam seus entrevistados, faziam sempre com que lhes mudassem o rumo das ações, tornando seus atos e seus pensamentos carentes de naturalidade. Compreendeu que sua constante presença maculava a própria biografia que escrevia.
Foram as palavras de um moribundo que deram a Étienne o mote para seus futuros trabalhos. A saber: enquanto ouvia, na estrada de retorno a Paris, as discussões entre a Milícia do Rei e a Milícia do Cardeal sobre a conveniência de enforcar um camponês contumaz devedor do fisco, ou levá-lo à guilhotina, Étienne teve o corpo tomado pelo frêmito da inesperada boa colheita. Disse-lhe o coitado em juízo de fenecimento: Na hora da morte, toda minha vida se me descortina diante de meus olhos!
Como em ambos os lados das milícias houvesse bons oradores e fartassem os vinhos e as vitelas, Étienne biografou o homem ao longo de três dias, obtendo concisos relatos, eivados de sentimentos. Ao cessarem os argumentos de ambas as milícias, o biografado de Étienne pendeu na ponta de uma corda.
Renascido, Étienne arquitetou mentalmente a edição das “Biografias Agonizantes”, abandonando finalmente a ideia de tratar personalidades estelares. Lidaria, a partir daquele momento, com o ladrão, o herético, o simoníaco, o assassino, o ínfimo, a ralé social da França. Esqueceria as estrelas do passado.
Biografou por oito dias o calceteiro Jérôme Petit, que após ser mordido por seu próprio cão, descobriu que ao mordê-lo o animal lhe roubara a personalidade, deixando em troca a sua. Vendo-se na contingência de matar cinco mulheres a dentadas e ser condenado à guilhotina pelo Condado de La Rochelle, declarou-se inocente e pediu que com ele seu cão fosse também decapitado, procedendo depois a reordenação das cabeças — e das personalidades, disse ainda. Tantos relatos renderam a Étienne oitocentas páginas de tagarelices que, após ajustadas ao nível do que chamou de literatura biográfica, chegaram à concisão desejada: restaram cerca de novecentas páginas.
Dando prosseguimento às Biografias Agonizantes escreveu a trajetória de Monsieur Napró, Le Médecin, homem culto da sociedade de Avignon que achou por bem capar o sexo dos travestis que habitavam as espeluncas musicais daquela cidade, tornando-os verdadeiras mulheres, como insistia em dizer. Foram-lhe atribuídas vinte mortes por absoluta imperícia do seu bisturi. Afirmou Monsieur Napró que Avignon era a Terra dos Papas e sua incumbência era mantê-la em ordem, pondo ou tirando as coisas de seus lugares. Mais tirando do que pondo, chamou a si mesmo de O Novo Ordenador de Avignon. Pendeu no laço de uma corda.
A impropriedade do linguajar utilizado pelos biografados e a abusiva explicitação das demências relatadas nos textos de Étienne, tiveram os atritos da Igreja e os freios do Reino, sendo recolhida e queimada toda a primeira edição das Biografias Agonizantes. Étienne, por pouco, livra-se do rol do Santo Ofício quando alega não serem suas as palavras que o livro trazia, mas dos agonizantes, fato que levou alguns dos biografados a escaparem da guilhotina e terminarem queimados sob as ordens do Directorium Inquisitorum.
Sob suspeição, Étienne Froment manteve-se inativo por algum tempo, ficando sob os olhos desconfiados do Braço Secular e das armas dos homens sérios do Reino francês.
V
O choque de ver seus livros queimados abateu-o até quase a desistência, mantendo acesa a chama da obstinação quando se limitava apenas a compor ralas biografias de camponeses sem atrativos. Vagueou por Lille, Anzin, Marseille, percorreu feudos, vilas, ruas e grêmios de artesãos. Visitou padeiros, alfaiates, açougueiros, tintureiros e feirantes, tudo em busca da mínima biografia, onde anotava datas de nascimento, casamento, filhos se houvesse e o ano da morte, se alguém lembrasse.
