EntreContos

Detox Literário.

O Bicho (Marcelo Martins)

O bicho tinha um perfil estranho, meio gato, meio cachorro, e olhos que pareciam com os de uma pessoa. Rastejava pelo chão observando sapatos e sandálias que deixavam as mulheres com os pés à mostra. Não saía do depósito e alimentava-se do que as pessoas deixavam cair a sua volta, daquilo que esqueciam ou se esforçavam para esquecer. Comia segredos; perversões sexuais, mentiras, traições, eventualmente alguma maldade violenta; na maioria das vezes, porém, não passavam de mesquinharias cotidianas comuns a qualquer humano.

O bicho passava a maior parte do dia comendo e lambendo as patas, todavia, só fazia emagrecer. Ninguém sabia como ele havia chegado até ali, se alguém o trouxera ou se havia entrado pela janela quebrada do banheiro. Demo-nos conta de que estava entre nós pouco depois do recesso de fim de ano. A faxineira disse que havia um gato andando pelo depósito. O moleque do estoque disse que não. Depois um funcionário da contabilidade afirmou que viu uns olhinhos brilhando no escuro atrás de umas caixas lá no arquivo morto. Olhos humanos; sentenciou. Vez que outra alguém tinha a impressão de ter visto algo rastejando ou um brilho de uns olhos muito estranhos.

De início sua presença foi tratada com indiferença. Na verdade sentíamo-nos confortáveis. Entretanto, o temor de termos nossos segredos revelados começou a germinar. Não recordo de quem partiu os rumores de descontentamento, sei que logo eles ganharam força. Chegamos à conclusão de que devíamos nos livrar dele.

Após muitas conversas pelos corredores, encontros na cozinha e trocas de e-mails, chegamos a um nível mais profundo de entendimento. Enxotá-lo não era o suficiente. E se um de nós ficasse com o bicho para si e dele extraísse segredos para depois chantagear os demais? Como poderíamos ter tamanha fé uns nos outros? A decisão, pois, surgiu de modo inegável: era preciso matá-lo.

Aqueles em que a culpa pesava em demasia, ofereceram-se voluntariamente para executar a tarefa. Em grupos de três ou quatro, não mais que isso, procurávamos o bicho pelos cantos do escritório, embaixo dos móveis, nos lugares escuros. Porém, não conseguíamos entrincheirá-lo. Lá pela terceira semana após o inicio das buscas, suspeitávamos de que alguém o acobertava a fim de tirá-lo da empresa. Ninguém falava, apenas corriam olhares desconfiados. Por fim, clima tornou-se insustentável. Os mais fortes passaram a dominar os mais fracos, tomavam o que desejam, fosse dinheiro ou mulheres. Por vezes nos agredíamos. Agora podíamos reinar uns sobre os outros. E foi que isso acabou por trazê-lo até nós.

Em vez de seguir fartando-se com nossa mesquinharia e assim emagrecendo até desaparecer, ocorreu o oposto. Começou a engordar. Movia-se com lentidão de modo que começamos a ouvi-lo se debater entre as caixas e os armários. Deixava escapar uma espécie de gemido. Guiamo-nos por esse som para encontrá-lo. Havia pedaços de pele, fios de cabelo e urina pelo chão. O chefe do jurídico disse que o vira dentro do armário; a porta estava entreaberta e ele parecia dormir. Viu também um rastro de sangue. Teve medo de atacá-lo, na verdade medo de que o bicho o atacasse, e ele podia fazê-lo, se assim o quisesse, pois suas patas eram enormes, lembravam as mãos de um ser humano repousadas sobre o peito. Foi o que nos contou o empertigado.

