Sentado nesse chão acolchoado, olhando para as paredes brancas e macias que me cercam, lembro-me dela… E da vida que seu sorriso incutia no meu dia-a-dia. O cheiro de lavanda em seu hálito, o perfume adocicado que sua pela expelia, seus olhos cor de avelã que atravessavam minha mente e despiam o meu ser. Seu andar era um desfile e seus cabelos macios bailavam no compasso de seus passos… Ela era magia e poesia, uma música nunca feita e uma obra de arte nunca criada. Era a definição da perfeição.
Mas nunca me quis.
Eram gestos bruscos e debochados jogados em minha direção. Seu sorriso lindo e encantador assumia um tom macabro de desprezo. Não gostava de mim, não sentia o meu amor, e vivia em uma realidade paralela, destoando do mundo que me cercava.
Era um amor impossível?
Não quando se tem algo tão poderoso e arrebatador quanto eu tinha.
Eu entendia seus anseios e suas vontades. Sabia que o conteúdo muita das vezes é mascarado pela embalagem. E ela era uma mulher de embalagens. De rótulos que lhe embelezavam a visão, que lhe davam um admirável e acalentador sossego, ou fogo, ou o que mais pudesse sentir. E somente um homem poderia proporcionar isso a ela.
Um idiota. Paixão não correspondida.
Era um conteúdo podre, repleto dos vermes mais purulentos que possam existir, mas o invólucro era impecável. E eu, que possuía o interior lindo, repleto de amor para dar, não tinha oportunidade de me aproximar. As investidas foram inúmeras, e a rechaça foi de valor um pouco maior. Eu sabia que não era culpa dela. Sabia que aquilo era apenas pelo fato de não conseguir enxergar o que eu tinha por dentro, quem eu era por dentro.
Foi por isso que fiz o que fiz. Foi por amor. As circunstâncias ainda são enevoadas, mas o processo completo está encravado em minha mente.
As facas, preparadas com tanto cuidado, as horas gastas no amolador, o processo de organização, o leito envolto em plástico…
Lembro com perfeição a textura do sangue em minhas mãos. A forma como o líquido viscoso escorria mesa abaixo, formando ramificações intricadas, desenhando formas inimagináveis. E o som, agudo, cortante, rasgando por debaixo da pele com precisão cirúrgica. Um trabalho para se gabar, e tenho orgulho de ter sido feito por mim.
O nome dele é tão inútil quanto sua existência. Fugiu-me a mente, assim como qualquer coisa desnecessária costuma fazer. Sua pele foi tudo o que restou. Seus cabelos macios, coisa de galã de cinema. Os dentes brancos reluziam a luz que os atingia, e quando eu os coloquei, senti o poder. Como um troca-peles, entrando na perspectiva de tudo que o outro fazia.
Arranquei com a milimétrica precisão, cada pedaço por vez. E a embalagem saiu por inteira. Uma imagem interessante que é uma lembrança constante: O corpo em agonia, estirado à minha frente, munido de uma cor vermelho-músculo. Remexia-se em um furor anormal, repuxando as fortes amarras que o prendiam na mesa. Naquele momento, o deixei para trás e me encaminhei para o banheiro. A ducha quente caiu levando tudo que havia de impuro. Esquentou a pele até esfolar. Sai de lá com o couro queimando, em tons de um rosa vivo. Ainda nu, com a vestimenta em mãos, o cheiro de ferro já começava a me dar náuseas. Apressei-me para transformação.
Vesti-a sobre meu corpo, encaixando cada parte em seu devido lugar. Foram longas horas no trabalho com a agulha, costurando retalho por retalho. Quando terminei, era outra pessoa. Os dentes foram um processo doloroso, mas não deixei a desejar. Arranquei os meus bem lá do fundo, e pus cada novo em seu devido lugar, sem quebrar nenhuma raiz.
Rocei os dedos de leve pela façanha, uma obra de arte aos pés de minha amada. Deixei o animal a agonizar e sai. Quando me pegaram, encontraram-no morto ainda no porão. Disseram que os braços haviam se rasgado até o osso, na falha tentativa da fuga. Mas isso não vem a caso.
O que vem ao caso, é que mais uma vez eu fui enxotado, como um cão sarnento, como um leproso indesejado. Ela gritou, esperneou, e o horror derramou-se dela como em uma nascente poderosa. Olhava para mim como se eu fosse um monstro, uma criatura tão horrenda quanto o homem que ela admirava. E eu chorei.
Chorei de ódio. As lágrimas se derramavam pelo desprezo, pela falta de consideração. Não era isso que ela queria? Um livro com o meu conteúdo e uma capa alternativa? Foi o que dei, e só tive mais do mesmo em retorno. A raiva subiu-me a cabeça e entrei na casa de supetão, chutando a porta e voando em cima daquela que tanto amava.
Declarei meu amor enquanto a enforcava, chorando por perder a mulher da minha vida. O ar escapando dos pulmões enquanto sua cabeça ficava roxa, é a única lembrança de ternura que guardo.
Em noites como essa eu ainda choro pelo amor perdido, pelos filhos que nunca tivemos e pelas noites de paixão das quais fomos privados. Ela foi a melhor de todas. A que despertou um lado em mim que nunca imaginei existir. O sonho mais quente, a estrela mais brilhante, o sentido da existência…
Foi um amor para vida toda.
Mas bah! Criativo!
assino embaixo de tudo o que o Rubem falou
Parabens, tchê!
pra dar algum pitaco, declaro que não ficou bem claro, a hora em que ele vai vestido de sua pele nova se mostrar para a amada… demorei pra sacar o que tava acontecendo, primeiro eu pensei que a policia o pegou primeiro…?
me perdi ali.
abração, guri
Obrigado, Rubem!
No caso do início, eu tentei acentuar a loucura até mesmo através da narração. Coisas incomuns que parecem ser normais para ele, tipo isso. Talvez não tenha ficado tão claro.
E você me deu uma boa ideia. Vou tentar deixar isso um pouco mais repugnante. Vai que alguém passa mal lendo… nunca se sabe. haha
Obrigado pela leitura e pelas dicas, serão muito válidas posteriormente!
Abraços!
Gostei do conto, JC. Foi uma das coisas mais sanguinolentas e doentes que li recentemente, rs. A ideia do “vestir a capa de outro livro” é horrivelmente boa.
Se me permite, eu sugeriria pequenas alterações: no início, ao falar de hálito, achei estranho “lavanda”, pois não é comum em pasta de dente, soluções ou pastilhas bucais. Sempre associei lavanda à desinfetantes e odorizantes de ambientes em geral. O verbo “expelir” também me causou uma sensação oposta ao que deveria, pois associo sempre a algo repugnante. Eu usaria “exalar”, “sublimar” ou algo do tipo.
Penso que seria interessante apresentar ainda que de leve o bonitão doador da “capa”, pois ficou meio abrupto quando as ações do narrador começaram. De qq forma, foi algo criativo e surpreendente. Quando comecei a ler pensei que o narrador se vingaria da moça que não correspondia seu amor e só.
Acho que o conto tem um mote que resultaria num torture-porn daqueles de fazer gente desmaiar na projeção.
Tô meio retardado esses dias.
Comentei no lugar errado.