Nunca vou pro trabalho no Centro da cidade de carro porque deixo o meu Fucão 64 descansando na garagem, debaixo do telheirinho de zinco que tenho aqui do lado, num terreno baldio, mas naquele dia a coisa tava diferente, porque seu Danilo disse pra mim: Zacarias a coisa é séria, pois preciso da tua ajuda; e eu vi que a coisa era quente mesmo porque seu Danilo era um grande sacana que nunca nem não falava comigo, mas naquele dia ele falou, e tava manso, e veio cheio de jeito, bem de amiguinho, e disse com toda delicadeza: Zacarias quero você aqui amanhã dentro de um terno preto bem alinhado porque a mulher do Secretário da ONU vem aqui ver o nosso trabalho, numa reunião com os bosses da repartição, e nada pode dar errado; e ainda seu Marcos, que tava com ele, reforçou o pedido dizendo que eu era um cara bacana, de confiança, e eu comecei a ficar entusiasmado e eu fui logo dizendo pra eles: Tudo bem pessoal, podem contar comigo, que eu não piso na bola, não vou decepcionar; e seu Marcos e seu Danilo ficaram muito contentes, e eu fiquei entusiasmado, só pensando: O que que será que aquela mulher vem fazer aqui na repartição?, a ONU fica onde?, isso deve ser importante porque a ONU é muito importante e a repartição também é muito importante, e é melhor eu não pisar mesmo na bola com ninguém; e assim que o expediente acabou, tirei o uniforme de contínuo, peguei a minha marmita, e corri pra Pavuna, pra casa, e falei pra minha Nataly: Nataly, preciso de um terno alinhado e tem que ser preto porque foi o que o seu Danilo falou, e seu Marcos falou também, e quando seu Danilo fala a gente tem que escutar porque ele é um dos bosses da repartição, e quero que você me ajude; e Nataly muito parceirona, me olhou com aquele jeitão dela e me disse toda meiguinha: Zacarias, em que merda você se meteu de novo?, em que merda seu Danilo e seu Marcos vão meter você dessa vez?, e olha lá o que você vai me aprontar…; e eu ficava ouvindo ela falar e esperando que ela me ajudasse, então eu disse pra ela, fazendo valer a minha autoridade de homem da casa: Me ajuda, Nataly, me ajuda, por favor; e Nataly, que tem uma memória boa pra caramba, um elefante em forma de mulher, lembrou dum primo que ela tem, o Pininho, que trabalha num cemitério ajudando o coveiro a empurrar caixão no crematório do Caju, e foi quando ela falou pra mim: Vamos na casa do Pininho, Zacarias, que ele deve de ter um terno preto alinhado sobrando, e ele é um tico de gente, esmirradinho que nem você, e vai que o terno dele te serve, no jeito, e tudo vai ficar beleza, resolvido; e foi ela falar pra eu pegar o meu Fucão 64 e imbicamos na direção da casa do primo dela, o Pininho, que mora em Coelho Neto, numa rua esburacada pra caramba, e meu Fucão rangia e apitava quando entrava e saia daqueles buracos que até pareciam os dentes de gente pobre, cheio de crateras, e era pedra e lama pra todo lado, até que a gente imbicou de vez na casa do Pininho, um barraco de tijolo sem reboco que tinha um piso vermelhão bem distinto, bonito pra caramba, dos tempos antigos, todo feito de pó-xadrez, e Nataly, cheia de autoridade, foi logo dizendo: Pininho, meu querido, salva aqui o meu homem, o Zacarias, que está precisando dum terno preto que eu sei que você tem; e o primo Pininho, que era um cara legal pra caramba, disse que tudo bem, mas precisava levar duas notas de cinquentinha na jogada como garantia, e me deu um terno preto ensebado pra caramba que tava coberto de cinzas que deviam ter saído dos defuntos que ele empurrava no crematório do Caju, mas tudo bem, porque o terno do Pininho me caiu como uma luva, uma luva de boxe, porque a Nataly não sabia que o primo Pininho tinha engordado e tava parecendo uma tremenda baleia, mas não tinha problema, porque pobre sempre dá um jeito em tudo, e eu sabia que a minha Nataly era boa pra caramba nas costuras e nos alinhavos, e ia acabar dando um jeito naquela desgraça de terno, e teve também que ajeitar a bainha, porque o danado do primo era gordo pra cacete mas era ainda mais baixinho que eu, e lá fomos nós de volta pra Pavuna, e toca de Nataly dar um trato no