Uma luz de recuperação permitiu que vislumbrasse o maravilhoso e o grandioso naqueles cotidianos imperturbáveis, repetitivos, miseráveis, mesmo não havendo qualquer fato, ação ou pensamento estupefaciente naquelas vidas. Encantou-se pelo suor, pela fibra, pelo pouco, pelo simples. Imaginou colher o resumo daquelas vidas sob o título Vidas Fantásticas para futuras edições, mas acabou por fazê-lo apenas por exercício. Infelizmente, sua percepção de estar criando a corrente minimalista biográfica era afetada pelo esmorecimento que o consumia e não deu a ela continuidade. Por extrema ironia, tudo que fez, acabou por servir ao Serviço do Censo da Revolução, que usou seus manuscritos para balizar o modus vivendi do homem pequeno da França. Posteriormente seus dados — gênero, ano de nascimento, ano de morte, etc. —, foram compilados e utilizados com sucesso para construir a primeira Tábua de Mortalidade da França, adotada por muitos atuários da Europa por quase um século.
VI
Com as faculdades mentais afetadas, Étienne recolheu-se às próprias fantasias, imaginando-se personagem dos quadros do antigo mestre, Watteau; inscreveu-se nas scènes champêtres indo viver no campo até tornar-se saltimbanco e empregar-se como marionete humana numa trupe de Wurtemberg que percorria o interior da França.
Exaurido mentalmente, tentou ainda escrever A Biografia dos Animais Fantásticos. Foi quando desenvolveu a sua particular cosmogonia dos seres vivos sobre as Terras, definindo-os como pertencentes a cinco reinos distintos: animais de pena, animais de pelo, animais de couraça, animais de escama e animais de corpo nu. Estabeleceu, ainda, como representantes de tais espécies, a fênix, o licórneo, a tartaruga, o dragão e o homem. Para cada uma dessas espécies teceu detalhamentos e definiu aptidões. Discorreu longamente acerca de um basilisco da Terra Plana, de uma enguia ígnea de Tule e de uma perca fluviatilis da Hiperbórea, quando falou de sua fantástica capacidade magnética para navegação e a descreveu como tendo três cabeças, que afirmou serem de Cloto, Láquesis e Átropos, embora tivessem no corpo a aparência de um bode.
Resgatado da demência extrema por velhos amigos, retornou ao Castelo de Saint-Frusquin, passando a dialogar com as coisas. Tentava extrair-lhes a biografia completa: a gênese, o mundanismo e a decadência. Foi dado como louco quando se descobriu que imaginava que as coisas com ele dialogavam em seus infindáveis saraus biográficos. Ainda assim, completou a biografia das portas centrais da Catedral de Notre Dame, de uma wunderkammer, de um capacete atribuído a um General da Northumbria que defendeu a coexistência da Heptarquia Britânica e trabalhava com afinco sobre os dados do que supunha ser o signo maçom de Carlos Magno. Imaginava editá-las sob o título de Biografia das Coisas Célebres, mas por obra de um segundo e raríssimo lapso de lucidez, declinou diante das próprias ponderações.
VII
Finalmente, em 1790 Étienne foi apanhado pelo braço da revolução quando fazia, na casa de Jacques Necker, a biografia de uma ― irônico! ― guilhotina. Amargou quatro anos no cárcere. Todo esse tempo levou o Estado e a Igreja para decidirem se o levariam à guilhotina ou à fogueira. De tantos males a que se referiam os litigantes, da morte de Étienne Froment sobraria um fabuloso espólio a ser incorporado ao patrimônio do vencedor. Venceu, por óbvio, a força do Estado e a guilhotina, embora a França tenha cedido o espólio de Étienne à Santa Igreja. Restou conforto às partes.
No cárcere, Étienne biografou alguns dos companheiros de cela imaginando aumentar as Biografias Agonizantes. Foi quando ensaiou a própria biografia, uma vez que na condição de condenado terminal, achava-se perfeitamente circunscrito.
Ouvindo ainda os ecos lamentosos de Lavoisier pela Place de la Concorde, Étienne subiu ao patíbulo calcinado pelas incertezas, arruinado pelos anos — contava, então, com noventa e quatro anos — e pelas decepções que acumulara. Seguiu registrando seus últimos momentos de vida. Seu desânimo frente aos acontecimentos e seu extremo estado de conturbação mental, fizeram-no claudicar seguidas vezes na escrita, e isso transformou aquelas últimas linhas biográfica, simples e concisas, no que de melhor teve a sua obra.
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