Conto Infanto – juvenil.
Henrique correu próximo dos trilhos do trem sentindo o peito disparar, os cães raivosos seguiram em seu encalço e o menino franzino, de calças curtas, alcançou o comboio, já em movimento, e se atirou de uma só vez. O policial estacou levando o apito metálico aos lábios e Henrique riu alto ao ver o objeto quicar nas mãos do homem e cair dentro de uma vala. Depois respirou aliviado na certeza de que aquele alarme não soaria e ele poderia, enfim, examinar o conteúdo da bolsa que havia furtado. Os grunhidos distantes dos cães confirmavam que o trem já estava “a todo vapor”, Henrique buscou sentar-se próximo a uma abertura para usar o luar e visualizar aquilo que retirava da bolsa:
Papéis, alguns cobres, cigarrilhas, uma pequena caixa metálica, mais papéis…
O menino com cicatriz recém adquirida no queixo e pele suja de fuligem, deitou fora a maioria dos objetos, se sentindo frustrado em não encontrar nada de valor. Sua barriga reclamou alto e ele esbravejou fazendo da mão uma bolinha e esmurrando o chão.
– Droga de vida! Mas não volto pra lá. Pra lá não. Não volto!
Segurando a caixinha ele deslizou com as costas na parede do vagão e fechou os olhos a fim cochilar antes de o trem chegar ao seu destino (desconhecido por ele). Vários clicks soaram dentro daquele objeto, mas o cansaço o venceu.
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Era uma jovem mulher que trajava um vestido roxo e chapéu de lapela negro assim como as luvas. A bolsa se mantinha firme nas mãos enquanto os olhos detinham-se no trem que apitava prestes a chegar na estação. O menino esgueirou-se nas sombras e puxou a bolsa bruscamente. A mulher se esquivou e ele caiu machucando o queixo no chão, ela se armou prestes a desferir um golpe das artes maciais que era conhecedora, porém, quando um oficial se aproximou de ambos, a bolsa estranhamente foi entregue e o pequeno ladrão que partiu em disparada enquanto a mulher gritava e apontava.
– Ladrão! Ladrão! Atrás dele! Atrás dele!
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Henrique acordou assustado ouviu os latidos dos cães ecoando, e ficou feliz de tudo ser apenas um sonho. Olhou a caixinha em suas mãos e franziu o cenho ao ouvir aqueles barulhos insistentes. Agitou-a próximo do ouvido e atirou-a no chão após uma lâmina machucar o seu dedo. A caixa caiu desdobrando-se e ganhando nova forma. Houve uma pirueta, uma luz azul fluorescente, engrenagens que romperam de lá para cá e em pouco tempo o objeto se tornou algo circular como um relógio, porém, sem ponteiros. A luzinha azul traspassava um buraquinho bem no centro. Henrique estudou aquilo mais de perto projetando a luz na parede e ouvindo curiosos tic- tacs. Novamente o estômago reclamou mostrando maior revolta, o garoto passou a mão sobre a barriga lembrando-se do café amargo e pão seco do orfanato de onde havia escapado há dois dias.
– Não volto!
A voz já não tinha a mesma convicção de antes, mas ele tentou distrair-se para esquecer a fome. Colocou “relógio” em um dos bolsos não furados de sua calça e se lançou para cima galgando os degraus de ferro da parte externa da máquina a vapor que corria veloz sobre os trilhos. Do alto o menino viu as copas dos pinheiros, fazendas e lagos que refletiam a luz da lua tão escondida sob os vapores que escapavam das chaminés da cidade. Ele se sentou não temendo nem a altura nem a velocidade e abriu os braços como um albatroz livre. Lembrava-se das paredes enegrecidas do orfanato, da frialdade da clausura e do sofrimento vivido naquele lugar.
Em pouco tempo o apito da locomotiva soou e Henrique se apressou em descer antes do trem parar na estação. Verificou o “relógio” no bolso e estranhou a coloração vermelha da luz. Saltou correndo novamente por entre os trilhos e partiu apressado como um rato nas ruas escuras daquela cidade. Na estação, duas figuras não perderam de vista o pequeno passageiro e seguiram sorrateiros atrás dele.
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Henrique caminhou devagar quando se sentiu seguro, e ao ler o letreiro estampado em uma construção qualquer, soube que pisava o chão de Londres. O céu escondido dentre fumaças diversas não o deixava maravilhar-se com os edifícios espalhados, mas enquanto erguia a vista, a passagem de um vulto correndo de lá para cá o assustou impelindo-o em apressar o passo. Mais uma vez o vulto cruzou os telhados de uma construção a outra e logo um assovio fez o peito de Henrique bater tão veloz quanto os sons, agora descompassados, do objeto que trazia no bolso.
Um beco escuro e sem saída foi o seu reduto e a projeção de dois seres cantando e dançando vindo em sua direção, fê-lo tremer acuado.