Restringimos o raio de ação do bicho de modo que o levamos para um brete que desembocava no arquivo morto. Ouvi um arfar pesado e avancei silenciosamente para dentro da sala. Vi parte de sua perna saindo debaixo da estante de metal que ficava recostada na parede. A sala estava quase vazia, deixamos apenas as estantes, todas elas contra a parede do fundo. Com um gesto chamei outros dois colegas e fechamos a porta. Trazíamos cabos de vassouras pontiagudos, afiados como lanças, lona preta de plástico e uma barra de ferro. O bicho sentiu nossa presença. Fez um movimento para retrair a perna que estava à mostra, porém o surpreendi e cravei-lhe a estaca. O sangue esguichou na parede e ele se contorceu fazendo com que o armário caísse. Correu para o canto da sala permanecendo de quatro com a cabeça virada para a parede. Tomei a barra de ferro e o golpeei na altura do ombro; minha intenção era atingir a cabeça, mas errei. Ele se encolheu no chão em posição fetal; sua respiração vinha acompanhada de um gemido. Contudo, num movimento rápido e intenso, rolou até a parede de modo que ficou com as costas escoradas e se foi erguendo até ficar em pé. Estava muito pálido e a pele tinha um aspecto viscoso, apresentava chagas pelo corpo. A barriga flácida quase lhe cobria a genitália, o cabelo era loiro e ralo no alto da cabeça, porém cumprido até a altura do ombro. Fitou-nos com firmeza, sem raiva ou medo, apesar da expressão carregada de dor.

– Quero morrer como um…

Não deixei que terminasse a frase e enfiei-lhe a estaca na barriga repetidas vezes num movimento mecânico. Ele tombou com a força dos golpes e ficou estendido no chão, convulso. Senti um ódio abençoado. Meus colegas olhavam estupefatos a cena. Limpem essa sujeira, disse. Abri a porta e encarei o restante dos funcionários, todos a postos em suas mesas, mantendo o rito do local. Fui ao banheiro lavar as mãos e trocar a roupa suja de sangue.

Na outra semana fui promovido, passei a chefe de setor, e em pouco mais de um mês, convidado a tomar parte na sociedade do escritório. O bicho? Disseram que ele era um ex-funcionário, um antigo diretor, ou zelador do prédio. Ao certo ninguém sabe.

4 comentários em “O Bicho (Marcelo Martins)

  1. Gustavo de Andrade
    18 de janeiro de 2015
    Avatar de Gustavo de Andrade

    Ué, que conto doido!
    A aceitação da existência do bicho achei súbita demais, e não senti a conexão que levou à conclusão de ser um diretor ou zelador… e, aliás, por que ele foi promovido? Faltaram essas respostas.

  2. Marcelo Martins
    16 de janeiro de 2015
    Avatar de Marcelo Martins

    Opa! Obrigado pelos comentários.
    Também tenho a franca sensação de que me perdi no desenvolvimento do conto.
    Preciso burilar o texto, o conflito. Mandei um tanto no ímpeto, mas muito obrigado pelas considerações. É sempre bom ouvir outras vozes, porque em determinado fico contaminado pelo processo que está na minha cabeça.
    Um abraço

  3. Sonia Regina Rocha Rodrigues
    14 de janeiro de 2015
    Avatar de Sonia Regina Rocha Rodrigues

    Um bicho que come segredos e alimenta-se de perversões é uma idéia forte, ótimo gancho.
    Não ficou bom o bicho emagrecer no começo e engordar no fim, faltou 6ma explicação do fato.
    O fim decepciona, eu me pergunto ‘esse bicho que come segredos era um simbolo?Do que?’ Se não era símbolo, era gozação ou o que?
    eu gostaria de ter tido essa idéia muito boa.

  4. Fabio Baptista
    14 de janeiro de 2015
    Avatar de Fabio Baptista

    Fala, Marcelo! Tudo bem?

    A premissa é muito boa. O início desperta uma grande curiosidade no leitor, mas acho que você acabou se perdendo um pouco pelo caminho, Marcelo.

    A caçada à criatura não foi um evento dos mais emocionantes. E esse final entrou em conflito com o que foi falado no começo.

    Acredito que seria mais interessante se fosse trabalhada a interação da criatura com os funcionários… há milhões de possibilidades para diálogos e situações divertidas nesse sentido.

    Enfim, uma boa ideia, mas que não foi desenvolvida da melhor forma (no meu ponto de vista, é claro).

    Abraço!

Deixar mensagem para Gustavo de Andrade Cancelar resposta

Informação

Publicado às 14 de janeiro de 2015 por em Contos Off-Desafio e marcado .