terno, e toca de passar um paninho com álcool, de dar uma escovada na lapela, e de ajeita mais a bainha, e o terno foi indo, foi indo, foi indo, e de tanto ir e ajeitar pra lá e ajeitar pra cá, acabou ficando uma beleza, da melhor qualidade, e foi quando eu aproveitei pra dar umas graxas nos sapatos e umas cuspidelas neles também, pra pegar um brilho bonito, e logo em seguida passei uma escova e tudo ficou perfeito, dez, da melhor qualidade, e quando eu tava me olhando no espelho, tirando uma onda de bacana, que nem os bosses da repartição, a minha querida Nataly chegou com um sorriso largo e gostoso de aprovação e me disse enquanto me dava um cascudo: Zacarias, prum pobretão fodido como você, você até que tá uma beleza, parece até um porteiro de gafieira, e fique na paz porque amanhã você vai fazer bonito praqueles filhos da puta da repartição; e tava tudo resolvido, com o terno na mão, sapato engraxado, uma gravata que eu peguei emprestada do contínuo que serve o café na repartição, meia amarronzada de borra de café, mas tudo bem, é a vida, e como já era tarde pra caramba depois daquela luta toda, fui deitar contente pra caramba vendo aquele mulherão parceiro ali, juntinho de mim, na minha cama, deitada de lado, com aqueles cadeirões que pareciam os morros do Pão-de-açúcar, e aí eu não resisti, e foi quando me deu uma coisa por dentro que me fez pular em cima dela, e ela, com aquele jeitão de beque de várzea, me deu uma cotovelada nas costelas e falou, cheia de afeto: Sossega o facho, Zacarias, que amanhã teu dia vai ser cheio pra cacete, e tu não aguenta o tranco comigo, vai com calma; e foi mesmo, porque logo de manhã, às cinco em ponto, peguei o meu Fucão 64 e flanei tranquilo pela Avenida Brasil até no Edifício Garagem, e tive que deixar por lá cinquentinha de estacionamento, e pensei: Essa história do terno preto já tá ficando cara pra caramba, porque contando com os cem do Pininho e com a grana do estacionamento, já se foram cento e cinquenta pratas; mas o que fazer se tinha que fazer bonito pra seu Danilo e pra seu Marcos, e tomei um café com pão na birosca que fica embaixo do prédio e corri pra repartição e me apresentei pra seu Marcos, que soltou um sorriso largo, contente pra caramba, e me disse: Ómaigódi, Zacarias, você se superou dessa vez, tá até parecendo com o Guerigran; e eu não sabia quem era aquele tal do seu Guerigran, mas achei que ele fosse um cara muito importante, e até ele também trabalhasse na ONU, e isso acabou me deixando contente, e foi quando ele me pegou pelo pescoço e me deu um cascudo e me arrastou até a sala de seu Danilo, que quando bateu o olho em mim, falou: É, o Zacarias aqui é mesmo o cara, que tá bonito feito um pinguim de geladeira; e me arrastou até uma sala no fundo do prédio e me fez ficar sentado onde já tinha um monte de sujeitos iguais a mim, todos de preto com caras ensaboadas, de gente grande e forte, com jeito de vou-meter-a-porrada-em-alguém-daqui-a-pouco, e foi quando eu pensei: Em que merda eu me meti, que monte de homem é esse, que pra eu ser igual a eles, só preciso de botar uns óculos escuros na cara e passar vinte anos dentro duma academia malhando ferro de duzentos quilos, além de ter que calçar um par de sapatos plataforma de meio metro; e foi quando eu também pensei: Ih, mataram a mulher do Secretário da ONU, e esse pessoal vai carregar o caixão dela, porque a mulher deve de ser muito grande e pesada, e precisam de tanta gente assim; e enquanto tava matutando esses pensamentos malucos, seu Marcos entrou na sala e foi logo dizendo pro pessoal: A mulher tá chegando minha gente, todo mundo preparado, atento, e vamos que vamos embora que essa é a hora boa; e todo mundo deu um salto feito conscrito num primeiro dia de quartel, e eu segui aquele povo grande pra caramba, e fui com todo mundo, naquela fila em que eu sempre ficava pra trás, andando pelo prédio, pelos andares, pelos corredores, e seu Marcos só ia dizendo, de um a um: Você fique aqui; Você fique ali; Você fique mais adiante; Você não deixa ninguém passar por aqui; e foi espalhando aquele monte de homens pelo prédio e