– Ora, ora… Se não é o pequeno ladrãozinho! – A voz feminina o deixou em dúvidas se as figuras eram amistosas ou não.
– Tic – Tac. Tic – Tac. O tempo está passando… – Um homem falou saltitando e batendo os calcanhares vez por outra.
O menino engoliu seco sentindo o objeto esquentar em seu bolso. O céu precipitou uma chuva fina sobre os três fazendo a mulher abrir uma curiosa sombrinha com luzinhas brancas em cada ponta. Dessa forma, tanto o garoto pôde ser visto quanto os rostos daqueles diante dele. Henrique se manteve parado e surpreso em reconhecer aquela mulher a qual furtara a bolsa na estação e ver as maravilhas luminescentes da sombrinha que ela trazia girando, de modo displicente, no ombro direito. Havia uma mala que segurava, mas assim que ambos pararam, ela foi colocada no chão. O homem que seguia ao lado era alto, esguio e dava rodopios como um acrobata sem jamais deixar cair a cartola e a bengala. Henrique não teve qualquer reação quando ele disparou ao seu encontro e meteu a mão no bolso da calça onde estava o objeto circular, exclamando ao tocá-lo.
– Unf! Quente, quente! Mais um pouco e… Boomm! Um ladrãozinho a menos no mundo.
A mulher apanhou no ar o “relógio” que o homem lançou e uma chave que trazia presa em um cordão no pescoço foi inserida no objeto fazendo-o retornar a forma de antes: uma caixinha metálica.
– Uffa! Foi por pouco!
Henrique observou tudo boquiaberto e deixou que algumas palavras escapassem dos lábios, não sentia menos tensão, mas o excesso de estranhezas que presenciara aguçava a sua curiosidade.
– Boomm? Isso era… uma bomba?
Os dois olharam para ele e riram alto. O homem mexeu nos cabelos castanhos do menino, perguntando quem era e onde morava. Henrique respondeu de imediato confiando no estranho que recompunha o colete e cartola e brincava com a bengala.
– Henrique Russell. Eu… eu morava em um… orfanato.
O homem deu um giro na bengala enquanto a mulher guardou aquela caixinha na mala junto de tantas outras em quantidade suficiente para explodir uma cidade inteira. A bengala parou de girar e o homem puxou a cabeça dela projetando dali uma adaga e apontando para o rosto de Henrique.
– Toda operação quase fracassou por causa de um orfãozinho de merda! – Sua expressão era mais de reprovação do que raiva.
A mulher correu com sua sombrinha luminosa e falou lançando olhares de ternura para o órfão.
– Não, pare! Pense um pouco. Um órfão ladrão pode ser útil, e depois… “A Ordem” precisa de mais recrutas.
A chuva aumentou fazendo os pingos que escorriam da lapela da cartola do outro molhar o nariz de Henrique. O homem piscou os grandes olhos azuis e frios várias vezes. Todos os trejeitos que fazia eram caricatos, ensaiados e ambos não se assemelhavam as pessoas que Henrique estava habituado.
– Hunf! Este cai no primeiro teste.
– Não é você quem decide!
A adaga foi recolhida para o interior da bengala e a voz masculina soou como desaprovação para companheira.
– Você e seus arroubos! Que fique claro que é responsabilidade sua, hein? Agora vamos!
E saiu cantando e espalhando a água empoçada enquanto segurava a mala.
– God save the Queen. O Lord our God arise, scatter her enemies, and make them fall…
– Tudo bem. Vamos!
Henrique caminhou ao lado da mulher sem parar de olhar suas roupas, eram estranhas e extravagantes. Um espartilho de couro marrom estava por sobre o vestido claro de mangas bufantes, o comprimento da saia era um pouco abaixo do joelho e ela calçava botas negras nunca vistas por ele. O chapéu estava mais para cartola masculina do que para algo feminino. Ele sentia as maçãs do rosto esquentarem ao olhar aquele busto muito exposto, mas a curiosidade crescente não permitia que retirasse os olhos perscrutadores.
– Desculpa pela queda. – Disse segurando a mão gelada dele
– Desculpa por roubá-la.
A mulher riu, lembrando-se de haver entregado a bolsa para não chamar atenção para si.
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Meses depois a polícia secreta britânica era chamada às pressas para investigar as estranhas explosões a trens de cargas e embarcações com manufaturas vindas das colônias Inglesas. Uma crise se anunciava. No jubileu de diamante da Rainha, um objeto circular muito quente foi levado para os aposentos de um empregado, a explosão foi mantida em sigilo, mas todos ficaram alarmados.
Henrique Russell fracassara em sua primeira missão e corria na dúvida se outras oportunidades surgiriam ou não.
Interessante. A linguagem agradaria, acredito eu, crianças de doze anos.
As personagens são clichês, mas legais. Gostei de como foram caracterizadas.
O salto no tempo, no entanto, ficou bastante abrupto. Esse efeito poderia ser amenizado, mesmo em se tratando de um prólogo.