O bicho tinha um perfil estranho, meio gato, meio cachorro, e olhos que pareciam com os de uma pessoa. Rastejava pelo chão observando sapatos e sandálias que deixavam as mulheres com os pés à mostra. Não saía do depósito e alimentava-se do que as pessoas deixavam cair a sua volta, daquilo que esqueciam ou se esforçavam para esquecer. Comia segredos; perversões sexuais, mentiras, traições, eventualmente alguma maldade violenta; na maioria das vezes, porém, não passavam de mesquinharias cotidianas comuns a qualquer humano.
O bicho passava a maior parte do dia comendo e lambendo as patas, todavia, só fazia emagrecer. Ninguém sabia como ele havia chegado até ali, se alguém o trouxera ou se havia entrado pela janela quebrada do banheiro. Demo-nos conta de que estava entre nós pouco depois do recesso de fim de ano. A faxineira disse que havia um gato andando pelo depósito. O moleque do estoque disse que não. Depois um funcionário da contabilidade afirmou que viu uns olhinhos brilhando no escuro atrás de umas caixas lá no arquivo morto. Olhos humanos; sentenciou. Vez que outra alguém tinha a impressão de ter visto algo rastejando ou um brilho de uns olhos muito estranhos.
De início sua presença foi tratada com indiferença. Na verdade sentíamo-nos confortáveis. Entretanto, o temor de termos nossos segredos revelados começou a germinar. Não recordo de quem partiu os rumores de descontentamento, sei que logo eles ganharam força. Chegamos à conclusão de que devíamos nos livrar dele.
Após muitas conversas pelos corredores, encontros na cozinha e trocas de e-mails, chegamos a um nível mais profundo de entendimento. Enxotá-lo não era o suficiente. E se um de nós ficasse com o bicho para si e dele extraísse segredos para depois chantagear os demais? Como poderíamos ter tamanha fé uns nos outros? A decisão, pois, surgiu de modo inegável: era preciso matá-lo.
Aqueles em que a culpa pesava em demasia, ofereceram-se voluntariamente para executar a tarefa. Em grupos de três ou quatro, não mais que isso, procurávamos o bicho pelos cantos do escritório, embaixo dos móveis, nos lugares escuros. Porém, não conseguíamos entrincheirá-lo. Lá pela terceira semana após o inicio das buscas, suspeitávamos de que alguém o acobertava a fim de tirá-lo da empresa. Ninguém falava, apenas corriam olhares desconfiados. Por fim, clima tornou-se insustentável. Os mais fortes passaram a dominar os mais fracos, tomavam o que desejam, fosse dinheiro ou mulheres. Por vezes nos agredíamos. Agora podíamos reinar uns sobre os outros. E foi que isso acabou por trazê-lo até nós.
Em vez de seguir fartando-se com nossa mesquinharia e assim emagrecendo até desaparecer, ocorreu o oposto. Começou a engordar. Movia-se com lentidão de modo que começamos a ouvi-lo se debater entre as caixas e os armários. Deixava escapar uma espécie de gemido. Guiamo-nos por esse som para encontrá-lo. Havia pedaços de pele, fios de cabelo e urina pelo chão. O chefe do jurídico disse que o vira dentro do armário; a porta estava entreaberta e ele parecia dormir. Viu também um rastro de sangue. Teve medo de atacá-lo, na verdade medo de que o bicho o atacasse, e ele podia fazê-lo, se assim o quisesse, pois suas patas eram enormes, lembravam as mãos de um ser humano repousadas sobre o peito. Foi o que nos contou o empertigado.
Restringimos o raio de ação do bicho de modo que o levamos para um brete que desembocava no arquivo morto. Ouvi um arfar pesado e avancei silenciosamente para dentro da sala. Vi parte de sua perna saindo debaixo da estante de metal que ficava recostada na parede. A sala estava quase vazia, deixamos apenas as estantes, todas elas contra a parede do fundo. Com um gesto chamei outros dois colegas e fechamos a porta. Trazíamos cabos de vassouras pontiagudos, afiados como lanças, lona preta de plástico e uma barra de ferro. O bicho sentiu nossa presença. Fez um movimento para retrair a perna que estava à mostra, porém o surpreendi e cravei-lhe a estaca. O sangue esguichou na parede e ele se contorceu fazendo com que o armário caísse. Correu para o canto da sala permanecendo de quatro com a cabeça virada para a parede. Tomei a barra de ferro e o golpeei na altura do ombro; minha intenção era atingir a cabeça, mas errei. Ele se encolheu no chão em posição fetal; sua respiração vinha acompanhada de um gemido. Contudo, num movimento rápido e intenso, rolou até a parede de modo que ficou com as costas escoradas e se foi erguendo até ficar em pé. Estava muito pálido e a pele tinha um aspecto viscoso, apresentava chagas pelo corpo. A barriga flácida quase lhe cobria a genitália, o cabelo era loiro e ralo no alto da cabeça, porém cumprido até a altura do ombro. Fitou-nos com firmeza, sem raiva ou medo, apesar da expressão carregada de dor.
– Quero morrer como um…
Não deixei que terminasse a frase e enfiei-lhe a estaca na barriga repetidas vezes num movimento mecânico. Ele tombou com a força dos golpes e ficou estendido no chão, convulso. Senti um ódio abençoado. Meus colegas olhavam estupefatos a cena. Limpem essa sujeira, disse. Abri a porta e encarei o restante dos funcionários, todos a postos em suas mesas, mantendo o rito do local. Fui ao banheiro lavar as mãos e trocar a roupa suja de sangue.
Na outra semana fui promovido, passei a chefe de setor, e em pouco mais de um mês, convidado a tomar parte na sociedade do escritório. O bicho? Disseram que ele era um ex-funcionário, um antigo diretor, ou zelador do prédio. Ao certo ninguém sabe.
Ué, que conto doido!
A aceitação da existência do bicho achei súbita demais, e não senti a conexão que levou à conclusão de ser um diretor ou zelador… e, aliás, por que ele foi promovido? Faltaram essas respostas.
Opa! Obrigado pelos comentários.
Também tenho a franca sensação de que me perdi no desenvolvimento do conto.
Preciso burilar o texto, o conflito. Mandei um tanto no ímpeto, mas muito obrigado pelas considerações. É sempre bom ouvir outras vozes, porque em determinado fico contaminado pelo processo que está na minha cabeça.
Um abraço
Um bicho que come segredos e alimenta-se de perversões é uma idéia forte, ótimo gancho.
Não ficou bom o bicho emagrecer no começo e engordar no fim, faltou 6ma explicação do fato.
O fim decepciona, eu me pergunto ‘esse bicho que come segredos era um simbolo?Do que?’ Se não era símbolo, era gozação ou o que?
eu gostaria de ter tido essa idéia muito boa.
Fala, Marcelo! Tudo bem?
A premissa é muito boa. O início desperta uma grande curiosidade no leitor, mas acho que você acabou se perdendo um pouco pelo caminho, Marcelo.
A caçada à criatura não foi um evento dos mais emocionantes. E esse final entrou em conflito com o que foi falado no começo.
Acredito que seria mais interessante se fosse trabalhada a interação da criatura com os funcionários… há milhões de possibilidades para diálogos e situações divertidas nesse sentido.
Enfim, uma boa ideia, mas que não foi desenvolvida da melhor forma (no meu ponto de vista, é claro).
Abraço!