eu só atrás, o último da fila, porque com o meu tamaninho, eu parecia um anão com aquela homenzalhada de quase dois metros, só olhando e ouvindo, até que quando ele terminou de espalhar aquele mundaréu de gente pelo prédio, ele chegou pra mim e disse com uma cara muito séria e importante: Zacarias, a tua missão é ficar bem aqui e não deixa nenhuma vadia da repartição entrar nesse banheiro enquanto a esposa do Secretário da ONU não for embora, porque esse banheiro hoje é só dela; e eu fiquei ali, parado, em pé, um porteiro de latrina, mas tudo bem, é a vida, fazer o quê, hoje uma coisa, amanhã uma coisa igual, porque essa é a vida de pobre mesmo, não tem jeito, e a mulher não queria porra nenhuma com aquele maldito banheiro, e a reunião dos bosses correndo, rolando, e eu só ouvindo ao longe aquela conversação sem entender nada, e o dia passando, e o tempo passando, e foi quando eu pensei: Essa mulher da ONU deve de ter os buracos tampados; e o tempo passando, e fui percebendo que quem queria mesmo ir ao banheiro era eu, que tinha comido um mocotó na janta e tava que não me aguentava, com as tripas pedindo socorro, parecendo que lá dentro da barriga tinha um bicho nervoso querendo sair, querendo que eu desse à luz uma perna inteira de boi, e a mulher não aparecia, nada, arrolhada dos buracos, e o tempo passando, e quem queria mesmo ir ao banheiro era eu, e ninguém aparecia, nada, nada daquela mulher lacrada, e foi me dando uma coisa, e outra coisa, e uma coisa, e se eu não tomasse logo uma providência, ia acabar me borrando ali mesmo, e não teve nem mais nem menos, porque entrei no banheiro da mulher da ONU e me aliviei completamente, deixando no ar aquele bafo enjoado pra caramba, aquele cheiro de morte flanando por todo lado, o cheiro da salvação das vergonhas de um homem recatado, do bicho nervoso solto no ar, com jeito de que eu tinha comido terra de mangue, mas o que fazer, não tinha outro jeito, porque eu já tava suando de tanto me apertar, parecia um doente terminal, e voltei pra porra da porta do banheiro pensando que aquela desgraçada já podia demorar o tempo que bem quisesse, aquela lacrada podia demorar até a manhã seguinte, e já era quase nove horas da noite e a mulher era mesmo entupida dos buracos, e de repente, todo mundo importante saiu do salão dos bosses, todo mundo sorrindo, e eu achando que ainda estava com aquela cara cor de azul de tanto me apertar, mas não, já estava bem, e vi quando a danada passou, e a desgraçada nem sequer olhou pra minha cara, foi passando e eu quase agarrei aquela compridona dos diabos e corri com ela pra dentro do banheiro pensando em dizer: Agora, sua lacrada, usa essa porra de banheiro porque eu perdi o dia inteiro em pé aqui na porta dessa merda e você nem pra dar uma mijadinha; mas falar o quê, se ela não ia entender nada do que eu dissesse, então fiquei quieto, humilde, porque pobre tem mesmo é que ser humilde, e quando ela pegou o elevador pra se mandar lá pras ONUS, eu bati em retirada muito puto da vida com seu Marcos e com seu Danilo, mas fazer o quê, eles são os bosses da repartição, e quando cheguei em casa e contei essa merda toda pra Nataly, e ela falou pra mim enquanto lixava as unhas, já preparada pra dormir: Eu te falei, Zacarias, você é mesmo um otário, e virou de lado e caiu no sono, e eu fiquei por ali, pensando, porque tinha que devolver o terno de cremar defuntos do primo Pininho no dia seguinte pela manhã, e acho que ia me dar mal porque o terno agora tinha ficado na metade do tamanho do primo, mas fazer o quê, se não devolvesse logo aquele terno, teria que botar mais cem pratas nas mãos daquele filho da puta, então deixei pra lá, depois veria o que fazer com Nataly e me agarrei nela feito conchinha e caí num soninho gostoso.
Muito bom! Divertido e sem pretensões, como se espera duma boa história. Gostei, Ângelo. Fui lendo o tempo todo com um sorriso nos lábios, que mais se pode desejar? Um abraço.
Obrigado, Ana Maria. O Zacarias é um pouco do povo simples do Rio de Janeiro, dos subúrbios.
Grande abraço!!
Nota-se essa simplicidade na forma como relata, muito fidedigno.